Por Catiane Pereira
Foi divulgado nesta terça-feira (25) o Manifesto das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver, um documento que consolida as reivindicações da Marcha Global das Mulheres Negras e propõe um amplo programa de reparação histórica pelos quase 400 anos de escravização no Brasil. O manifesto foi apresentado pouco antes da mobilização nacional e internacional, realizada quase dez anos após a histórica Marcha de 2015, quando mais de 100 mil mulheres negras ocuparam as ruas de Brasília.
Elaborado pelo Comitê Nacional e pelo Conselho Político da Marcha, o documento defende que “sem Reparação não há possibilidade de democracia, justiça, igualdade e equidade em todos os domínios da vida humana”. O manifesto articula duas dimensões centrais: a reparação histórica pelos danos da colonização e da escravidão, e a construção de uma sociedade baseada no conceito de Bem Viver, inspirado em cosmopercepções africanas e indígenas.
“A escravidão operou de forma a subtrair as humanidades e subjetividades das pessoas negras em todo o mundo, a partir da retirada do direito ao próprio corpo – objetificado e comercializado; e a expropriação de nossos nomes, famílias, culturas e territórios”, afirma trecho do texto.
Onze propostas concretas
O documento apresenta 11 proposições específicas que incluem o reconhecimento público pelo Estado brasileiro da dívida histórica material e imaterial, por meio de ato normativo do Presidente da República, e a criação de um Fundo Nacional de Reparação de duração indeterminada, até que haja equiparação das condições socioeconômicas entre os diferentes segmentos raciais da população brasileira.
Entre as medidas propostas estão: o subsídio a pesquisas sobre a dívida histórica, especialmente focadas nas indenizações pagas a escravocratas em decorrência das legislações abolicionistas; o ressarcimento progressivo pelas famílias e negócios beneficiários dessas indenizações; e a reanálise e anistia de dívidas de financiamentos estudantis e habitacionais da população negra.
O manifesto também propõe a extinção do laudêmio (taxa cobrada durante transações de compra e venda de imóveis em área de domínio da União) para fins de regularização fundiária de imóveis para pessoas negras; a implementação de regimes previdenciários especiais para categorias de trabalhos braçais ocupados majoritariamente por pessoas negras; e emendas constitucionais que garantam proporcionalidade e paridade de raça e gênero nos Tribunais Superiores, em cargos eletivos e nos poderes executivo e legislativo.
Responsabilização de setores privados e religiosos
O documento chama atenção para a necessidade de responsabilização não apenas do Estado, mas também de instituições privadas e religiosas que “nasceram, lucraram e se consolidaram a partir da exploração da população negra”. O manifesto cita explicitamente grandes latifúndios e agronegócios, bancos públicos e privados, e as igrejas Católica e Protestantes.
Sobre a Igreja Católica, o texto destaca seu papel na imposição de uma “monocultura cristã” e na violação da liberdade religiosa, além de mencionar que a instituição ainda hoje se beneficia economicamente da cobrança de taxas de até 5% do valor de imóveis nas transações de venda de bens oriundos da distribuição colonial de terras.
O lançamento do manifesto ocorre em momento estratégico: o Congresso Nacional debate atualmente o Projeto de Emenda Constitucional nº 27/2024, que trata do Fundo Nacional de Reparação Econômica e de Promoção da Igualdade Racial. O documento defende que “é imprescindível que hajam estudos mais aprofundados para aproximar do real montante da dívida histórica no campo financeiro, patrimonial e cultural que o Brasil tem com a população negra”.
O manifesto contextualiza que, após dez anos da marcha de 2015, “o avanço do fascismo, da cultura do ódio e da expropriação dos bens públicos e naturais agravou o contexto político e social no cenário mundial, regional e nacional”.
Bem Viver como horizonte
Além das demandas reparatórias, o documento propõe o conceito de Bem Viver como “farol” para a construção de uma nova sociedade. Inspirado em concepções milenares africanas e indígenas, o Bem Viver representa “um novo código sociopolítico em que a justiça, a equidade, a solidariedade e a vida digna são valores inegociáveis”.
O manifesto articula essa visão com a crise climática e o racismo ambiental, defendendo a necessidade de rever a relação da humanidade com a natureza e desarticular “a relação de dominação, extrativismo e exploração mantida até então”.
“Estamos fazendo Palmares de novo, impulsionadas pelos sonhos de liberdade e emancipação germinados nos territórios negros do mundo”, conclui o documento, reafirmando a continuidade histórica da luta das mulheres negras brasileiras em conexão com a diáspora africana.
Leia na íntegra o Manifesto das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver aqui.


