Por Jesz Ipólito e Elizabeth Souza
O sol ainda disputava espaço com as nuvens quando as primeiras mulheres começaram a chegar ao salão circular do Centro de Excelência em Turismo da UnB. Era cedo, mas Brasília (DF) já vibrava em outra frequência: uma mistura de reencontros, sotaques cruzados, risos que se reconhecem, abraços que se reencontram antes mesmo de se anunciar. Espanhol, inglês, francês, português – e aquele idioma ancestral que só o sorriso e o toque conseguem traduzir.
Assim começava, no dia 22 de novembro, a programação dos Diálogos Globais por Reparação e Bem Viver, parte da Semana por Reparação e Bem Viver, iniciativa do Comitê Impulsor Global da Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver, formado por integrantes de mais de 37 países.
Mais de 60 atividades espalhadas pela capital federal transformaram a cidade em um território de circulação de ideias, estratégias e afetos. O propósito é comum: fortalecer a luta por reparação, justiça social, equidade e Bem Viver – conceito que reconhece a interdependência entre ambiente, território, coletividade e cuidado com a vida em todas as suas dimensões.
A proposta dos Diálogos Globais é abrir espaço para trocas profundas entre mulheres negras de diferentes realidades como Brasil, Colômbia, Argentina, Guiné-Bissau, Estados Unidos, Chile, Equador, Paris, Panamá e tantos outros territórios onde a luta é semelhante, ainda que marcada por contextos distintos. Cada uma delas carrega sua própria história de enfrentamento, mas encontra uma base comum: a mesma maquinaria global de desigualdades que recai, de formas diversas, sobre as vidas negras.
“Vamos tomar esse mundo nas mãos”
A abertura do encontro aconteceu no sábado (22) e foi conduzida por Valdecir Nascimento, do Odara – Instituto da Mulher Negra. Sua fala, atravessada pela força das orixás, ecoou como alicerce espiritual e político. “Hoje a gente tem que saudar Oxum, saudar Nanã, saudar todas as orixás femininas que fazem com que a gente esteja aqui, que nos empurram e nos acalentam a cada dia.”
Valdecir lembrou que a luta das mulheres negras não se sustenta somente na técnica ou na política formal, mas também na espiritualidade que fortalece, protege e equilibra. “Que Iemanjá cuide do nosso ori, porque é muita luta que a gente trava no dia a dia. Que Iansã, com seus ventos fortíssimos, faça com que a mensagem que queremos apresentar ao mundo ecoe em cada lugar.”
Entre memórias e convocações, ela fez um chamado direto à ação coletiva: uma frase que atravessou o salão e permaneceu pairando no ar. “Vamos tomar esse país, vamos tomar esse mundo nas mãos, porque ele só muda se nós tomarmos essa decisão juntas.”
O dia seguiu com trocas intensas, falas potentes e reencontros emocionados. Ao longo da manhã e do início da tarde, os Diálogos Globais por Reparação e Bem Viver mostraram que a Marcha das Mulheres Negras acontece em escala mundial porque as violências que atravessam as mulheres negras também são globais, mas a potência da organização e da imaginação política negras é igualmente internacional.
O encontro antecedeu a Marcha e ampliou o horizonte coletivo
Na segunda-feira (24), dentro da programação dos Diálogos Globais, foram feitos debates acerca do papel dos países caribenhos na luta pelo direito das mulheres negras. “Não é possível pensar Reparação e Bem Viver sem incluir o Caribe”, destacou Esther Giron, da República Dominicana e integrante do movimento coletivo Aquelarre. A oportunidade também serviu para promover a realização do Eflac 16 (Encontros Feministas Latino-Americanos e Caribenhos), que acontecerá no Haiti, em 2027.
Com o tema “Cimarronas del Caribe: Resistencias feministas y antirracistas en la isla de Ayití rumbo al EFLAC 16”, o diálogo foi encabeçado por Nathalie Vilgrain, da Organização Feminista Marijãn, do Haiti; Johanna Agustin, do Mujeres Socio Politicas Mamá Tingo, República Dominicana; Maydi Estrada, professora Titular em Filosofia/Antropologia na Universidade de Havana, Cuba; e Esther Giron.
“Acreditamos que o Caribe e as práticas antirracistas da ilha podem ser um ponto de partida para o movimento negro global”, avaliou Johanna Agustin, em uma referência às lutas e movimentos históricos de resistência desde o período escravocrata na região. “Muitas vezes não somos representadas nos espaços globais, então estar aqui é ato de rebeldia e alegria também”, completou.
Percepção também partilhada por Nathalie Vilgrain. “Para nós é importante [falar] que temos muita coisa a oferecer à região [do Caribe] e ao mundo e essas são coisas que nos trouxeram hoje ao Brasil”, disse a jovem haitiana em referência ao contexto político revolucionário às vésperas da Marcha de Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver, que aconteceu nesta terça-feira (25), em Brasília (DF).
Avançando contra políticas reacionárias
Após o diálogo inicial, a programação continuou com o painel “”Politicas Neoliberales Discursos Conservadores anti-negritud, anti-trans, anti-antipluralidad”, com a presença de Mikaella Drullard, da República Dominicana; Jéssica Murillo e Paola Palácios, da Colômbia; e Esther Giron.
O objetivo foi realizar diálogos transfronteiriços e horizontais para refletir as articulações necessárias de movimentos negros, decoloniais num contexto em que a direita conservadora tem avançado sobre diversas dessas regiões.
Semana por Reparação e Bem Viver
Os diálogos globais, assim como muitos eventos que ocuparam e estão ocupando a capital federal desde a última quinta-feira (20) e seguirão até esta quarta-feira (26), fazem parte da programação oficial da Semana por Reparação e Bem Viver. As agendas são promovidas por coletivos e organizações de todos os cantos do país e também internacionais, mobilizadas em torno da Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver. Para conhecer toda a programação, acesse os perfis da Marcha nas redes sociais.
A Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver é uma mobilização de caráter nacional e internacional, que acontece quase 10 anos depois de mais de 100 mil mulheres negras marcharem em 2015 contra o Racismo, a Violência e pelo Bem Viver – um processo histórico que impactou e definiu os rumos da nossa organização política no Brasil e na América Latina.


