Por Catiane Pereira
As imagens de policiais do Batalhão de Choque furtando peças de carro, escolhendo retrovisores como quem escolhe mercadoria em prateleira, e escondendo um fuzil AK-47 encontrado durante a megaoperação na Penha, não chocam apenas pela audácia do ato. Chocam porque escancaram aquilo que moradores de favelas denunciam há décadas: o Estado que acusa é o mesmo que saqueia, mata, encobre e viola direitos.
Esse é o país onde a fronteira entre legalidade e ilegalidade desaparece quando o dinheiro e muitas vezes a farda entram pela porta. E desta vez, parte foi filmada. As câmeras operacionais portáteis registraram policiais dizendo “a hora é essa” antes de desmontar uma caminhonete no meio da rua. As mesmas câmeras mostraram agentes escondendo um fuzil em uma mochila, omitindo a apreensão, desviando patrimônio público, sabotando registros.
Policiais escolhendo o que levar para casa: colete, rádio, o que desse para roubar. Crimes cometidos com calma, riso, planejamento. Crimes cometidos com a confiança de quem sabe que, mesmo sendo filmado, o sistema costuma engolir a verdade.
A verdadeira pergunta que ecoa é: se eles furtam diante das lentes, o que fazem quando decidem cobri-las?
O Ministério Público classificou como “recusa de obediência” a obstrução das câmeras, mas moradores conhecem essas atitudes por outro nome, é o intervalo em que tudo pode acontecer. Tortura, invasão de domicílio, roubo, extorsão. E, em muitos casos, execução.
A megaoperação que deixou 122 mortos, um número tão absurdo que deveria paralisar qualquer sociedade, se mostra também a operação dos furtos, dos peculatos, das câmeras tapadas, das provas escondidas.
A cena dos policiais desmontando caminhonete em plena luz do dia é didática: não existe crise moral, não existe desvio individual, existe uma cultura institucional de corrupção e violência legitimada contra corpos periféricos.
É o Estado saqueando as mesmas comunidades que são abandonadas historicamente pelo poder público. É o Estado que destrói portas, invade casas, mata jovens, e ainda leva embora o retrovisor.
O mais cruel é que a retórica é sempre a mesma: “combate ao tráfico”, “contenção da violência”, “operação necessária”. Os crimes cometidos pelos policiais nessas imagens não são exceção: são só evidência.
Evidência de um Estado que fala em honestidade, mas opera como quadrilha. Evidência de uma polícia que acusa o território, enquanto o crime veste terno e também coturno.
Enquanto isso, o governo posa para câmeras e alimenta um imaginário racista que reduz todo morador de favela a suspeito. O que se mostra é que a violência que o Estado diz combater é produzida por ele mesmo.
O Rio não precisa de operações como esta. Precisa de um Estado que pare de simular combate e comece a enfrentar sua própria corrupção. Precisa de política pública, não de saque estatal. Precisa de justiça, não de furtos. E, sobretudo, precisa que o país finalmente enxergue o óbvio: quando o Estado é o ladrão, a favela nunca terá paz.


