Por Andressa Franco e Jamile Novaes
No dia 25 de novembro, as vozes de 300 mil mulheres negras ecoaram nas ruas de Brasília (DF) e repercutiram no Brasil e no mundo. A realização da Marcha Global das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver envolveu esforços de centenas de organizações ao longo dos últimos três anos. No entanto, é preciso pontuar que a Marcha não é, por si só, a finalidade de tamanha articulação. Ela se constitui enquanto uma grande estratégia de incidência política dos movimentos de mulheres negras que não se encerra no ato da sua realização.
A Marcha é parte de um projeto político de longo prazo que exige do Estado, e dos diversos setores da sociedade, a criação de ações materiais e simbólicas que dêem conta de reparar os impactos da escravidão e corrigir as injustiças e violências resultantes desse processo que perdurou por séculos. A partir do Manifesto das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver, lançado minutos antes das mulheres tomarem a Esplanada dos Ministérios, o movimento reafirma a radicalidade desse projeto e indica que a continuidade da incidência política deve se traduzir na disputa por um novo modelo de sociedade, baseado no Bem Viver, que enfrente as desigualdades e violências produzidas pelo capitalismo e pelo colonialismo.
Integrante do Conselho Político da Marcha, Rosane Borges, jornalista e professora da PUC-SP, acredita que a Marcha de 2025 reafirma as mulheres negras como gestoras do impossível, aquelas que, mesmo diante de estruturas de negação de direitos, constroem possibilidades políticas impensáveis para outros sujeitos. “Estamos em um momento delicado do capitalismo no Brasil e no mundo. A política hoje se tornou mera gestão”, explica a também escritora, a partir da lógica de que a política institucionalizada tem se resumido a garantir capital eleitoral. “Nós, mulheres negras, viemos dizer: a política não é apenas gestão. Também é possibilidade de imaginação, ela expande as possibilidades de existência e dos direitos.”

Para a professora, um dos legados que a mobilização pode ativar nos próximos anos é avançar, primeiro, em aprofundar a denúncia de um Estado que é cruel e genocida. Mas também propondo outras formas da presença das mulheres negras no mundo.
Essa atuação já é observada, seja no diálogo do movimento com as macro-estruturas, propondo outra configuração de Estado e pensando outras formas de fazer política, seja nas diversas esferas em que essas mulheres negras estão inseridas, desde igrejas e terreiros até centros comunitários e universidades. “Nossa mobilização será permanente. A partir desse legado, podemos impulsionar ações capazes de nos alocar em autonomia, emancipação e coletividade.”
Também no dia 25 de novembro, foi apresentado para a sociedade brasileira outro importante documento: a Carta das Mulheres Negras ao Parlamento, lida durante a Sessão Solene em Comemoração à Marcha, no plenário da Câmara dos Deputados.
Nela, as ativistas ressaltam que desde o marco da “dita ‘redemocratização’” do país, não há democracia possível com a constante violação do direito à vida e à dignidade humana característica da política de genocídio do povo negro orquestrada no Brasil.
O documento, assinado pelas 13 organizações que compõem o Comitê Impulsor Nacional, bem como outras oito organizações que atuam em defesa da participação política de mulheres negras, reivindica a proposição ou tramitação imediata de iniciativas legislativas fundamentais para a consolidação de políticas de reparação. Como uma emenda que garanta a paridade de raça e gênero em todos os poderes; projetos de lei voltados para o enfrentamento da violência institucional, da letalidade policial e do racismo ambiental; anistia a mulheres condenadas por aborto, entre outras.
Tainah Pereira, coordenadora política do movimento Mulheres Negras Decidem, que assina a carta, ressalta que ocupar os espaços políticos é um projeto de longo prazo, ao mesmo tempo em que é uma medida urgente para a realização dessas agendas.
“A Carta de 2025 traz temas novos, como a questão tecnológica, da inteligência artificial, da plataformização do trabalho, e persiste ainda mais em setores estratégicos, como cultura, memória, educação, saúde”, afirma a ativista. Ela pontua também como essa agenda impulsiona, não apenas as demandas urgentes de todos os grupos sociais historicamente marginalizados na política institucional, mas também a própria estratégia de ocupação dos parlamentos pelas mulheres negras nos próximos anos, à medida que as coloca como protagonistas nesses debates.

Impacto global
As opressões sistêmicas denunciadas pelas mulheres negras brasileiras não representam uma realidade exclusiva do país. De acordo com a ONU Mulheres, cerca de 200 milhões de pessoas afrodescendentes vivem nas Américas – mais de 100 milhões apenas no Brasil – e têm suas vidas atravessadas pelas violências institucionais, negação de direitos, de participação política e de autonomia econômica. “Todo o processo anterior e durante a Marcha demonstrou que o padrão de opressão é global, e isso nos oferece muitos elementos para articular, trabalhar e incidir”, afirma Paola Yañez Inofuentes, coordenadora da Red de Mujeres Afrolatinoamericanas, Afrocaribeñas y de la Diáspora e integrante do Comitê Impulsor Internacional da Marcha.
A partir desse diagnóstico comum, a Marcha serviu como uma grande plataforma de intercâmbio entre mulheres negras de todo o mundo, que tiveram a oportunidade de consolidar alianças e fortalecer suas agendas coletivas. O resultado é um acúmulo político compartilhado que orienta os próximos passos, como explica Paola. “Temos experiências sobre proteção coletiva de lideranças, mecanismos de justiça comunitária, estratégias legais para exigir reparações, ferramentas contra o racismo algorítmico e modelos de organização horizontal. É um banco de conhecimentos práticos para aplicar e adaptar nos processos de incidência que vamos desenvolver.”

Juventudes negras do presente e do futuro
As juventudes negras também tiveram um papel fundamental na construção da Marcha. Organizadas em torno do Comitê Nacional de Juventudes Negras, mais de 100 jovens articularam encontros e espaços de discussão para aprofundar suas agendas políticas ao longo de 2025. “Contribuímos para a Marcha dando sentido político ao que é ser uma negra jovem no Brasil e no mundo e o que é vivenciar a experiência de uma juventude que é atravessada por uma perspectiva de morte e não de vida. A partir desses encontros, a gente pôde anunciar que temos um projeto político de existência e não de sobrevivência”, destaca Flora Luena Santos Rodrigues, integrante do Comitê e ativista da Rede de Mulheres Negras do Nordeste.
Passada a Marcha, essas jovens seguem irmanadas, fabulando estratégias para garantir a continuidade da luta do movimento de mulheres negras e o reconhecimento de sua força política. “A Marcha conseguiu direcionar as nossas angústias, nossos atravessamentos. Isso abriu e abre muitos caminhos de continuidade e de articulação. Eu espero que tantos outros movimentos de juventudes negras que foram construídos a partir desse mote de Reparação e Bem Viver possam ser reconhecidos e expandidos”, afirma Flora.

Justiça Reprodutiva como Direito
Outra agenda política que ocupou espaço central nas discussões em torno da Marcha foi o direito à Justiça Reprodutiva para as mulheres, meninas e pessoas negras que gestam e vivenciam em seus corpos a sobreposição de racismo, sexismo, lesbofobia e transfobia. No Brasil, as taxas de mortalidade materna das mulheres negras chegam a ser 2,3 vezes maiores que das mulheres brancas. Também são elas que representam 61% dos casos de violência obstétrica e 45,2% das mortes em decorrência de abortos mal sucedidos. Das 20 mil meninas de 10 a 14 anos que engravidam anualmente, 70% são negras. A pobreza menstrual e a falta de acesso às condições mínimas de higiene também atravessam as vivências dessas mulheres e meninas diariamente.
O Comitê Impulsor Nacional Feminista e Antirracista por Justiça Reprodutiva foi criado com o objetivo de garantir que as desigualdades no campo dos direitos sexuais e reprodutivos fossem visibilizadas, de modo a ampliar o debate público e cobrar a responsabilização do Estado. “Quando a gente fala de justiça reprodutiva, a gente está falando de mecanismos de educação sexual e de prevenção, de expandir o nosso entendimento do que é sexo seguro. Então, todos esses diálogos que a gente trouxe vão entrar no imaginário social dessas mulheres”, afirma Beatriz Sousa, integrante do comitê e técnica do Programa de Saúde das Mulheres Negras do Instituto Odara.

Justiça Climática e Bem Viver
O projeto de Bem Viver, pactuado pelo movimento de mulheres negras no processo de construção da Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo a Violência e pelo Bem Viver, propõe que a sociedade se relacione com a natureza e os demais seres vivos, rompendo com a dominação e a exploração impostas pelo capitalismo. Uma sociedade de Bem Viver pressupõe o fim do racismo ambiental e a valorização dos saberes ancestrais no cuidado com a terra, o meio ambiente e todo o ecossistema da vida. Para isso, é fundamental que a agenda da Justiça Climática reconheça o protagonismo das mulheres negras, cujos territórios são historicamente mais afetados pela crise climática.
No contexto da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP 30) em Belém (PA), o Comitê de Mulheres Negras por Justiça Climática da Marcha lançou o documento Quando a terra clama, somos nós: Manifesto das Mulheres Negras por Justiça Climática para reafirmar que não haverá justiça climática sem justiça racial, de gênero e territorial. “A Marcha impulsiona a agenda climática, pressionando o Estado pela visibilização do racismo socioambiental. O Manifesto fortalece nossa pauta e nossa vigilância constante”, explica Jane Monteiro, ativista da Rede Fulanas – Negras da Amazônia Brasileira e integrante do comitê.
Como resultado da mobilização construída, o comitê segue estruturando ações e alianças para ampliar sua atuação nos territórios e fortalecer sua incidência política. “Precisamos descentralizar e ampliar comitês por justiça climática em cada canto desta imensa nação construída pela energia e a dor das que nos antecederam”, afirma Jane.

O Projeto das Mulheres Negras para a Tecnologia
Se na Marcha de 2015, a 1ª Marcha Nacional de Mulheres Negras, o debate sobre racismo algorítmico e participação de mulheres negras na criação e regulação das tecnologias ainda dava seus primeiros passos, hoje essa agenda se consolida como central na luta por Reparação e Bem Viver.
A partir da Declaração do Comitê de Tecnologia da Marcha das Mulheres Negras, as ativistas declaram que a tecnologia não é neutra e denunciam como algoritmos, plataformas digitais e sistemas de vigilância reproduzem lógicas racistas, patriarcais, LBTI+fóbicas e coloniais, que impactam corpos e territórios negros.
O Comitê foi desenvolvido como um espaço estratégico, em uma conjuntura de oligopólios de internet que ditam as regras do jogo sem regulamentação; datificação e mercantilização da vida, junto à apropriação indevida de dados pessoais por Big Techs; falta de acesso à conectividade; apagamento de nossas contribuições tecnológicas; impactos ambientais causados pela instalação de data centers, entre outros.
“O movimento de mulheres negras entendeu a centralidade desse debate. O Comitê de Tecnologia vem para dizer que não seremos ignoradas”, afirma Larissa Santiago, cofundadora do Blogueiras Negras e integrante do Comitê. Como um dos saldos do espaço, ela cita a produção de um manual de boas práticas de cuidados físicos e digitais.

Ela acredita que a confluência entre as organizações de diferentes países deve impulsionar a incidência política das mulheres negras nessa agenda, para se contrapor às organizações lideradas majoritariamente por homens brancos, financiadas para fazer lobby no Congresso. “Não se preocupam em nos absorver enquanto mulheres e pessoas LGBTQIA+ que pensam criticamente o desenvolvimento tecnológico. A Marcha aponta como legado a centralidade das mulheres negras nesse debate. Sem nós, nenhum imaginário de futuro é possível.”


