Por Marry Ferreira / Imagem: CHUCK BURTON / AP
Assim como no Brasil, o direito de voto para mulheres negras nos Estados Unidos sempre nasceu da luta. No dia 18 de agosto de 2020, a 19ª Emenda, saudada por conceder às mulheres estadunidenses o direito de voto, completou 100 anos. A emenda proibia os estados de negar às mulheres o direito de voto com base no sexo. No entanto, a maioria das mulheres negras esperou quase cinco décadas mais para realmente exercer esse direito.
Ao observarmos a história de avanços duramente conquistados em direção à igualdade de gênero e raça nos Estados Unidos, também nos lembramos de que, no Brasil, mulheres negras movem a democracia com seus séculos de luta organizada. No caso dos EUA, mesmo depois da 19ª Emenda, as mulheres afro-estadunidenses permaneceram privadas de direitos devido a outros mecanismos que limitavam o voto de pessoas negras.
Veja um exemplo. O estado da Geórgia, que esteve recentemente na mídia durante as eleições de 2020, assim como muitos outros, suprimiu o voto de eleitores negros através de diversas estratégias. A população negra variava de 25% a quase 60% em Estados do Sul, sendo eleitores-chaves para colocar Democratas (azul) em um Sul dominado pelos Republicanos (vermelho). E é nesse cenário de impedir que ideias democratas se espalhassem pelo país que Republicanos contavam com os eleitores brancos para ultrapassar o alto número de eleitores negros.
Os mecanismos para limitar o direito ao voto eram diversos. Grupos como Ku Klux Klan e White Leagues ameaçavam candidatos negros em cargos locais, estaduais e federais, além de seus eleitores. Em 1877, a poll tax foi instituída (taxa paga pelo direito de voto), tornando o voto muito caro para pessoas negras que foram escravizadas e seus descendentes. Em estados como o Alabama, a poll tax era cumulativa, e todos impostos deveriam ser pagos desde a idade de 21 anos para que se pudesse votar. Vários estados exigiam testes de alfabetização para votar numa década onde 76% dos Negros do Sul eram analfabetos. No caso do Brasil, até a Constituição de 1988, o voto também era negado a pessoas analfabetas, e estima-se que apenas 10% da população teria votado para eleger Jânio Quadros em 1960. De maneira similar, na Louisiana, onde mais de 130.000 eleitores negros foram registrados em 1896, o número despencou para 1.342 em 1904.
Enquanto as mulheres brancas comemoravam há alguns anos o acesso ao voto, as mulheres negras continuavam suas articulação. Foi em um outono como o de 1920 que elas apareceram em massa para votar nas urnas em estados como Delaware, apesar de ter o impedimento de autoridades por “não cumprirem os testes constitucionais”.
Assim como no Brasil a Antonieta de Barros foi eleita a primeira parlamentar negra do país e lutou pelo voto, pela educação popular e pela valorização da cultura negra no país; nos EUA, mulheres como Ida B. Wells e Mary McLeod Bethune mudaram o cenário dos direitos civis. Em 1913, Wells, co-fundou o Alpha Suffrage Club, a primeira organização de sufrágio afro-americano de Chicago, um clube que se destacou por seu foco na educação de mulheres negras sobre questões cívicas e sua defesa da eleição de dirigentes políticos negros. Em 1920, a educadora, filantropa e ativista dos direitos civis norte-americana McLeod Bethune, viajou para seu estado para encorajar outras mulheres negras a se registrarem, mesmo sendo confrontada por uma oposição brutal a cada passo ao longo do caminho. Na véspera do dia da eleição, homens de Ku Klux Klan em túnicas brancas marcharam para o terreno da escola feminina de Bethune, com o objetivo de afastar as mulheres negras das urnas, sabendo que o voto negro era decissivo em um cenário de ideias mais conservadoras.
Foi somente em 1962 que a Câmara aprovou a 24ª Emenda, proibindo o poll tax como requisito de votação nas eleições federais por uma votação de 295 a 86. Naquela época, cinco estados do sul ainda tinham impostos sobre a votação: Alabama, Arkansas, Mississippi, Texas e Virgínia. A Emenda não se tornou parte da Constituição, entretanto, até 1964, quando Dakota do Sul a ratificou. Os testes e os impostos eleitorais foram derrubados em 1964 e 1965 pela 24ª Emenda e a Lei de Direitos de Voto.
O centenário da 19ª Emenda nos EUA, ocorre no mesmo ano do 55º aniversário do Voting Rights Act, um marco na legislação federal dos Estados Unidos, por ter estabelecido o fim das práticas eleitorais discriminatórias, decorrentes da segregação racial nos Estados Unidos, e do 150º aniversário da 15ª Emenda, que declarava que os cidadãos deveriam ter permissão para votar sem levar em conta a raça.
São essas e vários grandes aniversários que mostram a complexa história do direito de voto dos EUA e como mulheres negras lideraram os movimentos por trás dessas conquistas. Mas, assim como no Brasil, só recentemente elas começaram a receber o devido crédito e atenção popular por seu enorme e histórico poder político e de organização. O aniversário da emenda nos EUA vem no mesmo ano em que as mulheres negras estão concorrendo a cargos públicos em número recorde, e Kamala Harris é eleita a primeira mulher negra vice-presidente dos EUA.
No Brasil, são as mulheres negras que inovam com suas campanhas e mandatos coletivos para quebrar as barreiras do sistema político. Os resultados que vemos hoje vem do movimento desde Antonieta de Barros, em 1950, ao de mandatas como a de Erica Malunguinho e do legado de Marielle Franco e a Agenda Marielle. As eleições de 2018 foram a primeira em que a reserva de 30% das candidaturas para mulheres foi também exigência para os recursos do fundo e, apesar do número de mulheres eleitas na Câmara ter subido de 9% para 15%, não se compara ao 52% do eleitorado feminino. Em 2020, 90 mil mulheres negras disputaram as eleições municipais, 23% a mais que em 2016. No total, foram mais de 277 mil candidaturas negras em 2020, quase 10 mil a mais do que a de brancos. Destas, pessoas negras serão 44% dxs vereadores nas capitais brasileiras em 2021, e vereadoras negras e trans estão entre as candidaturas mais votadas e eleitas em 13 capitais.
Marcado como um ano histórico de eleições, enquanto assistíamos a virada na apuração dos votos para corrida presidencial de 2020 no Estado da Geórgia, a importância do trabalho de ativistas negras como Stacey Abrams nos EUA ficou ainda mais evidente. Voce provavelmente se lembra das hashtags e posts com a foto de Stacey viralizando nas redes sociais. Mas o trabalho dela não começou ontem. Nos últimos anos, em parceria com outras organizações, Abrams (escritora, política, advogada e ativista estadunidense) se dedicou a aumentar a participação de eleitores Negres e de outros grupos minoritários nas urnas em um cenário onde de supressão do voto Negro e voto não obrigatório.
Ainda no exemplo da Geórgia, desde 1964 o estado só votou em candidatos presidenciais democratas em três eleições. Em 2016, Trump (Republicano) venceu na Geórgia por 5 pontos em uma eleição em que ele perdeu o voto popular nacionalmente — sim, o sistema de votação nos EUA funciona de forma bem complexa e indireta, onde cada estado tem um peso na votação e pode ter seu próprio sistema, e não necessariamente quem tem mais voto vence.
O fato é que, dois anos depois da eleição de Trump, Stacey Abrams concorreu para ser a primeira governadora Negra do Estado da Geórgia, mas perdeu em uma disputa acirrada para Brian Kemp. Ela e outros ativistas do estado acreditavam que a Geórgia poderia votar azul (partido de Joe Biden), em um cenário onde o estado se tornou 10 pontos mais Republicana (partido de Donald Trump) do que o país como um todo.
E Abrams não perdeu em uma eleição comum contra Brian Kemp. Naquele mesmo ano, Kemp foi processado por suprimir os votos de minorias, em especial o voto negro, eliminando listas de eleitores dos locais de votação. Uma investigação da Associated Press revelou um mês antes da eleição que seu gabinete não aprovou 53.000 registros de eleitores – a maioria deles feitos por negros estadunidenses. O jornal The Guardian publicou que, em 2016, a campanha de Trump foi acusada de ter como alvo 3,5 milhões de negros estadunidenses para impedi-los de votar.
Não à toa que o rosto de Abrams virou o rosto quando se falou em votos e direitos civis em 2020 nos EUA. Esse resultado é do trabalho das que vieram antes dela, e de suas organizações New Georgia Project, que registram novos eleitores, e a Fair Fight, uma organização voltada para o combate à supressão de eleitores.
Os desafios de 2020 são diferentes dos de 1800, mas ainda se mostram muitos e a supressão do direito ao voto continua a impactar pessoas negras estadunidenses em massa. Em setembro de 2019, o New Georgia Project registrou quase meio milhão de Georgianos em todos os 159 condados do estado. Pessoas como o líder dos direitos civis John Lewis endossaram o trabalho de Abrams e outros ativistas na Geórgia. Através de uma rede de organizações, Fair Fight, New Georgia Project e outras registraram 800.000 novos eleitores, a maioria dos quais com menos de 30 anos. Cerca de 49% destes eram pessoas não brancas.
Os dias de votação acontecem na primeira terça-feira de novembro, e a data não é feriado no país. Ou seja, se você falta ao trabalho para votar, pode ser descontado do salário. Entre outros desafios de garantir o acesso ao voto, uma pesquisa de 2016 publicada pelo The Sentencing Project, mostrou que 1 em cada 13 negres estadunidenses perdeu o direito ao voto por causa de alguma condenação na justiça. Mais de 7,4% da população negra adulta está privada de votar, em comparação com 1,8% do resto da população. E os desafios não param por aí. Mesmo os que estão registrados e com permissão de voto, ainda enfrentam grandes filas com o fechamentos de distritos e reduções de períodos de votação antecipada que acontecem majoritariamente em comunidades não brancas.
Enquanto comemoramos marcos históricos, também seguimos na luta. E essa luta é um lembrete de como a luta das mulheres negras pelo voto e candidaturas foi e continua a ser sobre uma questão importante: o acesso ao poder político.