Por Iago Gomes*
Neste ano se completam cem anos do nascimento daquele que foi um dos maiores intelectuais e educadores do mundo. Paulo Freire nasceu em 1921 em Recife, Pernambuco, e veio a se tornar em sua vida e carreira o brasileiro com maior quantidade de títulos doutor honoris causa e outras homenagens mundo à fora, e o terceiro na lista de mais estudados na área de humanas em universidades e centros de pesquisas. Apesar de bastante utilizado e de sua obra servir a grandes bases teóricas de outros trabalhos que envolvem Educação, ainda há grandes pontos de debates e, sobretudo, muitos desvios conceituais que são apropriados por sujeitos e instituições que ocultam a radicalidade presente na essência freireana.
Em 1965, cumprindo exílio em Santiago, Freire optou por iniciar o texto que viraria uma espécie de Esclarecimento de sua obra “Educação como prática da Liberdade” da seguinte forma: “Não há educação fora das sociedades humanas e não há homem no vazio”. Vivenciando um período dificílimo para a História do país, com isso Paulo Freire reafirmava que não há nenhuma possibilidade de se pensar um Projeto de Educação sem pensar um Projeto de Sociedade, de mundo e de humanidade. Em anos anteriores o educador havia chamado atenção da burguesia brasileira por seu empenho e técnicas de alfabetização. Angicos, cidade interiorana do Rio Grande do Norte, viu isso de perto quando 380 trabalhadores e trabalhadoras aprenderam a escrever e ler em 40 horas. O convite de João Goulart para elaborar o Plano Nacional de Educação certamente foi recebido com escândalo por uma elite nacional que se constitui a partir do controle e extermínio de pobres, negros e indígenas, cuja desalfabetização significava automaticamente a perda do direito político de voto. Naquele momento o mundo não perdeu Freire, ao contrário ganhou um intelectual e militante renomado, com passagem em diversos países incluindo Chile e uma avassaladora na Universidade de Harvard. Uma das grandes tarefas colocadas naquele momento estava posta em todas as suas obras lançadas: só era possível pensar uma Educação, que não fosse conivente com tudo que acontece em volta, se ela for de fato Libertadora.
Existem aspectos comuns e até repetitivos, para fins de entendimento, que a educação freireana faz questão de elucidar, como por exemplo a superação da falsa dicotomia “homem x mundo”. Para além de pensarmos que ambos estão integrados, é ter a certeza que o “homem também está no e com o mundo”, o que Freire em “Pedagogia do Oprimido” reafirma quando diz que “Os homens são seres de busca e que se sua vocação ontológica é humanizar-se, podem, cedo ou tarde, perceber a contradição em que a “educação bancária” pretende mantê-los, e assim engajar-se na luta por sua libertação”. A Educação Libertadora é justamente aquela que possibilita por meio de múltiplas ferramentas o alcance desse sujeito às formas e meios aos quais utilizará para pensar e transformar a realidade em sua volta, sendo o inverso disso o adestramento, controle propiciado pela Educação Bancária advinda das classes hegemônicas. Apenas isso bastaria para se compreender que os aspectos de sua obra não se reduzem a contribuir para mera aquisição da escrita, para formação única de pedagogos e menos ainda para uma espécie de “Educação de Autoajuda”, bem no estilo coach, soluções pautadas meramente na individualização dos obstáculos.
A Educação Libertadora é aquela que se compreende dentro dos limites da ação estritamente educativa, mas que não se acomoda dentro desses limites e, portanto, deseja e almeja mais, como a intervenção direta na realidade, tomando o sujeito em construção de sua consciência crítica a autonomia para desenhar os caminhos dessa intervenção. Para tanto, é entender que o que é defendido em todo arcabouço literário do Paulo Freire não é uma adequação a instituições, mas um rompimento com a instrumentalização da educação, o que ele deixa bem claro em “Política e Educação” quando localiza a Educação Popular no espaço-tempo da América-Latina, como uma educação de resistência ao imperialismo, à Colonização. Superar o modelo de Educação Bancária significa propor superar a forma-Estado, a forma-Sistema, sem isso seria apenas jogo retórico vazio, e muito distante do adjetivo Libertadora.
Presenciamos algumas características do Capitalismo do século XXI que se referem, sobretudo ao modelo de economia de serviços e a apropriação das chamadas “Lutas Identitárias”, uma delas é a de absorção do contraditório a ele e do vômito desse contraditório como algo totalmente instrumentalizado na ótica do capital. É comum observarmos isso em figuras mesmo comunistas como Che Guevara, mas também naquelas que não necessariamente se afirmaram como, mas o projeto defendido é tão radical quanto e não oposto, a exemplo do Paulo Freire. Essa apropriação faz com que a nível de extinguir o que é radical em suas formulações, use frases que se tornam clichês, desviem a interpretação do que realmente foi afirmado, retirando-as assim de contexto e transforme o intelectual em uma “mercadoria palatável e consumível”, justamente tudo que vem sendo feito com Paulo Freire por secretarias de educação, partidos e organizações liberais, figuras públicas ligadas ao mercado corporativo privado de educação, etc. Na contramão do que as campanhas bolsonaristas de ataques a imagem do nosso Patrono da Educação fazem e no vácuo de reivindicação pela esquerda radical do legado dele, o Neoliberalismo o vem utilizando como campanha de campo para se avançar no programa de mercantilização (implementação da BNCC, da Reforma do Ensino-Médio, do Ensino Remoto e do retorno de Aulas presenciais, etc.). Nesse ponto escondem o caráter radical presente em suas obras, abraçam frases tiradas de contexto mais amplo como repetirem que “Quando a Educação não é libertadora o sonho do oprimido é se tornar o opressor”, para mascarar que é impossível oprimidos serem opressores dentro de uma Estrutura Histórica de Poder e que o Freire no contexto está realmente tratando que é de como a Educação serve não só à naturalização da opressão como também à alienação do processo de exploração, fazendo com que oprimidos e explorados não só não percebam essa estrutura, como a reproduzam uns com os outros. Já presenciei também em várias situações o uso de uma afirmação poderosa, que é trocadilho que faz a partir de esperança e esperar, para naturalizar o processo de exploração e violências a trabalhadores da educação em meio à pandemia e de angústia dos estudantes com o Ensino Remoto, quando na real essa angústia se deve muito às desigualdades econômicas e sociais que eles sabem que enfrentarão para acompanhar esse processo. Paulo Freire nunca usaria essa afirmação nesse sentido e a tomou na relação de consciência de mundo dos sujeitos com a transformação, a exigência de mudanças revolucionárias pautadas principalmente no fim dessas relações de exploração e opressão.
Istévan Mészáros em sua obra “Educação para além do Capital” fala sobre o papel de uma Educação comprometida com o fim do sistema capitalista quando apontam que ela precisa visar a autonomia para autogestão da nova ordem produtiva. O conceito de autonomia para o Paulo Freire não é meramente o de ser capaz de elaborar um currículo, de cumprir sua função de trabalho, mas como sujeito crítico ser capaz de saber o seu papel na luta de classes. Sim, o Freire trata a Educação Popular especificamente da América-Latina, como a emergente dos processos de resistência e conflitos que envolvem principalmente pobres, negros e indígenas. Dessa forma, o que podemos relacionar entre ambos autores é de que o papel da Educação para a autonomia é fazer com esses sujeitos sejam capazes ao mesmo de ter trabalho e estudo, de garantir posicionamento e participação nos conflitos e estejam preparados para continuar o processo educativo na sociedade emergente. Se Marx e Engels afirmaram que a História da Humanidade até hoje é a História da Luta de Classes, a educação não pode ser colocada como alheia a tudo isso. Fazer com a Educação pareça uma ilha, mesmo em meio a Institucionalidade, é um papel que só interessa ao próprio Mercado, quando a entende não mais como direito de toda a humanidade, mas como um bem de consumo restrito e direcionado a garantir mais lucro dentro do processo de Acumulação do Capital.
Nos perguntarmos o tempo inteiro “qual modelo de Educação é defendido” é uma questão fundante. Afinal ou se está a serviço da Burguesia ou se está da Classe Trabalhadora; ou se defende a Educação Bancária ou se defende a Educação Libertadora. São incompatíveis por essência histórica, independente de correntes mais recentes de pensamento pautarem a superação dessas dicotomias, afinal o enriquecimento de empresas privadas a partir da venda de capital-educacional enquanto o ensino público é ainda mais atingido pelas políticas de austeridade é mais do que uma prova disso.
*Professor da Rede Básica da Bahia, Graduado em Letras pela UEFS, Militante e Comunicador Político.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREIRE, Paulo. A Educação como prática da liberdade. 47ª ed. – São Paulo: Paz e Terra, 2019.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 73ª ed. – Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2020.
FREIRE, Paulo. Política e Educação: ensaios. 4ª ed. – São Paulo, Cortez, 2000. (Coleção Questões da Nossa Época; v. 23)
MÉSZÁROS, Istévan. Educação para além do capital. (tradução Isa Tavares). – 2ªed. – São Paulo: Boitempo, 2008. – (Mundo do trabalho)