Os desafios para disputar o imaginário político na cidade conhecida como ‘Ilha Tucana’ no Nordeste
Por Andressa Franco e Patrícia Rosa
Ilustração: Polianna Silva
Nascida e criada na Feira Central de Campina Grande, município na Paraíba, Josilene Oliveira (PCdoB), de 40 anos, é hoje a primeira negra eleita vereadora da sua cidade, com 3.050 votos. Conhecida como Jô, também foi a primeira da família a ter um diploma universitário, assim como um mestrado, ambos em serviço social, na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).
Foi a partir da relação com a universidade que Jô se inseriu em movimentos estudantis e teve um “grande despertar” no seu interesse pela política. “Uma coisa é você saber que é uma mulher negra e morar na periferia. Mas foi essa inserção na universidade, essa aproximação com partidos e movimento estudantil que me levou a entender a necessidade da luta coletiva”, explica a assistente social, que se filiou ao PT em 2001.
Filha única, foi criada por mulheres. Mãe, tia, tia avó e madrinha foram suas primeiras referências. E a partir da aproximação com o movimento estudantil, seguiu para o movimento de juventudes, onde encontrou a possibilidade de incidir politicamente, e começou a pautar o Conselho de Juventude da cidade.
Na sequência, Jô começou a dedicar sua atenção à perspectiva de gênero. Entendendo a discriminação que vivenciava na sociedade pelo fato de ser mulher negra, passou a integrar também o movimento de mulheres. Foi onde começou a entender o feminismo, e a importância dos marcadores de gênero.
Uma vez se articulando entre movimentos, percebeu que estava se formando como uma sujeita política. “No momento que a gente faz esse debate, com toda pauta da Marcha das Mulheres Negras em 2015, eu dei essa guinada no sentido de interpretação do meu lugar”.
Resistência à candidatura política
Para Jô, aquele foi um período em que ocupar os cargos da política partidária institucional se tornou algo mais próximo da realidade. Um objetivo a ser alcançado depois do que havia observado entre lutas e conquistas dos movimentos sociais. Apesar disso, a militante teve resistência em dispor seu nome como candidata, e atribui a isso o conservadorismo de Campina Grande, conhecida como ‘ilha tucana’ no Nordeste.
“O Bolsonaro ganhou aqui, o Lula e a Dilma nunca. É uma cidade que preza pela relação política baseada nas oligarquias”, comenta. “Os três senadores do estado são daqui, temos um terço dos deputados federais, quase metade dos deputados estaduais, então a cidade fervilha política, mas esse tipo de política”.
Ainda assim, dispôs seu nome para a candidatura. E conquistou 1.544 votos na disputa de 2016, que lhe rendeu o lugar de suplente. Mas, a eleição veio mesmo em 2020, com o slogan “A Cor de Campina”. O que, relata ela, chegou a gerar até certo incômodo nas pessoas.
Um dos episódios simbólicos do período de campanha foi quando, cumprindo sua agenda, foi até a casa de um possível apoiador. Mas, ao chegar lá na hora marcada, a reunião não começou, porque o apoiador estava “esperando o candidato”. “E eu digo ‘vamos começar, a gente já tá aqui, você está esperando quem?’, e ele respondeu ‘um tal de Jô’”, relata hoje aos risos. Uma situação que demonstra de forma explícita qual o perfil de candidato esperado no imaginário da sociedade: homem, branco e rico.
Obstáculos diários
Um fator inesperado de 2020 que acabou se tornando um obstáculo para a campanha, foi a pandemia. “Quem tem dinheiro vai impulsionar suas publicações, botar gente pra deixar seu material, e a gente não tem como. Como vamos fazer?”. A alternativa para Jô foi “virar blogueira”, através de lives nas redes sociais principalmente.
A cadeira veio, mas o que mais impacta Jô sobre essa conquista, é de onde vieram seus votos. Por mais que seu discurso seja voltado para a população negra e periférica, os números mostram que sua votação partiu majoritariamente da classe média e média alta. “Temos votação nos mais variados bairros da cidade, inclusive da periferia. Mas quem acaba definindo o processo, são essas pessoas que estão em outro nicho”, analisa.
E o dia a dia na Câmara não é simples. Sendo a única mulher negra da Casa, e em uma sigla partidária de esquerda, é comum ouvir dos seus colegas frases como “isso é coisa de comunista”, “isso aqui é aquele povo radical” ou “aquele povo que não tem o que fazer e quer invadir terra”.
Jô prefere responder depositando suas energias no debate a respeito da cidade e projetos de lei. Mas conta que, diferente dos demais projetos apresentados na Casa, os seus são sempre lidos na íntegra, sob a justificativa de “saber o que está nas entrelinhas”. E ouve com frequência que são projetos e requerimentos muito complexos.
“Eu respondo: ‘não tem muita coisa, ele está bem elaborado, é diferente’. A gente fundamenta as nossas produções, requerimentos, projetos de lei, nossas audiências públicas são muito bem fundamentadas. Então, se não é de hábito desta Casa ter requerimentos fundamentados, não é um problema nosso”, defende.
Jô integra hoje três comissões: a Comissão da Mulher, a Comissão de Orçamento, como relatora, e a Comissão de Trânsito e Mobilidade Urbana, como membra. E o cuidado redobrado que toma na produção de todos os detalhes, é justamente para evitar que haja brechas para criticarem seu trabalho.
Das 23 cadeiras, apenas seis fazem oposição ao prefeito Bruno Cunha Lima (Solidariedade), alinhado ao presidente Jair Bolsonaro (PL). E a assistente social observa que, apesar de conseguirem aprovar algumas matérias, quando as pautas vêm do executivo, não são muitas as chances contra a bancada majoritária. “Nem sempre é fácil, podemos não ter o projeto aprovado, mas vamos trazer o debate. Afinal é para isso que estamos aqui, se for pra balançar a cabeça para todas as pautas não faz sentido”.
Pautas prioritárias e apoio feminino
Com 53 projetos de lei e 320 requerimentos apresentados no ano de 2021, a vereadora mantém um mandato de intensa produção. Além de assinar a agenda Marielle Franco, defende em seus projetos pautas que considera indispensáveis, como a criação do Dia Municipal de Enfrentamento ao Genocídio da Juventude Negra. Projeto que apresentou para marcar a data em que um jovem capoeirista da cidade foi abordado por uma patrulha policial e baleado no abdômen, enquanto tentava retirar o documento do bolso.
Jô também apresentou o PL’s como “Cidadania Trans”, “Cavalo de Lata”, pela substituição de animais no contexto de tração das carroças, e um PL também pela inclusão de um “Dia Municipal de Luta Contra a Gordofobia”. E afirma que todas as pautas têm sempre duas coisas em comum: a resistência para aprovação dos demais parlamentares, e o contato constante com os movimentos sociais para sua elaboração.
“Eles estranham muito que a gente faz esse tipo de propositura. Todas as pautas são muito caras, não tem uma que não seja, até nome de rua”, ressalta.
Prezando sempre pelo diálogo, a falta de apoio das demais parlamentares mulheres foi uma questão com a qual Jô precisou lidar, e um de seus maiores desapontamentos. Por vivenciar situações em que ela e as demais mulheres não são ouvidas em seus momentos de fala, imaginava que encontraria mais união entre essas mulheres.
“Eu já tinha entendido que não ficaríamos juntas em todas as pautas, mas tinha essa visão romântica de que, por sermos mulheres, estaríamos na maior parte das vezes. Depois fui olhar, são mulheres que já têm uma trajetória política, se não delas, de seus pais ou maridos”, aponta.
“Eu vejo com muita preocupação o cenário de 2022”
Já de olho nas disputas eleitorais deste ano“Nós temos dois membros do ‘gabinete do ódio’ aqui de Campina Grande, um dos gestores é o Tercio Arnaud Tomaz [que já foi apontado como líder do gabinete]. Fizeram universidade aqui, transitam com a gente nos mesmos espaços, essas figuras têm uma centralidade impressionante”, pontua.
Atenta aos desafios iminentes, afirma que um dos alívios é ter hoje um governador [João Azevêdo (Cidadania)] que faz oposição ao presidente. “Ele [Bolsonaro] não ameaça mais, ele diz de fato que não estará satisfeito com o resultados das eleições. Nem preciso falar dos ataques aos nossos direitos, dessa política privatista de venda dos nossos bens. Vejo com muita preocupação o cenário de 2022”.
A parlamentar se mostra receosa, no entanto, sobre a saída através de um impeachment. “É uma coisa violenta a retirada forçada de uma pessoa que foi eleita democraticamente. Mas fico na preocupação de saber o que sobra até 2022. Essa criatura na condução é um ônibus descendo a ladeira e você não sabe se puxar o freio vai resolver”.
Para Jô, apenas atos de rua não são suficientes para alertar a população sobre os riscos da continuidade de Bolsonaro no poder, e nem todos entendem o que é o processo de genocídio falado nos microfones destes atos. A vereadora defende que explicar isso à população, é uma das tarefas para esse período.
“Continuarei nos atos, porque acho que é um momento importante de nos colocar do lado certo da história. Mas para reverter o jogo de 2022, não dá para contar somente com o desgaste do governo com relação à pandemia”, acrescenta.
Quanto à participação de mulheres negras na política diante desse cenário, a opinião de Jô é firme: abrir espaço para novas candidaturas é um dos grandes motes das que foram eleitas até agora. “Não dá para celebrar que Jô é a primeira e ficar só em Jô. Precisamos inspirar outras mulheres negras e fazer com que esse mandato seja referência para isso”, afirma.
Esta reportagem faz parte da série Política de Pretas, produzido pela Revista Afirmativa em referência ao Março de Lutas, agenda coletiva realizada pela Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB) e Rede de Mulheres Negras do Nordeste.