A alegria de Dona Nicinha, uma das matriarcas do Samba de Roda no Recôncavo Baiano

Quando o assunto é samba, se fala de uma importante expressão cultural, com raízes africanas, que nasceu em Santo Amaro da Purificação, na Bahia. O Samba de Roda, uma forte manifestação cultural, tem uma poética, mistura de música, tradição e dança.

A fundadora do grupo Raízes de Santo Amaro reflete sobre sua trajetória e sobre importância do samba do Recôncavo para o cenário do gênero no país

Por Andressa Franco e Patrícia Rosa

Imagem: TV/BA

Quando o assunto é samba, se fala de uma importante expressão cultural, com raízes africanas, que nasceu em Santo Amaro da Purificação, na Bahia. O Samba de Roda, uma forte manifestação cultural, tem uma poética, mistura de música, tradição e dança. Ele foi reconhecido como patrimônio pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) desde 2004. No ano seguinte, a expressão cultural foi reconhecida como um Patrimônio Cultural e Imaterial da Humanidade, pela UNESCO no dia 25 de novembro de 2005.

Foi por uma santo-amarense, que nasceu no ano de 1854, que o ritmo transcendeu as fronteiras baianas. Dona Hilária Batista de Almeida, mais conhecida como “Tia Ciata”, uma das principais incentivadoras deste gênero musical. A sambadeira se mudou para o Rio de Janeiro aos 22 anos, sua casa era um ponto de encontro para os sambistas da época. Ela costumava abrir suas portas para reuniões, numa época onde o samba era proibido.

Quem também tem uma história de amor com o samba e mantém o legado do gênero, é Maria Eunice Martins Luz, conhecida como Dona Nicinha do Samba. Nascida em 17 de outubro de 1949, uma das importantes matriarcas da história do samba do recôncavo, fundou o grupo Raízes de Santo Amaro, do qual fala com muito orgulho. Confira a entrevista com a sambadeira de Santo Amaro.

Revista Afirmativa: Quem é Dona Nicinha do Samba?

Dona Nicinha: Eu me chamo Maria Eunice Martins Luz, tenho 72 anos, nasci em Santo Amaro da Purificação, sou conhecida como dona Nicinha do Samba. Minha família era de “sambador”, minha mãe, minha avó, minha bisavó. Fazia caruru de São Cosme, de Santa Bárbara, de São Roque, reza de Santo Antônio. Era isso fia, pra lavar roupa era sambando, pra ir buscar lenha para queimar era sambando, porque naquela época ninguém tinha fogão, não tinha nada. Era sambando. E a vida era maravilhosa, tudo na base do samba [gargalhadas].

Imagem: TV/BA

R.A.: Sempre viveu do samba?

D.N.: Ninguém é profissional do Samba, ‘eu amasso meu barro para não tapar a casa com caroços’, pois cada qual tem o seu estilo, seu ritmo, tem que respeitar as pessoas. Depois que Luciana mais Rosildo fez as “meninas de sambadeira”, eu também fiquei no meio amassando meu barro, jogo pra lá, jogo pra cá e só alegria. Eu graças a Deus conheço muitos lugares no mundo, tanto aqui, como fora do Brasil. Eu sou o samba e o samba sou eu, eu não posso viver sem o samba. O samba é meu marido, meu amante, meu filho, meu compadre, meu companheiro, meu advogado. Pra mim o samba é tudo, eu não posso viver sem sambar.

Eu sou o samba e o samba sou eu, eu não posso viver sem o samba. O samba é meu marido, meu amante, meu filho, meu compadre, meu companheiro, meu advogado

R.A.: Como nasceu o grupo Raízes de Santo Amaro?

D.N.: No meu grupo, nós temos capoeira, maculelê, samba de roda, ainda faz um afoxé no final, que é para arrastar a multidão. Eu já frequentava a professora Zilda Paim*, quando foi em 74, eu fui morar com o pai dos meus filhos, que era enteado de Popó, que era mestre de capoeira. Então a gente montou um grupo e nasceu a vontade e o desejo, ele tomou a frente e eu também. Ele ficou com a parte de maculelê e eu fiquei com a parte do samba e foi assim que nasceu. Em 82 a gente correu oito países europeus e um na África. Todo ano a gente viaja, não viajou esses dois anos por causa da pandemia, mas em agosto eu fui pra Ribeirão Preto e fiquei lá uma semana. A gente já estava com o passaporte novo e já tinha duas apresentações certas nos Estados Unidos, mas fechou tudo e a gente parou. Eu nunca fui ao Japão porque o Japão não é ‘meu eu’, toda vez que eu acho uma apresentação para lá, eu já tenho um compromisso naquele dia.

R.A.: Olhando para a sua trajetória, como é ter o reconhecimento que a senhora tem hoje? 

D.N.: Ah, minha filha, eu fui catadora de goiaba, lavadeira, marisqueira, doméstica, trabalhei com enxada, em colégio. Eu já fiz muita coisa, trabalho era comigo mesmo, pra criar meus filhos. Eu tive três. Tem um com Deus e eu tenho dois. Tenho nove bisnetos, sete netos e muitos amigos, compadres e amigas. Aqui é uma comunidade, que é um por todos e todos por um. Antigamente quando a gente sambava, não ganhava nada não, mas agradecemos a Lula e a Gilberto Gil que [o samba de roda] virou patrimônio**. Porque a gente faz hoje uma apresentação e tudo é na base do dinheiro, tudo que a gente faz hoje, tem que ter um dinheirinho pra ajudar e antigamente não tinha isso. Hoje essa veinha aqui é conhecida em todos os lugares, quando eu chego no pedaço dizem ‘É Dona Nicinha do samba?’. Você me procure no Youtube, que você me acha todinha, todo lugar que eu já fui. Hoje a faculdade é samba, a escola é samba, tudo hoje é samba. Se a gente samba é uma alegria, hoje tudo que eu tenho, eu agradeço ao samba, se não fosse o samba eu não tinha. Trabalhei tanto, que nem uma condenada, e não tive nada, depois do samba eu tive tudo.

Hoje a faculdade é samba, a escola é samba, tudo hoje é samba. Se a gente samba é uma alegria, hoje tudo que eu tenho, eu agradeço ao samba, se não fosse o samba eu não tinha

R.A.: Como foi/tem sido viver o período de pandemia?

D.N.: Agora eu estou fazendo corpo a corpo, pois já está se juntando mais os povos, tá melhorando aos poucos, com cuidado, com máscara, com álcool gel, porque o negócio está enchendo outra vez. Tá na base assim da “livezinha”, só na manteiga [gargalha]. No início deu uma paradinha, mas depois graças a Deus as portas se abriram pra gente. O pessoal de fora aqui do Brasil, sempre fazendo live, ajudando, muitas doações para fazer cestas básicas, para ajudar o povo da minha comunidade, Ilha do Dendê, por que eu moro em uma comunidade pobre e tem que ajudar. No ano passado eu fiz o natal das crianças, mas esse ano não tenho como fazer, pois está sem verba. Mas eu ajudo as crianças, peço doação para fazer o natal, fazer uma criança feliz é a melhor coisa do mundo.

Dona Nicinha realiza uma campanha em que colhe doações revertidas em brinquedos para as crianças da comunidade

R.A.: Qual a importância do samba do Recôncavo para o cenário do samba no país? 

D.N.: O samba nasceu aqui em Santo Amaro, com Tia Ciata***, quem levou o samba para o Rio de Janeiro, foi ela! Eu nasci na terra do samba. Agora, nosso samba aqui é nos pés, o de lá e de salto alto. E tem Dona Cadú, que é nossa mestra, que tem 101 anos, que é nossa amiga.

R.A.: E o papel das mulheres na construção desse samba de roda?

D.N.: Hoje as mulheres podem tudo, a gente já teve presidenta mulher, delegada mulher, juíza, motorista. A mulher pode tudo, nós temos o poder, é arregaçar as mangas, dizer “eu vou fazer isso” e faça. O samba é vida, amor, vontade. Nunca desista, não olhe pra trás, pois topada não se toma para trás, se toma para frente, seja firme e forte.

*Professora Zilda Paim (1919-2013): nascida em Santo Amaro, foi uma educadora, historiadora (com particular curiosidade a respeito da história da própria terra) folclorista e pintora brasileira, ex-vereadora de sua cidade natal. Foi uma dos maiores especialistas brasileiras em maculelê.

**O samba de roda virou patrimônio oral e imaterial da humanidade pela Unesco em 2005, durante a gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura, no governo Lula. De acordo com Caio Csermak, antropólogo e etnomusicólogo que desenvolveu uma pesquisa sobre o tema na cidade de Cachoeira, na Bahia, em entrevista para o Itaú Cultural, a intenção era que o samba urbano carioca se tornasse patrimônio. Mas para a obtenção do título era necessária uma série de pré-requisitos pedidos pela Unesco, como: ser uma manifestação artística/cultural que tivesse uma base comunitária, que fosse bem delimitada geograficamente e que estivesse em risco de extinção. Como o samba urbano carioca já estava bem difundido por todo o país e muito inserido na indústria cultural, o samba de roda foi o escolhido.

***Nascida em 1854 em Santo Amaro da Purificação, Hilária Batista de Almeida, conhecida como Tia Ciata se tornou símbolo da resistência negra pós-abolição e uma das principais incentivadoras do samba depois de abrir as portas de sua casa para reuniões de sambistas pioneiros quando a prática ainda era proibida.

**** Conhecida como Dona Cadú, Ricardina Pereira da Silva tem hoje 101 anos, é ceramista, sambadeira e também rezadeira. Hoje é líder do grupo Filhos de Dona Cadu, que tem seu filho como vocalista e sua filha como sambadeira. Além de ter criado seu próprio estilo de samba, o samba de pulinhos.

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