A Morte Branca do Feiticeiro Negro (2020): uma vida ceifada pela escravidão e ressuscitada pelo cinema

A morte branca do feiticeiro negro é um curta-metragem produzido pela Gata Maior Filmes, de Santa Catarina, e dirigido pelo cineasta Rodrigo Ribeiro. Lançado em 2020, o filme, de forte caráter memorialista, revisita o passado escravagista brasileiro através do relato íntimo de Timóteo, um homem negro escravizado, que morreu em Salvador no ano de 1861 ao cometer

Por Lecco França*

Imagem: Reprodução

A morte branca do feiticeiro negro é um curta-metragem produzido pela Gata Maior Filmes, de Santa Catarina, e dirigido pelo cineasta Rodrigo Ribeiro. Lançado em 2020, o filme, de forte caráter memorialista, revisita o passado escravagista brasileiro através do relato íntimo de Timóteo. Um homem negro escravizado que morreu em Salvador no ano de 1861 ao cometer suicídio, sua estratégia de insurreição e de liberdade, o caminho que encontrou para amenizar o seu banzo (palavra da língua quicongo que nomeia o sentimento de melancolia nutrido pelos inúmeros africanos escravizados em relação à terra natal e de aversão à privação da liberdade) cujo verbete ganha destaque logo na abertura da obra. A história do protagonista representa uma das muitas vidas ceifadas, apagadas e silenciadas pela violência da colonização, mas que, nesse caso, se manteve viva através das palavras transcritas em uma carta. São exatamente os fragmentos desse texto, escrito em um português antigo, que conduzem a trama, e que chamam a atenção para a importância da palavra em um contexto de opressão e de invisibilidade.

Trazendo a carta como um gênero textual, com elementos constitutivos importantes a exemplo do remetente e do destinatário a quem seria direcionada a mensagem da missiva, Timóteo expõe entre outras coisas, seu desejo de não existir – diante de uma existência atrelada ao sofrimento –, a intenção de justificar seu ato (o suicídio) e a quantidade de tentativas de dar fim a sua vida. Nesse sentido, além de “banzo”, uma outra palavra ganha destaque na narrativa: “perdão”, que pode ser interpretado de duas maneiras, a depender de quem seria o destinatário da carta. Na perspectiva cristã, o perdão se refere a uma mudança de sentimentos e atitudes em relação a uma ofensa criminosa; deixa-se de lado os impactos negativos desse ato, sem necessariamente ter garantido a justiça restaurativa ou resposta por parte do agressor. Nesse caso, a referência ao perdão poderia ser direcionada aos causadores do sofrimento de Timóteo, representado pelo homem branco rico escravagista e toda a sociedade estruturada nessa lógica. Inclusive, ele faz referência a Sinhá Pombinha e sua família, em sinal de agradecimento. Contudo, o perdão pode incluir o ato de perdoar a si mesmo, ação que seria justificada pelo fato de Timóteo ter cometido suicídio, já que para o Cristianismo, o suicídio é considerado pecado gravíssimo.

O filme é todo construído pela reunião de diferentes imagens de arquivo, resultado de uma rica pesquisa realizada por Julia Franco e Rodrigo Ribeiro, e que revelam, por exemplo, as divergentes funções sociais entre brancos e negros na sociedade brasileira do final do século XIX e a dura e sofrida rotina de trabalho dos negros nas fazendas. Questões ilustradas  na cena que mostra uma mulher negra, provavelmente escravizada, guiando algumas crianças brancas; ou um homem, também negro, que olha diretamente para a câmera enquanto levanta a mão em direção ao pescoço, em um gesto similar ao enforcamento; ou uma mulher, também possivelmente escravizada, que cata sementes no solo de uma plantação e as despeja nas mãos de um homem branco, vestido de terno, provavelmente seu senhor, ou ainda um garoto negro carregando um cesto no meio da lavoura. Assim, o texto original, inicialmente registrado em um suporte analógico, ganha uma outra dimensão através do digital. A carta agora ganha imagens, que dialogam com o texto transcrito nas legendas, garantindo e fortalecendo a existência desses sujeitos.

Do ponto de vista técnico, o filme apresenta um eficiente trabalho de montagem feito por Rodrigo Ribeiro, Carlos Eduardo Ceccon e Julia Faraco, que reúne imagens de um passado cruel e doloroso, que se perpetua ainda no presente dos espaços urbanos e rurais. Da casa grande, da senzala e das plantações no ambiente campestre, em um tempo anterior, até o presente que nos leva ao Pelourinho, em Salvador, hoje conhecido como palco de festas e visitado por turistas do mundo inteiro, em especial, pela beleza de sua arquitetura histórica, mas que reúne muitas memórias de sofrimento e dor, nos subsolos de seus casarões, e no suor e sangue derramado pelos inúmeros negros escravizados que ergueram esses espaços. Para fechar, a trilha sonora de Cadu Tenório e Juçara Marçal reforça os efeitos emocionais de mistério, de lamento e de terror que a trama apresenta.

O filme já foi exibido em diferentes festivais e mostras nacionais e internacionais, como o DocLisboa, em Portugal, o Dobra – Festival Internacional de Cinema Experimental, entre outros, e recebeu os prêmios de Melhor Filme no III Griot – Festival de Cinema Negro Contemporâneo e o Prêmio Revelação no 31º Festival Internacional de Curtas Metragens de São Paulo – Curta Kinoforum, em 2020.

 

*Professor universitário, pesquisador, escritor, cineclubista, curador e crítico de cinema. Membro da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (APAN). E-mail: leccofranca@gmail.com.

 

 

 

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