Mortes em Salvador (Ba) do menino Ryan e do policial Wesley, ambos negros, expõem o impacto da truculência policial na saúde mental da população negra – um velho problema agravado durante a pandemia da Covid-19
Por Gabriel Rodrigues
Na sexta-feira (26 de março), os moradores do complexo do Nordeste de Amaralina, em Salvador (Ba), presenciaram mais uma noite de terror pela atuação da Polícia Militar no bairro, resultando no homicídio do menino Ryan Andrew, de apenas 9 anos. A truculência dos agentes de Segurança Pública não é uma novidade para os moradores de comunidade na cidade, muito menos no resto do Brasil.
Há cerca de um ano, em meio à crise sanitária da Covid-19, a preocupação das pessoas negras extrapolam o medo de contaminação pelo coronavírus. Violência policial, encarceramento, a fome e o adoecimento psíquico, são exemplos históricos das políticas de morte promovidas pelo Estado, ainda mais escancaradas neste contexto.
Márcia Ministra é moradora do Nordeste de Amaralina, militante do Movimento de Mulheres Negras, cientista social e atua em duas organizações da sociedade civil no bairro: o Odara Instituto da Mulher Negra e a Cipó – Comunicação Interativa. Ela defente que as políticas armamentistas do Estado e o próprio formato de segurança pública, construído com base nos moldes coloniais escravocratas, precisam ser revisto com urgência. “Uma grande parte da sociedade brasileira racista não se sente comovida com esse genocídio negro. Para eles, de uma certa forma, é o trabalho do braço armado do Estado sendo feito com eficiência, mesmo custando a vida de mais uma criança negra” declara.
Não à toa, no dia 28 de março, dois dias após a morte do menino Ryan, na mesma Salvador, a mesma polícia protagonizou outra cena de morte que ganhou repercussão na mídia. Neste caso, um agente da própria instituição, Wesley Soares. O policial militar foi morto no Farol da Barra depois de efetuar disparos para cima e contra a equipe do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) que tentava negociar. Nos vídeos que circularam na internet, após dirigir descontroladamente pelas ruas, esbarrando em postes, o PM para o carro, desce fardado, com fuzil e pistola. Em nota, divulgada pela Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA), o órgão alega que o agente estava, aparentemente, em um surto psicótico.
A brutalidade policial e os impactos psíquicos na população negra
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil ocupa o quarto lugar no ranking global de países com maior prevalência de depressão, além de acumular altos números também nos diagnósticos de ansiedade. No relatório, entre 2012 e 2016, houve um aumento de 46% entre a população negra em relação aos índices de pessoas brancas. As informações chamam atenção ainda para o impacto entre adolescentes e jovens negros (es/as), entre 10 e 29 anos.
Para o mestre em psicologia, Djean Ribeiro, que atua na Central Integrada de Alternativas Penais (CIAP), os casos de violência são bastante delicados, sobretudo quando considera o impacto que as mortes resultantes da atuação policial e do crime organizado podem trazer para outras pessoas que têm a cor das vítimas. “Qualquer corpo negro caído no chão e sem vida, ainda mais em via pública, assombra os pensamentos de uma pessoa negra que pode se imaginar ali também”, explica o especialista.
Além disso, Djean aponta para o fato da violência atravessar a vida da população negra cotidianamente. “Imaginar que a instituição da polícia militar é paga para produzir proteção na sociedade, ao mesmo tempo que foi a responsável direta pela morte dessas duas vidas, faz com que não nos sintamos protegidos e elegidos para viver pelo Estado”, afirma o psicólogo.
Para o professor e advogado, Samuel Vida, os recentes episódios no bairro do Nordeste e na Barra possuem elementos comuns, principalmente ao avaliar as políticas de segurança do Estado, que alimenta a brutalidade em locais vistos como marginalizados. O especialista, que é coordenador do Programa Direito e Relações Raciais – PDRR, e Secretário-Executivo do AGANJU – Afro Gabinete de Articulação Institucional e Jurídica, afirma que a estratégia central dessas práticas expõe o padrão de ilegalidade sistemática e letalidade em alta escala contra a população negra.
Segundo o especialista, “a PM tem produzido verdadeiras máquinas de matar, através de companhias especializadas em praticar terror de estado contra as comunidades negras. Podemos dizer que o padrão da política de segurança pública do governo baiano é tamanho G, de Genocídio”, afirma o advogado, satirizando a publicidade do governo do estado da Bahia que alardeia suas obras tamanho “G”.
Para Samuel Vida, a atuação do governador Rui Costa (PT – Ba), se assimila com o autoritarismo e a própria militarização da política. Nesse sentido, o advogado explica que tais práticas podem ser observadas até mesmo como aliadas às propostas do governo do presidente Jair Bolsonaro e outros governadores estaduais, a exemplo de Wilson Witzel (PSC-RJ) e João Dória (PSDB-SP).
“Em diversos momentos, o Governador Rui Costa expressou publicamente suas concepções conservadoras em temas de segurança pública, a exemplo da crítica veemente às audiências de custódia, proposta de militarização da educação pública e o apoio entusiasmado ao pacote Moro do governo Bolsonaro e suas propostas inconstitucionais de incremento da repressão e de proteção das ações ilegais de agentes de segurança”, afirma.
Lutas sociais pela garantia da vida
O número de mortes pelo coronavírus no Brasil já ultrapassou a marca de 300 mil vítimas, e segue em crescimento alarmante, diante da imprudência do Governo Federal. A população negra tem sido a mais afetada não só pela letalidade da doença, mas pelos problemas sociais agravados pela pandemia. Segundo Márcia Ministra, a atuação dos movimentos sociais têm sido crucial para amortecer os impactos da Covid-19, e conter o desesperador cenário de fome, realidade de milhões de brasileiros.
Nesse sentido, a militante aponta para a importância das mulheres negras para o levante da agenda antirracista e a perspectiva do Bem Viver como projeto de sociedade. “Direito à vida digna, saúde, cultura, lazer, uma educação de qualidade. Com isso, a nossa luta é também contra esse capitalismo devastador e que ceifa vidas junto ao racismo”, afirma Márcia Nascimento, que reflete que a pandemia escancara a necessidade de construirmos outro pacto civilizatório.
O caso do menino Ryan Andrew
Conforme relatos de familiares e vizinhos largamente veiculados na mídia, Ryan Andrew era uma criança alegre, extrovertida, comunicativa e cheia de planos para um futuro – brutalmente interrompido. A mãe do menino, Cássia Pereira dos Santos, comerciante autônoma, disse em entrevista ao portal Nordesteusou: “O sonho dele era ser um grande jogador, um Neymar da vida, para poder me dar uma casa”.
A repercussão na internet sobre a morte do menino Ryan resultou em uma série de denúncias sobre a constante violência policial, assim como também mobilizou familiares, moradores e ativistas de direitos humanos a realizarem protestos pedindo por justiça. Márcia Ministra chama a atenção para a recorrência de assassinato de jovens no bairro. “Tivemos no bairro Nordeste de Amaralina diversas vidas negras ceifadas e que ainda não obtivemos o resultado, que é a justiça. Podemos falar de menino Joel, Vinicius, Alex, Junior, Thiago e outros”, afirma a professora.
O Instituto Odara atua na construção de trabalhos que deem seguimento as pautas dos direitos humanos, a fim de garantir os mecanismos de prevenção do genocídio contra jovens e crianças negras junto às famílias. Com o projeto “Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar”, o instituto tem realizado ações com famílias vítimas da violência policial em três bairros periféricos de Salvador (Nordeste de Amaralina, Cabula e Uruguai).
“As mães além de ter seus filhos assassinados ainda têm que provar a sua inocência perante a justiça, muitas não conseguem, desistem, são ameaçadas e vivem infinitamente seu luto. O projeto Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar tem acompanhamento psicológico, advogados e oficinas de direitos e cidadania, para além disso, tentamos restabelecer e fortalecer as mesmas a sentirem-se vivas para cuidar dos outros que por muitas vezes passam também a serem alvo das violações de direitos e dessa violência policial” explica Márcia.
Segundo a cientista social, outro ponto que o Movimento de Mulheres Negras tem buscado debater é o discurso falacioso de que a morte dos jovens negros está ligada, exclusivamente, a guerra às drogas. “A juventude negra periférica é vigiada e punida o tempo todo já que a sociedade racista precisa de respostas e de culpados. Já que a indústria do crime colocou na nossa conta, e não recebemos o lucro. O lucro do crime tem cor e não é negra”, afirma.
A exposição a essa constante violência tem sido motivo de preocupação entre estudiosos e profissionais da saúde mental. Para o pesquisador Djean, o cenário retrata o contexto necropolítico apontado pelo filosófo camaronês Achille Mbembe, onde os corpos negros são neutralizados em função de uma política de controle acerca daqueles que merecem viver e os que podem morrer. Dentro dessa lógica, a polícia seria um dos dispositivos de gestão da morte, operado pelo Estado.
“Um dos maiores fatores sociais que desestruturam a saúde mental da população negra é a relação com a segurança produzida pelo Estado. Os altos índices de óbitos que se repetem geracionalmente demonstram a superexposição à mortes causadas em incursões policiais em territórios majoritariamente negros e/ou empobrecidos, com frágeis presenças de dispositivos de políticas públicas de educação, saneamento básico, saúde, assistência social e outros” afirma especialista.
O psicólogo explica também que os sentimentos de angústia, tristeza constante etc, são férteis para desencadear quadros de ansiedade, depressão e estresse pós-traumático. Além disso, chama atenção para o impacto na vida de crianças que crescem em meio a violência. “Observar o contexto de uma criança como essa e pensar a infância como fase de desenvolvimento é constatar que elas tentam crescer em um cenário de guerra. Como brincar e se divertir se pode ser baleado ou ficar no meio de um tiroteio?”.
O caso do policial militar Wesley Soares
Os desdobramentos em torno da morte do policial militar Wesley têm promovido um intenso debate, principalmente na internet. À medida que as imagens viralizaram, a atenção acerca dos motivos que levaram o PM à desorganização mental, como aponta o psicólogo Djean Ribeiro, tem perdido espaço para discussões políticas, engajadas pelos representantes do bolsonarismo. Em meio a tudo isso, surgiram inúmeras notícias falsas, o que dificulta a reflexão sobre o que pode ter levado o agente ao que a SSP-BA classificou como “surto”.
Segundo Djean, compreender o funcionamento rígido da instituição, que coloca policiais em condições altas de pressão, punições severas, contextos de extrema violência e de produção de sofrimento, são fundamentais para refletir sobre o caso de Wesley. “Fatos como esses apontam um cotidiano emocionalmente desregulador, o que sugere indagar se todo profissional de segurança pública passa por avaliação frequentemente e o quão seguro estamos”, sinaliza psicólogo.
A declaração do comandante do Bope, Major Clédson Conceição, divulgada pela SSP-BA diz: “Os nossos objetivos primordiais são preservar vidas e aplicar a lei. Buscamos, utilizando técnicas internacionais de negociação, impedir um confronto, mas o militar atacou as nossas equipes. Além de colocar em risco os militares, estávamos em uma área residencial, expondo também os moradores”.
Em um dos vídeos, antes de ser alvejado, Wesley Soares aparece proximo ao monumento do Farol da Barra, pintando o rosto de verde e amarelo e dizendo palavras de ordem. “Comunidade, venham testemunhar a honra ou a desonra dos policiais militares da Bahia”. Na internet, as falas têm sido usadas por bolsonaristas para contestar a atuação do governador Rui Costa, diante das medidas restritivas por conta da pandemia.
Entre os críticos ao governo, temos o vídeo do ex-policial e deputado estadual (PSC-BA) Soldado Prisco e um tweet (excluído momentos depois) da deputada federal Bia Kicis (PSL – DF), atual presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. O deputado federal Marcelo Freixo (PSOL – RJ) se posicionou através do Twitter, apontando ilegalidade na postura da deputada Bia Kicis, chamando atenção para o fato da mesma já ter assumido ser a favor da intervenção militar dentro do parlamento.