A pele que habito – Um retrato sobre a saúde mental da população negra

Por Morgana Damásio
Com colaboração de Alane Reis

Não sabia se era dia ou noite, tudo era breu. Ao estalar de açoites seu corpo ofegante se comprime entre centenas de outros, alguns sem vida há dias, pulsos e pernas acorrentados. O suor se mistura a lágrima, ao sal e ao odor de fezes e urina do ambiente úmido. Gritos, canções e delírios embalam a lembrança de tudo que foi, sua terra e os seus. Lá fora a imensidão. “Estamos em pleno mar”. Aportado, é um mar de melancolia, não se alimenta, deseja, e até tenta, a morte.

Esse “estado de espírito” foi atribuído por muitos livros de história ao banzo, um fenômeno que acometia os negros escravizados que chegavam ao Brasil nos navios negreiros. O banzo, essa condição psíquica folclorizada e romantizada, é uma pista de como a saúde mental da população negra sempre foi, e ainda é negligenciada.

A escravidão fincou marcas no Brasil e as cicatrizes permanecem. Em uma rápida análise de indicadores sociais é perceptível que os percentuais da população negra ainda estão em cruéis disparidades em comparação a população branca. Esse cenário e a as raízes do sistema escravocrata sinalizam  a ocupação de um lugar social e de um lugar simbólico no imaginário da sociedade brasileira. “O racismo tem essa ótica de hierarquização da sociedade e manutenção das estratificações e desigualdades. É a ideia de que determinados povos servem pra serem dominadores e outros para serem dominados, subordinados. É a lógica de que alguns devem exercer funções mais intelectuais e outros mais braçais”, explica o mestre em psicologia e especialista em psicoterapia analítica e saúde coletiva, Carlos Vinicius Gomes.

DA MENTE AO CORPO

Taquicardia, stress, raiva, mágoa, sentimento de inferioridade. Segundo Vinicius, estas são algumas respostas que o organismo pode manifestar diante de situações de discriminação. “Quando constante isso vai desencadear uma série de neurotransmissores e hormônios que vão interferir no equilíbrio do seu organismo, a homeostase, provocando o distress, que é o stress para além do que o corpo naturalmente pode se autorregular” explica.

“Como o racismo te coloca o tempo todo em situação de tensão, há um dispenso de energia muito grande, você se depara com um olhar atravessado, um xingamento, uma brincadeira que se diz brincadeira, mas é ofensa. Isso produz um nível de stress para além do cotidiano”, afirma Maria Lúcia da Silva, fundadora do  Instituto AMMA Psique e Negritude, uma organização não governamental que desde 1995 tem buscado por meio de formação e prática clínica, identificar, elaborar e combater o racismo e seus efeitos psicossociais.

Com o distress um dos hormônios que pode ser produzido em excesso  é o cortisol, que em níveis excedentes pode interferir em uma série de doenças, como a hipertensão arterial. “Quando se pensa na saúde da população negra a gente vê que a hipertensão arterial é um dos problemas. Algumas pessoas tentam relacionar com o navio negreiro e o sal do mar e desconsideram o cotidiano de stress que se passa do acordar ao dormir, alguns até rememorando ao dormir”, diz Vinicius.

Carlos Vinicius Gomes também explica que a relação psicossomática também pode acarretar problemas gastrointestinais e afetar o sistema imunológico, deixando o indivíduo mais vulnerável a doenças respiratórias, fúngicas e cânceres.

Para a Mária Lúcia da Silva, o racismo permeia toda trajetória dos corpos negros. “ Ele incide em diferentes construções, como a auto-estima, que é a construção da nossa subjetividade. Ele interfere na forma que me vejo. Na infância, crianças vivem constantemente situações de racismo, mas não tem maturidade psíquica para nomear o que está acontecendo. Então pode pensar que existe algo que não é bom nela”, explica.

NÃO ESTAMOS BEM

Um estudo veiculado em 2014 na publicação científica Addictive Behaviors ouviu cerca de  4,5 mil pessoas negras com idade entre 18 e 65 anos sobre possíveis situações de discriminação racial que pudessem ter vivenciado. 83% dos entrevistados afirmaram que foram vítimas de algum tipo de discriminação no último ano, cerca de 50% relataram que sofreram todas as formas de racismo analisadas no estudo e 14,7% disseram passar com frequência por  discriminação de todos os tipos. Segundo os pesquisadores, as pessoas que integram os dois últimos grupos apresentaram maior propensão a depressão e dependência química do que os outros. “Muitos amigos de uns anos pra cá tem sido diagnosticados com depressão e ansiedade. Eu vivi parte da minha adolescência em depressão, mas sem saber que aquilo era depressão, só na fase adulta vim entender algumas questões”, partilha Naira Évine, idealizadora do projeto colaborativo “Não estamos bem”.

A iniciativa nasceu em 2016, por meio de um portal e uma fanpage no facebook, colocando a saúde mental da pessoa negra em foco através de uma rede de desabafos onde é possível partilhar suas vivências e emoções. O projeto não realiza nenhum tipo de diagnóstico e os participantes são orientados a buscar ajuda profissional, em alguns casos a rede conseguiu mobilizar profissionais para acompanhamento psicológico. “A sociedade capitalista nos adoece de diversas formas, mas existem alguns corpos que adoecem mais que outros. O genocídio é real, mas não é apenas físico. Recebemos muitas mensagens dolorosas, as histórias dialogam com os corpos negros atrás da tela, é preciso verbalizar”, diz.

Apesar de ser algo latente, no país não existem dados oficiais sobre a saúde mental da população negra. Ainda é preciso que as políticas públicas encarem a realidade de frente e que os  profissionais de saúde estejam sensibilizados sobre o problema.

 

 

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