Abusadores invisíveis nos lares: a epidemia da violência sexual contra crianças e adolescentes por pais e padrastos

Enxergar e refletir a realidade que assola crianças e adolescentes no Brasil quanto à violência sexual é apavorante. Ainda que seja um tabu para tantos, levantar esse debate é urgente e mais que necessário.

Por Karla Souza

Enxergar e refletir a realidade que assola crianças e adolescentes no Brasil quanto à violência sexual é apavorante. Ainda que seja um tabu para tantos, levantar esse debate é urgente e mais que necessário. Existem diferentes tipos de violência sexual e ocorrem sobretudo aos mais vulneráveis, que não possuem mecanismos para se defenderem.

É estabelecida como violência sexual por lei toda ação que impõe às vítimas a manterem contato sexual, físico ou verbal, ou a participar de outras relações sexuais com uso da força, intimidação, coerção, chantagem, suborno, manipulação, ameaça ou qualquer outro mecanismo que anule ou limite a vontade pessoal. Ainda se configura como tal, quando o agressor obriga alguém a realizar alguns desses atos com terceiros.

Quatro estupros a cada minuto – meninas negras são a maioria das vítimas 

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) realizou um estudo, tendo como base o período de 2009 a 2019, para calcular a proporção dos casos estimados de estupro que não são identificados pela polícia ou pelo sistema de saúde e concluiu que por ano são cometidos entre 822 mil e 2,2 milhões de casos de estupros, o que equivale à máxima de quatro abusos a cada minuto. Dentre esses crimes, apenas 8,5% chegam a ser identificados pela polícia e 4,2% pelo sistema de saúde.

O mesmo estudo aponta que a estimativa de estupros de pessoas menores de idade, em 2019 no Brasil, passou de 1,5 milhão de casos e destaca as desigualdades regionais. Os seis estados com maiores percentuais de prevalência do crime em relação ao contingente populacional foram respectivamente: Goiás, Sergipe, Roraima, Amapá, Maranhão e Pará. 

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2023), a maioria das vítimas de estupro são do sexo feminino (88,7%), crianças de até 13 anos (61,4%) e negras (56,8%). Crianças com idade de 0 a 13 anos foram violentadas por conhecidos em 86,1% dos casos, e familiares estiveram entre 64,4% dos agressores. A exploração sexual infantil cresceu 16,4% em relação a 2021.

Violentadas por aqueles que mais deveriam as proteger: 4 de 10 abusadores sexuais infantis são genitores ou padrastos

Ao imaginar a descrição de um abusador, muitas vezes pensamos em homens com histórico criminoso, recluso da convivência em sociedade. No entanto, os dados mostram que esse perfil não é o da maioria dos violadores de crianças e adolescentes. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2022) informa que eles são homens (95,4%) e também são conhecidos da vítima (82,5%), 40,8% eram pais ou padrastos; 37,2% irmãos, primos ou outro parente e 8,7% avôs.

Nathalia Santos de Jesus (18), uma jovem nascida no município de Irará (BA) e atualmente residente em Camaçari (BA), foi abusada pelo genitor dos 11 aos 13 anos. Recentemente ela utilizou as redes sociais para denunciar publicamente as diversas violências que o genitor cometeu quando ela ainda era uma criança e as ameaças feitas por ele após repercussão do caso na internet.

“A dor que carrego no meu coração, de ter sido abusada pelo meu próprio pai, não tem mensura dentro do meu peito de tanta dor”, declarou Nathalia. Ela também explica que o fato de o pai não assumir os atos e ainda ameaçá-la por dizer a verdade aumenta o seu sofrimento.

Em diferentes vídeos, a jovem relata como as violências ocorriam. Os crimes sucederam em ambientes distintos, como na casa da avó, quando o abusador fingia que estava a ensinando a pilotar moto, quando estavam sozinhos no quarto, na casa dele e na sala, tudo durante as férias escolares, os únicos momentos que passava com ele, pois a menina morava com a mãe. Nathália denunciou que o genitor dirigia frases de teor sexual, passava a mão e esfregava os órgãos sexuais pelo seu corpo quando a dopava com remédios. Ela contou que o pai já ficou nu na frente dela, e tentou convencê-la que era normal pais e filhas terem relações sexuais. Em outros momentos ele tentou consumar o estrupo, e mais recentemente ele a ameaçou.

Em mais um relato virtual, ela conta que se sentia culpada pelo que o pai fazia. “Ficava aquele medo de falar, o sentimento de culpa. […] Eu ficava; meu Deus, por que meu pai está fazendo isso comigo se ele diz me amar? Eu sentia muito medo de falar e ele me machucar.”

Nathália conseguiu contar o que vinha sofrendo para a mãe em 2018, que acreditou imediatamente na filha. “Sou grata por ter a mãe que tenho, porque infelizmente existem mães que não acreditam nos seus filhos quando eles relatam isso.”

Aos 13 anos, Nathalia e a mãe foram denunciar as violências sexuais que o pai cometia. Segundo a vítima, o caso foi arquivado e o abusador não foi preso porque ele não chegou a penetrá-la. O genitor enfrenta no momento um processo na justiça pela falta de pagamento de pensão.

Atualmente ela tem feito declarações falando das ameaças que tem recebido do pai após suas denúncias terem viralizado. Em uma gravação de chamada de voz da vítima com o genitor, divulgada na internet, ele questiona o porquê de a filha ter tornado públicas as violências e a ameaça dizendo: “você vai ver, você vai ver o que vou fazer amanhã”.

Padrastos abusadores: Outros abusos sexuais no círculo intrafamiliar

De acordo com Victoria de Aguiar Araújo, psicóloga infantil, o pai ou padrasto precisa passar amor, carinho e confiança. A profissional informa que o processo de formação da criança e do adolescente não se dá exclusivamente pelo estabelecimento do ensino forjado na infância, mas também por via das relações que são extremamente importantes. Ela elucida que é na família que ocorrem as primeiras relações de cada pessoa, e é por meio dessas relações que é constituída a subjetividade, tal qual a autoestima e confiança.

Victoria de Aguiar atua no consultório e na plataforma do Social Psico Afro, onde atende utilizando a Abordagem Centrada na Pessoa – Imagem: Arquivo pessoal.

“A gente sempre pensou na figura paterna relacionada a alguém com autoridade, que trazia respeito, enquanto a mãe era a figura afetiva. Mas hoje a gente entende que um pai afetuoso tem grande influência na vida e desenvolvimento de uma criança segura, aponta a psicóloga, enfatizando o papel de responsabilidades da figura paterna na vida das crianças e adolescentes.

Existem diferentes tipos de violências sexuais e as crianças e adolescentes podem ser acometidas por uma ou várias delas.

Vítima de abusos na adolescência, cometidos pelo padrasto e por um primo, a baiana Kelly Pereira* ainda carrega traumas e nojo do que fizeram com ela. Na época, percebia olhares maliciosos vindos do seu padrasto, um homem que já estava há anos se relacionando com sua mãe. O assédio evoluiu e chegou ao ponto dele proferir falas de teor sexual, declarando que “não parava de pensar nela”.

Kelly se sentiu mal e sabia que aquilo não era certo, logo contou tudo para a mãe. Porém, as palavras da garota não foram suficientes para que sua mãe acreditasse nas acusações de assédio sexual que a filha estava sofrendo. A mulher respondeu que a menina provavelmente não teria entendido direito o que o padrasto havia falado, e que ele jamais a violentaria.

“Hoje, com 34 anos, tive apenas dois relacionamentos sérios que foram com os pais dos meus filhos. Demorou muito para eu confiar em deixar meus filhos só com os pais. Eu sempre evitei que eles ficassem a sós”, desabafou Kelly.

Kelly tem medo do convívio dos filhos com outros familiares, pois sabe que estas violências acontecem principalmente dentro dos lares, independente do grau de parentesco e do gênero. “Quero passar confiança aos meus filhos de que estou aqui para apoiá-los, e que sim: existe assédio e abuso.”

Mariana de Jesus* é uma mulher de 60 anos, negra, do interior da Bahia, também sofreu abusos sexuais do próprio padrasto quando era uma criança e enfrentava pneumonia. Ela conta que convivia com o padrasto desde os três anos e dividia com ele, a mãe e irmãos a rotina na lavoura. Sendo de uma família pobre, as crianças dormiam juntas em esteiras de palha colocadas no chão e em outro quarto dormia o casal em uma cama.

Com o agravamento da pneumonia foi necessário que Mariana dormisse em um lugar aquecido, então ela passou a dormir na cama, entre a mãe e o padrasto. “Foi a partir daí que comecei a sofrer os terríveis abusos provocados pelo meu padrasto. Lembro que sempre me assustava no meio da noite com aquelas mãos horrorosas sobre meu corpo. Eu ficava estática, retraída… O medo tomava conta de mim e eu não conseguia falar com minha mãe o que estava acontecendo porque ela não iria acreditar em mim. Passei a não querer ir para a cama deles, mas eu era obrigada”, relatou a vítima quanto aos momentos de terror que viveu. “Sempre aquela mão maldita querendo me tocar e eu sempre me encolhia muito para ele não tocar em minhas partes íntimas.”

Somente aos doze anos ela veio a se curar da pneumonia, momento em que passou a trabalhar como babá para os patrões do abusador. 

Tempos depois, Mariana voltou para a residência da família, lugar onde se sentia amedrontada e insegura. Só aos 16 anos a adolescente se livrou da ameaça e convívio do padrasto ao se casar com um jovem.

Passados 40 anos das violências que sofreu, a vítima conseguiu conversar com uma prima sobre, e assim descobriu que sua prima também havia sido vítima do mesmo homem quando era criança.

“Hoje me sinto bem mais forte! Sou capaz de denunciar, de pedir socorro. O alerta que deixo para qualquer pessoa que esteja sendo vítima de abusos sexuais ou passando por algo parecido é que não se cale, abra a boca, denuncie!”, declarou Mariana.

Educação sexual nos lares e abuso

O bem-estar de crianças e adolescentes depende de muitos fatores e a educação sexual está entre eles. No entanto, o tema ainda é censurado nos diálogos em boa parte dos lares.

Jamily Sena, pedagoga e sexóloga, especialista em saúde e educação sexual, entende que a forma como somos educados sexualmente na infância e adolescência impacta diretamente no modo como encaramos o assunto na fase adulta e no processo de ensinar sexualmente. Ela acrescenta que a cultura e religião na qual a família está inserida podem ser fatores negativos na hora de aplicar a educação sexual, isto porque a sexualidade, em algumas religiões e culturas, é tratada como algo ruim, feia, suja e pecaminosa para o mundo infantil.

Jamily Sena trabalha como consultora na promoção em saúde e educação sexual em clínicas especializadas, além de palestrante e educadora sexual – Imagem: Arquivo pessoal

Para que a educação sexual seja assertiva é preciso respeitar a idade da criança e adolescente, adaptar a abordagem e linguagem para diferentes faixas etárias. Segundo Jamily, quando crianças, o recurso deve ser lúdico, levando compressão do tema através do imaginário, utilizando livros didáticos e materiais apropriados. “É necessário ensinar o que são partes íntimas e privadas, toque do sim e do não, nomear corretamente as genitais. Esses são recursos que auxiliam no processo de aprendizagem, lembrando sempre que é natural a curiosidade da criança e o desejo de conhecer o mundo e seu próprio corpo, e não há nada de errado nisso”, explica.

Existem etapas primordiais para garantir o cuidado com as vítimas durante as conversas a respeito dos abusos. Na opinião de Jamily, o primeiro passo é garantir a confidencialidade da conversa – o que significa que você não vai sair contando para todo mundo, mas deixando claro que irá denunciar o crime; oferecer um lugar seguro e reservado e passar segurança. Ela informa que também é fundamental escutar atentamente, não julgar ou fazer suposições sobre o que a criança ou adolescente precisava fazer quando foi violado intimamente, mas sim perguntar abertamente para encorajar a vítima a compartilhar e relatar o ocorrido. 

Sintomas e sequelas

Proteger e assegurar o bem-estar de crianças e adolescentes pode depender da identificação de sinais de abuso sexual. 

Imagem: Deposiphotos

Jamily Sena conta que o abusador pode usar de sedução ou ameaças para cometer o crime, que pode não ser necessariamente uma relação sexual genital. Atos libidinosos como toques, carícias, exibicionismo, entre outros, também são configurados como crime de abuso sexual infantil. Além disso, a psicóloga pontua que existem alguns sinais que podem ser indícios de que a criança ou adolescente está sendo vítima de abuso sexual. Ela destaca mudanças repentinas no comportamento, sem motivo aparente; distúrbios do sono; comportamento sexual inadequado, apresentando comportamentos sexualizados incongruentes para a idade; queda no desempenho escolar; ou evitação do padrasto/pai; comportamento autodestrutivo; e comportamento regressivo.

A educadora ressalta que os indicativos devem ser um conjunto de sinais que surgem de forma repentina e brusca, muitas vezes apresentados de maneira repetitiva, não se limitando a casos isolados.

Violência sexual é um fator de risco para o desenvolvimento cognitivo e da saúde mental de crianças e adolescentes, gerando respostas desadaptativas que podem se estender para a vida adulta. A psicóloga Victoria de Aguiar informa que as vítimas podem ser acarretadas pelo transtorno por estresse pós-traumático, transtorno depressivo, déficit de atenção, transtornos alimentares, sentimento de culpa, insegurança e medo, podendo gerar timidez, agressividade, embotamento afetivo, isolamento, alterações no sono, fuga de casa, sexualidade exacerbada, baixo autoestima, desesperanças sobre o futuro, entre outra série de fatores.

“O psicólogo infantil trabalha com a ressignificação e elaboração de tudo que aconteceu.  É claro que às vezes as vítimas não têm ciência do que está acontecendo com ela, e trabalhamos sempre respeitando os limites das crianças e adolescentes”, conta a psicóloga.

Meios de proteção e garantias dos direitos da criança e do adolescente

Victoria de Aguiar explica que crianças e adolescentes vítimas de violência sexual devem receber atendimento socioassistencial, em uma linha de cuidado, sempre em parceria com a família. “Ela [vítima] vai receber o apoio emocional, a orientação com a família, acompanhamento do caso, articulação com outros serviços assistenciais, políticas públicas e órgãos que vão garantir os direitos determinados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).”

Como forma de fortalecer o (ECA), surgiu em 2006 o Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA), referência que legitima os direitos fundamentais das crianças e adolescentes. O Estado, a família e a sociedade civil, juntos, constituem o sistema, através da articulação e integração.

Caique Barreto é presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) de Feira de Santana (BA), organização que trabalha para combater constantemente as violações dos direitos de crianças e adolescentes na cidade. O Conselho atua por meio de uma rede de proteção composta por agentes estatais.

“O que vem nos chamando atenção são os números, coletados até maio, de violências sexuais contra crianças e adolescentes. Nos quatro primeiros meses de 2023, a rede de proteção constatou mais de 120 casos”, declarou o presidente do Conselho ao comentar sobre os dados levantados pelo CMDCA, a média de um abuso sexual por dia em Feira de Santana.

Barreto acredita que ao longo dos anos o número de queixas oficiais aumentou, mas ainda existem muitos casos que não chegam à rede responsável para gerar denúncias.

Ele conta que novos mecanismos estão sendo desenvolvidos junto ao Ministério Público e secretarias para não ocorrerem dificuldades quando as vítimas e familiares realizarem a denúncia. Caique explica que além das campanhas e trabalhos de incentivos, o maior meio de combate a esse tipo de violência é através do compartilhamento sobre as formas de denunciar.

Levante a sua voz: Formas de denúncias sobre abuso sexual cometido contra menores

Realizar denúncias sobre violências sexuais é um ato corajoso e existem algumas formas de fazer. Neste momento é importante preservar a segurança e bem-estar da vítima, assim como coletar o máximo de informações e detalhes possíveis sobre o caso, como nomes, endereços, descrições do agressor, datas e horários dos incidentes.

Entre os instrumentos para denunciar as violências sexuais contra crianças e adolescentes estão o “Disque 100” – onde é possível ligar gratuitamente e manter o anonimato da queixa; bem como buscar uma delegacia de proteção à criança e ao adolescente; contatar o conselho tutelar; falar com professores ou funcionários da escola; buscar ajuda de profissionais de saúde; utilizar a internet como ferramenta de pesquisa sobre redes de proteção; contatar ONGs e instituições de proteção à criança.

*As identidades das vítimas foram preservadas nesta produção.

Esta reportagem faz parte da série: Vozes Insurgentes de Mulheres Negras contra as violências sexuais

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