Por Andressa Franco*
Uma adolescente de 13 anos teve o pedido de aborto negado pelo Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO) depois que seu pai solicitou a proibição do procedimento da Justiça. A desembargadora que impediu o aborto argumenta que o crime de estupro não foi confirmado. No entanto, o Código Penal brasileiro considera estupro de vulnerável qualquer relação sexual com menores de 14 anos. No Brasil, o aborto é permitido nos casos de gravidez decorrente de estupro, risco de morte à gestante ou em caso de anencefalia do feto.
A vítima já completou 28 semanas de gravidez, mas quando manifestou ao Conselho Tutelar da região em que vive que queria interromper a gravidez, estava na 18ª semana. Ela chegou a declarar ao Conselho que, caso não tivesse acesso ao procedimento de maneira legal, buscaria realizá-lo por conta própria.
O suspeito do abuso é um homem de 24 anos que, segundo fontes ouvidas pelo Intercept Brasil, é conhecido do pai da menina.
O Hospital Estadual da Mulher de Goiânia foi o primeiro espaço a ser procurado para realizar o procedimento. Mas ao pedir autorização ao pai da adolescente, que tem sua guarda e chegou a questionar o próprio estupro, o hospital recebeu uma negativa, e então recorreu à Justiça. A primeira decisão veio quando a gestação já ultrapassava 20 semanas e autorizou a interrupção, mas utilizando técnicas para preservar a vida do feto, ou seja, uma espécie de parto antecipado.
No dia 27 de junho uma segunda decisão suspendeu qualquer interrupção. Isso porque o pai da vítima procurou a Justiça para obrigar a filha a manter a gestação. Ele recebeu ajuda de vários advogados, e pelo menos um deles é ligado a grupos antiaborto de Goiás. Fontes informaram ao Intercept que o pai está sendo auxiliado também por um padre e por uma freira da Igreja Católica. O veículo também recebeu relatos de que a própria adolescente é fruto de uma gravidez infantil, e que sua mãe, que hoje vive em outro estado, tinha apenas 12 anos quando ela nasceu.
O pedido do pai na Justiça foi para que a garota seguisse com a gravidez até a 30ª semana, quando o feto teria chances de sobreviver fora do útero.
Em casos em que a vontade da menor e de seu responsável legal divergem, ela passa a ser representada pelo Ministério Público (MP), com participação do Conselho Tutelar e Defensoria Pública. O MP de Goiás ingressou com um pedido de alvará de interrupção de gravidez em junho.
No final de junho, a juíza Maria do Socorro de Sousa Afonso e Silva autorizou a interrupção, mas apenas se realizada com métodos para preservar a vida do feto. Apesar de reconhecer em sua decisão que não existe prazo legal para interrupção da gestação oriunda de estupro, a magistrada proibiu procedimentos abortivos como a assistolia, em que o feto é induzido ao óbito dentro do útero, e que é o recomendado pela Organização Mundial da Saúde em interrupções acima de 22 semanas.
Diante da decisão, o pai da adolescente entrou na Justiça para adiar o procedimento, invocando o “direito à vida do nascituro”, e pedindo que a menina aguardasse até 28 ou 30 semanas. A desembargadora Doraci Lamar Rosa da Silva Andrade aceitou o pedido e proibiu a realização de qualquer procedimento até o julgamento definitivo, ignorando o fato de a gravidez ser fruto de um estupro. O caso corre em segredo de justiça.
Nas redes sociais, a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, declarou que está acompanhando o caso, e reforçou que casos como este sequer deveriam ter que passar pelo crivo da Justiça, dada a clareza da legislação brasileira. “Exigências desnecessárias como autorizações judiciais transformam a busca pelo aborto legal em um calvário na vida de meninas e mulheres. […] criança não é mãe, estuprador não é pai e a vida de uma criança corre risco se mantida a gravidez”, escreveu.
Vale destacar que não é a primeira vez que a juíza Maria do Socorro de Sousa Afonso e Silva – agora investigada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – se opõe ao aborto em caso de uma menor vítima de estupro de vulnerável.
Em 2022, ela vetou a interrupção da gravidez de uma menina de apenas 11 anos, cujo suspeito de praticar violência sexual era o padrasto, de 44 anos.
Segundo apuração do jornal O Popular, a mãe da criança denunciou o caso à polícia e o homem foi preso. Ela também assinou o consentimento para interromper a gestação, naquela altura com 22 semanas. Apesar de o relatório do Hospital Estadual da Mulher defender a realização do aborto – tanto por ser seu direito, quanto pelo risco à sua saúde – três dias depois, a juíza determinou a suspensão da interrupção da gravidez, atendendo ao pedido do pai da menina vítima de estupro.
PL do Estupro
Apesar de toda a mobilização no último mês contra o Projeto de Lei 1904, o PL do Estupro, que conseguiu engavetar o projeto por ora, tanto esse caso, como tantos outros, tem demonstrado que sistematicamente o que o PL defende já tem ocorrido na prática. O direito do feto prevalece aos direitos de uma menina estuprada no Brasil, que não tem dado conta de garantir um aborto legal e seguro nem mesmo nos casos há décadas previstos por lei.
Uma pesquisa Ipec divulgada na última terça-feira (16) mostrou que mais da metade dos brasileiros concorda com a legislação atual sobre os três casos em que o aborto é permitido no país. Mas a própria porcentagem de apoio a cada um dos casos é reveladora da importância dada à vida da gestante: 67% são a favor do aborto quando o feto não tem chances de sobrevivência, caindo para 62% quando o risco é à vida da gestante, e atingindo o menor percentual (58%) nos casos de estupro.