O pleito, que acontece a cada quatro anos, é facultativo e tem histórico de baixa participação, mas um forte apelo em segmentos conservadores da sociedade.
Por Andressa Franco
No próximo domingo (1), o Brasil realiza as eleições para conselheiros e conselheiras tutelares de todo o país. O pleito, que acontece a cada quatro anos, é facultativo e tem histórico de baixa participação, mas um forte apelo em segmentos conservadores. Pensando nisso, movimentos sociais têm alertado para a relevância do cargo.
Desde 1990, os Conselhos Tutelares desempenham uma função estratégica na sociedade de proteger e garantir os direitos de crianças e adolescentes. De acordo com o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, serão eleitos 30.500 conselheiros esse ano.
“A sociedade brasileira não reconhece a importância dessas eleições. É fundamental para a defesa dos direitos das crianças e adolescentes, porque os conselhos tutelares estão nas pontas e são porta de entrada para diversas violações de direito”, avalia Terlúcia Silva, assistente social, mestra em ciências jurídicas e ativista da Abayomi – Coletiva de Mulheres Negras da Paraíba.
A tarefa desses funcionário públicos, deve ser fazer cumprir o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Com incumbências como apresentar denúncias de direitos violados ao Ministério Público, garantir frequência escolar, solicitar tratamento médico e psicológico, e até mesmo suspender a guarda, em casos graves.
“O Conselho Tutelar tem a missão de agir diante de qualquer omissão do Estado ou da família.”, explica Camila Bahia, mobilizadora da campanha “A Eleição do Ano”, que catalogou candidatos(as) realmente comprometidos com os direitos das crianças e do adolescente.
Bíblia acima do ECA
Hoje, só em São Paulo e Rio de Janeiro, mais da metade dos assentos de cada conselho estão sob domínio de profissionais ligados a igrejas neopentecostais. Em São Paulo, representam 53% dos conselheiros que tomaram posse em 2020, segundo levantamento feito pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. No Rio não existe um dado oficial, mas de acordo com um levantamento feito por conselheiros a pedido do El País, lá esse número se aproxima de 65%.
Em setembro de 2020, o Ministério Público do Estado entrou com um pedido de afastamento de Ahlefeld Maryoni Fernandes, que é membro da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), do cargo de Coordenador dos Conselhos no Rio. Isso porque ele teria agido nas eleições de 2019 para beneficiar candidatos ligados ao seu grupo religioso.
Em cidades como Pioneira (AP), circulam vídeos de pastores evangélicos divulgando seus candidatos. A prática é proibida e pode configurar abuso de poder religioso.
“Igrejas neopentecostais fazem campanha, investem em suas candidatas e mobilizam para que no dia da eleição as pessoas cheguem no local de votação sabendo em quem votar mesmo sem saber o que essa pessoa vai fazer”, avalia Erika Francisca, Assistente Social e coordenadora o Projeto Ayomide, do Instituto Odara, um projeto de incidência política que acompanha dezenas de meninas negras na Bahia.
Se apropriar do discurso de “proteger as crianças”, principalmente de uma suposta “ideologia de gênero”, se tornou estratégia comum de políticos conservadores. O resultado têm sido a Bíblia e a defesa dos interesses de lideranças religiosas se sobrepor ao ECA.
Em sua trajetória, Terlúcia coordenou casas abrigo para mulheres e centros de referência, mantendo contato constante com Conselhos Tutelares. E observa uma mudança crescente no perfil dos conselheiros desde 2015. “Em 2019 houve uma perda muito grande de pessoas comprometidas, que fizeram campanha, mas perderam por essas estratégias.”
Para Camila, existe uma guerra cultural em curso, onde o avanço do interesse das igrejas neopentecostais fundamentalistas sobre os conselhos está inserido em um escopo nacional de disputa de poder. Afinal, a ocupação desse projeto político em cargos públicos não é um fenômeno recente.
A primeira representação da IURD se deu ainda na Assembleia Constituinte, com 30 deputados. Nas eleições de 2022, a Frente Parlamentar Evangélica (FPE), conhecida como bancada evangélica, anunciou recorde de parlamentares. No STF, a gestão Bolsonaro prometeu nomear pelo menos um ministro “terrivelmente evangélico”, e o fez com André Mendonça em 2021.
Assim, a disputa pelos Conselhos Tutelares também têm sido espelho e termômetro para construção de candidaturas para cargos nas casas legislativas.
Aparelhamento na prática
A ação de conselheiros tutelares ligados a esses grupos se destacou logo após as últimas eleições e em casos de grande repercussão. Em 2020, uma menina de 10 anos engravidou após ser estuprada pelo companheiro de uma tia em São Miguel (ES). Nesses casos, a legislação brasileira permite o acesso ao aborto legal e seguro. Ainda assim, a então ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, interviu pessoalmente no caso para dissuadir a família da vítima de realizar o procedimento, já autorizado pela Justiça. Para isso, Damares teria contado com a ajuda de conselheiros tutelares conservadores ligados às neopentecostais.
Outro caso de grande repercussão, também em 2020, foi o de uma mãe que perdeu a guarda da filha de 12 anos por orientação do Conselho Tutelar de Araçatuba (SP) depois que a menina teve a cabeça raspada de forma consensual em um ritual de iniciação de candomblé. Dias depois, a Justiça determinou a restituição da guarda para a mãe.
Outros casos são denunciados por conselheiros tutelares de São Paulo e se somam a estes. Conselheiros ligados à IURD tratam muitas situações como um problema de “falta de Deus na vida”. Além disso, crianças LGBTs são encaminhadas para “sessão de descarrego na igreja”.
Erika explica que a atuação equivocada de um/a conselheira pode colocar empecilhos gigantescos na vida de uma criança ou adolescente que vive em vulnerabilidade. “Entendendo que quem está em busca do órgão normalmente é a população preta, LGBT, periférica, e é importante entendermos como essas pessoas nos enxergam.”
Desafios para eleger candidaturas comprometidas
Para ter suas documentações deferidas enquanto candidato na 1ª etapa classificatória das eleições para o Conselho Tutelar, é preciso apresentar uma série de documentos além de passar por uma prova. No entanto, a burocracia e a linguagem técnica do edital podem dificultar a compreensão das solicitações exigidas.
Esse ano, a IDMJRacial, em parceria com o Centro de Tradições Yle Axé Egi Omim realizou um Curso Preparatório Gratuito sobre ECA, pensando em garantir diversidade na ocupação de vagas nos Conselhos. A organização recebeu denúncias sobre acordos de grupos de milícias e facções do varejo e tráfico de drogas com as igrejas para as eleições do Conselho Tutelar. Os relatos são de compra de votos, fretamento de ônibus para levar moradores aos locais de votação e até mesmo ameaças de morte a candidatas e candidatos que não estejam de acordo com os comandos locais.
Terlúcia conta que ativistas da Paraíba, desde 2019, assumiram a tarefa de acompanhar e apoiar candidaturas para o cargo. No entanto, a empreitada vem com muitos desafios, como o curto tempo de campanha. Entre as ações do coletivo está uma série sobre conselhos tutelares em seu podcast, o PodPretasPB. “Fizemos ato de rua, piquenique, panfletagem, e as pessoas diziam que nunca votaram para Conselho Tutelar, e não sabem como fazê-lo.”
Importante destacar que, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, a maior parte das crianças e adolescentes vítimas de violências são negros: 8 em cada 10 mortes violentas de adolescentes vitimam negros no país.
“O movimento de mulheres negras não tem um histórico de envolvimento com essas eleições. É importante que os conselheiros tenham letramento racial, compreensão da violência doméstica”, lamenta Terlúcia.
Para reverter esse quadro, Erika acredita que, primeiro, é preciso buscar estratégias de fazer chegar à população a importância de votar. “Colocar outdoor, nas mídias que a população tem acesso, fazer chegar a informação, após apresentar candidaturas que de fato faça o trabalho pensando no futuro da criança e adolescente assistida.”
A Eleição do Ano
A plataforma “A Eleição do Ano” catalogou as candidaturas aos Conselhos Tutelares de pessoas realmente comprometidas com os Direitos das Crianças e do Adolescentes, pautas antirracistas e feministas. Para acessar, clique aqui.
As eleições acontecem neste domingo (1), com urnas eletrônicas em todo o território nacional. Os votos serão computados das 8h às 17h. Para votar, é preciso ser maior de 16 anos e ter o título de eleitor regularizado.