Antes de George Floyd: a Longa História de Desigualdades e Violência nos Estados Unidos

Tem sido dias difíceis para o povo preto das Américas. Como uma mulher negra imigrante, eu tenho equilibrando as emoções e as angústias entre Brasil e Estados Unidos

Por Marry Ferreira* / Imagem: THE ASSOCIATED PRESS

Tem sido dias difíceis para o povo preto das Américas. Como uma mulher negra imigrante, eu tenho equilibrando as emoções e as angústias entre Brasil e Estados Unidos. Nos dois países tenho visto e sentido meu povo ter que sobreviver ao COVID-19 ao mesmo tempo em que luta contra um projeto genocida cruel e muito antigo. Estou cansada e sei que você, pessoa negra, também deve estar.

Foi difícil começar a escrever esse texto. Nas últimas semanas perdemos Miguel Otávio, Lucas Santos Soledade, Carlos Alberto, Breonna Taylor, George Floyd, João Pedro, Nina Pop, e muites outres cujos nomes não foram publicados – incluindo as centenas de óbitos por COVID-19 no país.

O assassinato de George Floyd é parte de uma violência sistêmica e de uma estrutura de que ataca continuamente os direitos humanos das pessoas negras nos Estados Unidos. A violência policial é apenas um dos mecanismos usados para cumprir a principal função desse sistema, que tem as pessoas negras como principais fundadores do país, mas que mantém a desumanização desses grupos como parte central de seu funcionamento. Um sistema que foca em proteger a propriedade privada no lugar do bem estar de uma população inteira.

Nesse sentido, a mídia tradicional nacional e internacional, tem criado uma narrativa pública em torno do que, em inglês, é chamado de looting, que poderia ser traduzido como “saqueamento, violência ou vandalismo”. Um discurso que enfatiza as alegações de destruição de propriedades ao invés de como as violências diárias contra pessoas negras são institucionalizadas. Não vamos esquecer que o encarceramento em massa, as leis de segregação de Jim Crow, e os testes de anticoncepcionais em mulheres negras eram institucionalizados. Essas sim, são as verdadeiras violências.

Os protestos por justiça por George Floyd fazem parte de um movimento que vem lutando contra uma discriminação racial sistêmica que custou a vida de muitos nesse país.  Historicamente, os afroamericanos foram os primeiros alvos da violência supremacista branca. E muitas vezes essa violência perpetrada contra os negros é sancionada pelo Estado. Mas é a resposta negra que é criminalizada. A Lei Fugitive Slave do Congresso de 1850 encarregava a polícia de ir atrás de pessoas escravizadas que estavam atrás de liberdade no norte do país. Em 1704, a Carolina do Sul criou a primeira força policial, chamada de “patrulhas de escravos”. Essas organizações tinham a função de perseguir, apreender e “disciplinar” pessoas escravizadas. No mesmo período também ocorreu o primeiro protesto contra brutalidade policial nos Estados Unidos, após tropas policiais britânicas colocarem fogo contra moradores de Boston, e matarem um homem negro chamado Crispus Attucks. O acontecimento ficou conhecido como  “Massacre de Boston “.

Seguindo o mesmo princípio, a polícia foi usada para manter “ordem” durante o crescimento da cidade de Chicago no século XIX, reprimindo manifestações trabalhistas e usando a força mortal em legítima defesa – um projeto apoiado por lei. Naquela época, os afroamericanos representavam 3% da população de Chicago, mas correspondiam a 21% das vítimas de homicídio policial de 1910 a 1920.

Durante o início do século XX, período ainda de segregação dos Estados Unidos, as autoridades policiais assistiram pessoas negras serem linchadas por multidões brancas inúmeras vezes, permitindo que os assassinos saíssem da cena impunes. Anos depois, em 1963, Martin Luther King menciona em seu conhecido discurso “Eu tenho um sonho”, que “Não estaremos satisfeitos enquanto o negro for vítima dos indescritíveis horrores da brutalidade policial“. E menos de 30 anos depois, em 1991, uma câmera de vídeo captura quatro policiais do Departamento de Polícia de Los Angeles batendo em Rodney King, e aquele se torna um dos primeiros vídeos virais de brutalidade da polícia contra pessoas negras (veja o vídeo abaixo). O uso do policiamento estava ligado ao uso da força por um sistema destinado a manter uma hierarquia social baseada na superioridade racial dos brancos. A polícia nunca foi criada para proteger os nossos. Por mais de um século após a Guerra Civil nos Estados Unidos, os policiais foram membros secretos de grupos supremacistas brancos como o Ku Klux Klan. Acredite ou não, o ano era 2019 e ainda vemos casos de policiais sendo descobertos após fazerem uma aplicação para o KKK.

Essa institucionalização da violência e opressão é algo que também vemos no Brasil e que não pode ser ignorada. No Rio de Janeiro, vemos dados como os divulgados pelo Instituto de Segurança Pública, onde, somente em abril de 2020, a polícia matou 43% mais pessoas no Rio de Janeiro do que em abril do ano passado. Ao invés de abordar honestamente todos os danos e as desigualdades causadas por anos de escravidão, os Estados Unidos institucionalizaram a violência.  O valor da vida de quem vive ou morre passou então a ser definido pela cor da pele. E aí fica a pergunta: “sonho americano” pra quem?

Em 2019, uma pesquisa publicada pela Academia Nacional de Ciências mostrou que pessoas negras têm uma probabilidade 2,5 vezes maior de serem mortas pela polícia norte-estadunidense do que pessoas brancas. E o mesmo serve para o sistema de justiça, onde, em 2015, os afro-americanos constituíram 38% das pessoas privadas de liberdade, apesar de serem 13% da população total dos Estados Unidos. Os dados são do The Sencenting Project  e afirmam que, em doze estados, mais da metade da população carcerária é negra, e que as crianças afro-americanas representam 32% das crianças presas em todo o país.

Em vez de expandir um projeto político para abraçar as pessoas negras como cidadãos, o país na verdade não considerou a humanidade destes por muitos anos – e menos os considerou dignos de proteção policial ou constitucional. Quando vimos o vídeo de Amy Cooper ligando para a polícia dizendo que havia um homem negro ameaçando sua vida no Central Park, ela sabia exatamente o que estava fazendo. O mesmo privilégio branco acompanha turistas na cidade de Nova York comprando souvenirs e lembrancinhas da polícia da New York Police Department. Lembro de estar caminhando pelo Central Park com um amigo e nos questionarmos sobre essa romantização da polícia em cidades turísticas, como Nova York e Los Angeles. E é inegável o papel da indústria de Hollywood nesse processo e na clareza de quem e para quem as instituições funcionam. Você consegue imaginar pessoas negras andando com camisas do departamento de polícia ou colocando imãs com os logos na geladeira?

Breonna Taylor

E essa luta por justiça nos Estados Unidos também precisa incluir a luta de mulheres negras cis e trans impactadas pela violência policial. O dia 20 de maio marcou o quinto aniversário do relatório #SayHerName – Resisting Police Brutality Against Black Women (Diga o Nome Dela – Resistindo a Violência Policial Contra Mulheres Negras), que destaca as mulheres negras de todo o país que foram mortas pela violência policial. Enquanto pedimos justiça por George Taylor, precisamos lembrar do nome de Breonna Taylor, Nina Pop e muitas outras.

Assim como João Pedro, Breonna Taylor não estava segura dentro de sua própria casa. Ela foi morta por policiais do Departamento de Polícia Metropolitana de Louisville (LMPD) no dia 13 de março deste ano, que entraram à paisana em seu apartamento disparando, pelo menos, 30 tiros.

Credit: #SayHerName: AAPF – The African American Policy Forum

Isso também inclui os casos onde policiais respondem a chamadas relacionadas a saúde mental e criminalizam mulheres negras, como em 2014, onde Michelle Cusseaux foi morta pela polícia dentro de casa. O motivo? O oficial Tommy Thompson foi até sua casa para levá-la a uma instituição de suporte a saúde mental, e ela se recusou a sair da casa com medo do policial. Após um desentendimento, o policial atirou alegando que “o olhar no rosto de Michelle o fez temer pela sua vida”. A verdade é que pré-COVID19, durante-COVID19 ou pós-COVID, pessoas negras estão continuamente sujeitas à morte por decreto da lei.

As consequências imediatas da morte de George Floyd espalhou pelas redes sociais assuntos que abolicionistas têm exigido por anos. Justiça por George Floyd significa uma reforma da justiça criminal, um desinvestimento financeiro na Polícia e investimento em comunidades negras, assim como uma exigência de que escolas locais, universidades e todas as instituições públicas cortem laços com a polícia.

O Movimento Por Vidas Negras (Movement for Black Lives) e outras organizações estão exigindo que os recursos do policiamento nos orçamentos locais sejam realocados como recursos para a saúde, habitação e educação que foram negadas por anos. A criação de mais policiais, armas, ou prisões não são uma solução para problemas antigos de disparidades raciais, injustiça e violência policial.

Justiça por George Floyd representa não somente a condenação da polícia envolvida no assassinato dele, mas uma revisão completa de um sistema criado em cima de desigualdades estruturais e que se recusa a pautar as tensões da opressão capitalista da supremacia branca.

 

*Marry Ferreira é jornalista graduada pela Universidade Federal Fluminense, no Rio de Janeiro, e mestranda em Public Media na Fordham University, em Nova York. É envolvida com diferentes organizações negras nos Estados Unidos, concentrando seus esforços no uso da mídia para promover a igualdade de gênero e a justiça racial, sendo também uma das organizadoras da Marcha das Mulheres Negras no país em 2018 e 2019. Marry é atualmente Representante da Juventude nas Nações Unidas para a Associação Internacional de Mulheres em Rádio e Televisão (IAWRT-USA), e co-fundadora do Kilomba Collective, primeiro coletivo de mulheres negras brasileiras nos Estados Unidos.

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