Por Andressa Franco e Karla Souza
Na noite de 17 de agosto de 2023, Maria Bernadete Pacífico Moreira, líder quilombola de grande influência, foi brutalmente assassinada em sua residência no Quilombo Pitanga dos Palmares, no município de Simões Filho, região metropolitana de Salvador (BA). Um crime que expõe a constante vulnerabilidade das lideranças quilombolas no Brasil. Aos 72 anos, Mãe Bernadete ocupava a coordenação da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) e era ex-secretária da Promoção da Igualdade Racial de Simões Filho.
Apesar de estar no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Mãe Bernadete foi fatalmente atingida por 22 tiros.
“Acabaram com minha família. Quando tiraram a vida de Binho [filho mais velho de Mãe Bernadete, assassinado em 2017] minha mãe ficou doente. Seis anos depois mataram minha mãe. É incalculável o dano causado à minha família. Fica um sentimento de insegurança. Porque até o momento minha família corre risco”, lamenta Jurandir Wellington Pacífico, de 44 anos, filho da líder quilombola.
O Quilombo Pitanga dos Palmares remonta ao século XIX, fundado por descendentes de africanos que resistiram ao regime escravagista. A comunidade enfrenta, há décadas, intensos conflitos territoriais, exacerbados pela especulação imobiliária desenfreada e pela implantação de empreendimentos públicos e privados que ameaçam sua existência.
O governo da Bahia, em resposta ao assassinato, anunciou em agosto de 2023 uma revisão dos protocolos de proteção de defensores de direitos humanos, em parceria com o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Contudo, a eficácia dessas ações é questionada, dada a recorrente vulnerabilidade das comunidades quilombolas e a falta de respostas concretas aos crimes cometidos contra seus líderes.
Investigações do caso Mãe Bernadete
Em novembro, a Polícia Civil da Bahia concluiu que o assassinato de Mãe Bernadete está relacionado à sua oposição ao tráfico de drogas que vinha se instalando na região. As investigações identificaram seis suspeitos envolvidos, e a 1ª Vara Criminal de Simões Filho acatou ao pedido do Ministério Público da Bahia em levar três dos acusados a júri popular.
Arielson da Conceição Santos e Sérgio Ferreira de Jesus, presos desde setembro de 2023, serão julgados por homicídio qualificado, cometido por motivo torpe, de modo cruel, sem possibilitar a defesa da vítima.
Marílio dos Santos, conhecido como “Maquinista”, está foragido, mas tem advogado constituído e vai a júri popular como mandante e mentor intelectual do crime. Ele será julgado por homicídio com as mesmas qualificadoras dos demais. Também está foragido Josevan Dionísio dos Santos, apontado como um dos executores imediatos do crime.
Ydney Carlos dos Santos de Jesus, preso no último dia 23 de julho, é apontado como gerente do tráfico na região e subordinado de Maquinista. Ele é suspeito de auxiliar no plano de execução de Mãe Bernadete. Também está preso Carlos Conceição Santiago, apontado por ter armazenado as armas utilizadas no crime.
Família questiona investigações
A família de Mãe Bernadete, no entanto, questiona as conclusões da investigação.
“Eu discordo plenamente, está faltando peça no tabuleiro desse xadrez. Minha mãe não tinha nenhum problema com o tráfico. O tráfico foi pago para executar Mãe Bernadete”, assegura Jurandir. Ele acredita que o resultado da investigação preserva os verdadeiros mandantes do crime através da responsabilização de traficantes. Para a família, a disputa territorial é o que de fato estaria no centro do crime. “Caso desse problema, como deu, a conta cairia no tráfico, como caiu. Foi tudo pensado antes.”
Primeiro atentado contra os líderes da família Pacífico
As ameaças ao território e à segurança dos moradores não são novas. Aos 36 anos, o filho de Mãe Bernadete, Flávio Gabriel Pacífico dos Santos, chamado de Binho do Quilombo, foi assassinado em 19 de setembro de 2017, dentro do quilombo. Ele era um ativista pelos direitos humanos e quilombolas, e atuava contra a instalação de um aterro sanitário pela empresa Naturalle nas proximidades do território. No último mês de julho, a Polícia Federal iniciou a Operação Palmares com o objetivo de investigar o assassinato de Binho. Dois homens, tio e sobrinho, foram presos como suspeitos, mas seus nomes não foram divulgados.
“Há 30 dias eu fui ameaçado de morte que eu seria o próximo. Por isso que eu vejo que tem ligação e que a pessoa está aí fora ditando as regras”, revela Jurandir. A ameaça está sendo investigada sob sigilo.
Lideranças ameaçadas e comunidades violadas
Muitas lideranças quilombolas receberam a morte de Mãe Bernadete como um aviso ou ameaça. Um “cala a boca”, é como define Rejane Rodrigues, liderança do Quilombo Quingoma, um dos quilombos mais antigos do Brasil, datado de 1569 e que resistiu ao período colonial. “Ceifar Mãe Bernadete foi um peso muito grande para as lideranças. Não foi só um assassinato, foi um ‘cala a boca’”, avalia.
Desde agosto de 2013, o Quingoma é certificado como comunidade quilombola pela Fundação Cultural Palmares, mas sofre diversas formas de violência, racismo e injustiça ambiental. As denúncias de Rejane contra a construção de empreendimentos no território, levaram a ameaças contra sua vida. Hoje, ela se encontra fora do território para sua segurança, e desde 2018 integra o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos da Bahia (PPDDH), mesmo que Mãe Bernadete, de quem era próxima desde 2005, e a quem considera uma mestra.
“O orçamento para essa proteção é insalubre, não dá para comprar câmeras. Nós temos 133 defensores no PPDDH Bahia. Desses, quase ninguém tem nada feito pelo Programa”, relata.
Para Jurandir, o Estado não dá conta da demanda, e o PPDDH não melhora, porque não tem ouvido os defensores. “Temos aí o Grupo de Trabalho Técnico Sales Pimenta, dogmático, que não ouve os defensores. Não existe política pública para nós sem nós.”
Conversamos com Wagner Moreira, coordenador do IDEAS – Assessoria Popular, organização responsável por administrar o PPDDH Bahia desde dezembro de 2022. Ele explicou que o GT Sales Pimenta começou a funcionar apenas no final de 2023, e que esse ano tem promovido escutas e audiências públicas para compreender os desafios dos defensores e defensoras de direitos humanos no estado.
“Aqui na Bahia temos uma legislação muito defasada. Quando o IDEAS assumiu a gestão do programa, orçamento e equipe eram muito reduzidos para o tamanho do desafio. Mas estamos tendo avanços importantes”, afirma.
Wagner acredita, no entanto, que para responder aos desafios enfrentados pelas comunidades tradicionais, é preciso superar questões estruturais. “Perpassa por uma real reforma agrária; um processo de licenciamento ambiental de uso de agrotóxico, de mineração; a consulta prévia, livre e informada; uma série de violações que a mera existência do programa não vai dar conta.”
Nesse sentido, Rejane observa que as ações do Estado no que se referem às comunidades tradicionais são sempre morosas. Pitanga dos Palmares, que já havia sido reconhecido como remanescente de quilombo pela Fundação Cultural Palmares em 2004, teve suas terras oficialmente reconhecidas pelo Incra apenas em 2024, oito meses após o assassinato de Mãe Bernadete.
Segundo levantamento realizado pela Terra de Direitos e divulgado em maio de 2023, caso o país mantenha o atual ritmo de regularização fundiária dos territórios quilombolas, serão necessários 2.188 anos para titular integralmente os processos abertos no Incra.
Assim, a luta pelo direito ao território é uma das principais agendas dessas comunidades, o que coloca as vidas de muitas lideranças em risco. Na última década, pelo menos 30 lideranças quilombolas foram assassinadas, segundo levantamento da Conaq. A Bahia lidera com 11 assassinatos.
“Mesmo com um Estado que está nos matando, a gente precisa continuar”
Quem também enfrenta o descaso do poder público, é Rose Meire dos Santos Silva, liderança do Quilombo Rio dos Macacos, localizada em Simões Filho (BA). “As comunidades quilombolas não têm proteção. A falta de políticas públicas é muito grande nos nossos territórios.”
Em maio de 2023, imagens de Rose Meire repercutiram no país ao subir no palco de um evento onde estava o presidente Luís Inácio Lula da Silva, em Salvador (BA), para o lançamento da Lei Paulo Gustavo. Ela entregou um documento relatando as violações enfrentadas pelo quilombo. Em novembro daquele ano, o Ministério Público Federal (MPF), Secretaria de Infraestrutura (Seinfra/BA), Secretaria de Promoção da Igualdade Racial e dos Povos e Comunidades Tradicionais da Bahia (Sepromi/BA), entre outros órgãos e entidades estiveram no território para ouvir as mesmas reivindicações que Rose voltou a nos relatar em entrevista na última semana.
A falta de abastecimento de água, relacionada a invasão da Marinha do Brasil na comunidade desde 1950; falta de iluminação pública; de progresso na construção das 80 unidades habitacionais anunciada pelo governo do estado em 2023; e a demora da conclusão das obras da via de acesso no local, levando as crianças a caminhar 14km para irem e voltarem da escola, em meio à lama e ao barro, porque o ônibus escolar não chega à comunidade.
“Hoje a maioria das famílias está sofrendo retaliação, exclusão e racismo na falta de políticas públicas. A comunidade não tem água encanada, quando a gente vai na barragem buscar, um militar manda a gente sair. A gente está muito preocupado, pedindo socorro”, desabafa.
Em nota para a Afirmativa, o MPF informou que tem acompanhado e cobrado do Governo Federal o atendimento às reivindicações. Em maio deste ano, o órgão enviou novo ofício à Presidência da República cobrando a adoção de medidas.
Já a Seinfra, responsável pela implantação dos acessos às Glebas I e II, em Simões Filho, no Quilombo Rio dos Macacos, que faz a ligação com o entroncamento das BAs 526 e 528, informou em nota que a obra está com 85% de execução e é prevista para ser concluída até setembro deste ano. A secretaria justificou que o término da obra precisou ser reprogramado por conta do período chuvoso na região. O órgão acrescenta ainda que, sobre a execução de ações na continuidade do trecho, que é na região do Conjunto do Areal, é uma via municipal e não pertence à malha rodoviária estadual. “Nesse caso, por se tratar de um acesso às comunidades quilombolas, novas demandas devem ser encaminhadas à Sepromi Bahia.”
A Sepromi, por sua vez, preferiu não se pronunciar e nos orientou a contatar a Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional (CAR) e da Companhia de Engenharia Hídrica e de Saneamento da Bahia (CERB), órgãos responsáveis, respectivamente, pela construção das unidades habitacionais e pelo fornecimento de água, que foi garantido pela Secretaria na visita realizada ao quilombo em novembro último.
“Vamos buscar informações acerca da sua demanda”, foi o retorno da Cerb. A CAR não retornou até o fechamento desta matéria.
Legado de Mãe Bernadete
Para Rose, o legado deixado por Mãe Bernadete para as lideranças quilombolas que enfrentam a violação de seus direitos, é a força e a sabedoria.
“Sempre tive um carinho muito grande por ela. A gente se encontrava em todas as viagens, indo para Brasília, pedindo ajuda para a comunidade e nada estava sendo ouvido. O que adianta a terra e a água sem as nossas vidas, e qual é a proteção que o governo brasileiro dá ao nosso povo?”, reflete.
Rejane acredita que o legado de Mãe Bernadete é o de não desistir. “Nós enquanto lideranças sabemos que temos um alvo nas costas. Vários dos nossos antepassados morreram acreditando que o processo seria contínuo. Mas o legado que Bernadete deixa é de resistência. Continuar denunciando porque mesmo sabendo que temos um Estado e uma gestão municipal que está nos matando, a gente precisa continuar pela gente e pelos nossos”, finaliza.