Por Andressa Franco
Fazendeiros de Douradina (MS) deixaram 11 indígenas Guarani Kaiowá feridos em ataques no último final de semana, na área de retomada chamada Ivy Ajere.
Desde julho os Kaiowá alertam as autoridades sobre as ameaças que vinham recebendo. Isso porque no dia 13 de julho os indígenas retomaram a Terra Indígena (TI) Panambi-Lagoa Rica, território sobreposto pela fazenda do agropecuarista Cleto Spessatto. A TI já foi reconhecida e delimitada há anos, mas está com o processo demarcatório parado desde 2011, na pendência da publicação de uma portaria declaratória e da homologação. Passados tantos anos de espera, sobrevivendo em barracos de lona em reservas, os Guarani Kaiowá decidiram dar início à autodemarcação. Estratégia que não é nova. Na Bahia, os Pataxó deram início a um processo de retomadas em 2022, e também enfrentam forte retaliação.
Depois da ocupação, os Guarani Kaiowá sofreram um ataque no qual um indígena foi baleado na perna. Já nessa época, em julho, uma nota da Aty Guasu, Grande Assembleia Guarani Kaiowá, denunciou que o ataque foi feito por fazendeiros da região, que estavam atirando para matar e prometendo um massacre. “Estamos pedindo, urgentemente, socorro”, clamou a organização indígena.
Em um vídeo que circulou nas redes sociais uma semana depois da retomada, um homem mostra várias caminhonetes em meio à escuridão e afirma que estão todos preparados para “o grande conflito”: “O bambu vai envergar (…) Vamos avançar. Todo mundo se organizando aí para o grande conflito. Lá está (sic) os índios”.
“Com certeza vai acontecer daqui a pouco um novo ataque. Estão chegando as caminhonetes de novo. Os que vão morrer, vamos enterrar, os que vão se machucar, prepara a maca, porque nós vamos lutar”, afirmou uma liderança ao Brasil de Fato.
Força Nacional deixou o território antes dos ataques
O ataque realizado no sábado (3) aconteceu no norte da TI Panambi-Lagoa Rica. Nove jovens, entre 16 e 22 anos, foram atingidos por tiros disparados por homens de cima de caminhonetes, que usaram tanto balas letais quanto de borracha. Uma senhora de 62 anos recebeu uma bala de borracha nas costas, e seus três netos foram baleados por arma de fogo enquanto protegiam um barracão onde estavam diversas crianças.
Pouco antes do ataque dos fazendeiros, a Força Nacional se retirou do território. Um agente teria chegado a avisar um dos indígenas: “pega teu povo e sai daqui ou vocês vão morrer”. O órgão é o responsável por delimitar um espaço entre o acampamento de produtores rurais e o acampamento da retomada indígena, onde estão vivendo 126 famílias, com 18 idosos, 70 crianças e 50 jovens menores de idade. De acordo com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), as agressões começaram logo após a saída dos agentes. Dois indígenas foram baleados na cabeça e no pescoço.
A justificativa da Força Nacional em nota foi de que, no momento do ataque, as equipes estavam patrulhando outra área.
O segundo ataque, realizado na noite do último domingo (4), foi marcado pelo uso de fogo, trator, rojão e tiros. Barracos e símbolos sagrados foram destruídos e incendiados.
“Se querem Guarani e Kaiowá fora daqui, matem a gente. Enterrem aqui e aí podem plantar soja por cima. Essa é a vontade do governo? Isso que quer a Justiça? Então façam isso logo, matem a gente tudo. Jagunçada atira na gente, destrói o pouco que temos e a Força Nacional só olha, governo vem aqui e não faz nada. Saiam daqui, desgraçados!”, declarou um dos indígenas ao Cimi.
Os ataques foram precedidos por fake news espalhadas entre os ruralistas, de que os Guarani e Kaiowá “invadiram” mais fazendas em Douradina, ultrapassando as sete retomadas existentes hoje. Espalharam ainda que os indígenas haviam ateado fogo em uma dessas propriedades, quando na verdade o incêndio foi provocado pelos próprios agressores. De acordo com o Cimi, no último sábado (3) a Força Nacional informou à Coordenação Regional da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) que os Guarani Kaiowá haviam avançado nas retomadas. Mas uma equipe da Funai foi até o local e constatou que os indígenas permaneciam nos mesmos locais.
Medidas tomadas pelo Ministério dos Povos Indígenas
“Estamos trabalhando para que os processos demarcatórios em MS e em todos os estados brasileiros sejam retomados. Não é possível que os indígenas continuem sofrendo com tamanha violência em meio a esses conflitos. Queremos garantir a segurança dos povos nos seus territórios”, escreveu a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, em sua conta no X na tarde desta terça-feira (6). Ela está no Mato Grosso do Sul, com lideranças indígenas Guarani Kaiowá na TI Panambi-Lagoa Rica, onde aconteceram os ataques.
O Ministério dos Povos Indígenas (MPI) acionou o Ministério da Justiça, para pedir explicações sobre a postura da Força Nacional. Além disso, a deputada federal Célia Xakriabá (Psol-MG) junto com outros 24 parlamentares do PSOL, PT e PDT enviaram um ofício ao ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, solicitando uma reunião emergencial sobre o tema. Xacriabá também chegou no Mato Grosso do Sul compondo a delegação do MPI nesta terça-feira (6).
Além do diálogo com as Forças de Segurança Pública para garantir que o efetivo da Força Nacional permaneça no território para evitar novos episódios de violência, também foi enviado um ofício para o diretor-geral da Polícia Federal, solicitando a imediata investigação sobre os ataques. A Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) também foi acionada para prestar atendimento no local aos feridos com menos gravidade. Os feridos que precisaram ser encaminhados ao hospital estão acompanhados de uma servidora do MPI.
Na nota sobre o ataque, o MPI também aproveitou para criticar o marco temporal. “O Ministério dos Povos Indígenas enfatiza que a instabilidade gerada pelo marco temporal para terras indígenas tem como consequência não só a incerteza jurídica sobre as definições territoriais que afetam os povos indígenas, mas abre ocasião para atos de violência que têm os indígenas como as principais vítimas.”
Mato Grosso do Sul lidera ranking de violência contra indígenas
Não é nem de longe a primeira vez que os Guarani Kaiowá são vítimas de ataques armados de fazendeiros. Um dos mais emblemáticos foi o Massacre de Caarapó, no dia 14 de junho de 2016, quando um grupo de fazendeiros, acompanhados por dezenas de pistoleiros em dezenas de caminhonetes, atacou a comunidade indígena Guyraroká.
O ataque foi uma reação à ocupação de uma fazenda pelos indígenas, que haviam retomado uma área que era parte de seu território tradicional sobreposto pela Fazenda Yvu. Durante o ataque, o indígena Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza, de 26 anos, foi morto a tiros. Pelo menos seis outros indígenas foram feridos, incluindo mulheres e crianças. Os mandantes do ataque foram os fazendeiros Nelson Buainain Filho, Virgílio Mettifogo, Jesus Camacho, Dionei Guedin e Eduardo Yoshio Tomonaga.
De acordo com ‘Relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2023’, publicação anual do Cimi, foram registrados 150 casos de conflitos relacionados a direitos territoriais em 2023. O Mato Grosso do Sul lidera com 25 casos, sendo 18 deles envolvendo os Guarani Kaiowá.
Chama atenção ainda o número de assassinatos (208). Roraima lidera o ranking com 47 vítimas, seguido pelo Mato Grosso do Sul, com 43. O relatório do Cimi também denuncia o envolvimento de policiais militares em milícias privadas investigadas pelas mortes de indígenas.
O processo de expulsão dos Guarani Kaiowá de suas terras teve início ainda no século XX, durante a expansão das atividades pecuárias no Mato Grosso do Sul. A ocupação de suas terras por fazendeiros e a criação de grandes propriedades rurais forçaram muitos indígenas a se deslocarem. Em 1915, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) – substituído pela Funai em 1967 –, criou a primeira reserva indígena para os Kaiowá e Guarani, com outras sete reservas criadas até 1928. Essas reservas eram frequentemente menores e inadequadas para sustentar a vida e a cultura dos Guarani Kaiowá, marcada por altos índices de desnutrição e problemas de saúde.