Ataque ao povo Pataxó na Bahia: dois meses depois do assassinato de dois jovens indígenas, governo do estado ainda não autorizou vinda da Força Nacional

Nesta sexta-feira (17), completam-se dois meses do assassinato de dois jovens Pataxó, Samuel Cristiano do Amor Divino, de 25 anos, e Nawir Brito de Jesus, 17 anos, em Itabela, extremo Sul da Bahia.

A Ministra Sônia Guajajara solicitou o envio da Força Nacional e lideranças já foram à Brasília cobrar federalização das investigações, já que parte da PM baiana é responsável pelos ataques aos indígenas

Por Andressa Franco

Imagem: Thiago Miotto

Nesta sexta-feira (17), completam-se dois meses do assassinato de dois jovens Pataxó, Samuel Cristiano do Amor Divino, de 25 anos, e Nawir Brito de Jesus, 17 anos, em Itabela, extremo Sul da Bahia. Os dois foram mortos a tiros na região onde está localizada a terra indígena Barra Velha.

Samuel e Nawir foram perseguidos e executados quando saíram para comprar alimentos em Montinho, na margem oposta da BR-101, que delimita o território indígena. O ataque aconteceu 11 dias depois de iniciada a retomada das fazendas Condessa e Veneza. O crime é mais um na escalada de ataques que o Povo Pataxó vem sofrendo desde junho do ano passado, quando iniciaram o processo de autodemarcação nas Terras Indígenas (TI) de Barra Velha e Comexatibá.

Os dois jovens indígenas, Nawir e Samuel, foram perseguidos e assasinados em 17 de janeiro de 2023 – Imagem: Reprodução Redes Sociais

Na época do crime, a ministra dos Povos Originários, Sônia Guajajara chegou a criar um Gabinete de Crise para acompanhar a situação e solicitar o envio da Força Nacional ao local. No entanto, o governador da Bahia e primeiro governador autodeclarado indígena eleito do Brasil, Jerônimo Rodrigues (PT), ainda não autorizou.

“Estamos ainda em espera da autorização do governador e não temos resposta nenhuma”, conta Juliana do Rosário, Pataxó de Coroa Vermelha e associada da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR). Os indígenas foram até o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), em Brasília, no dia 7 de fevereiro cobrar a federalização da investigação dos crimes na região e a presença da Força Nacional.

“O governo da Bahia entendeu que isso seria uma confissão de que sua própria força policial é insuficiente ou inapta. E é mesmo”, afirma o associado fundador da Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí), José Augusto Sampaio, o Guga.

A ministra dos Povos Originários, Sônia Guajajara, chegou a acionar a Força Nacional. Mas, o governador autodeclarado indígena, Jerônimo (PT), ainda não autorizou a vinda – Imagem: Reprodução Redes Sociais

O governo federal não precisa da autorização do estado para enviar a Força Nacional. No entanto, com o ex-governador da Bahia, o também petista Rui Costa, à frente da Casa Civil, o governo baiano tem forte influência no Planalto. “Temos o primeiro caso em que o Ministério dos Povos Originários faz uma demanda e ela é politicamente bloqueada”, completa Guga.

O indigenista José Augusto Sampaio, o Guga, é associado e fundador da Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí) – Imagem: Arquivo Pessoal
Histórico

Os Pataxó vivem em diversas aldeias no extremo sul da Bahia e norte de Minas Gerais. Há evidências de que a aldeia de Barra Velha existe há quase dois séculos e meio. São mais de 20 mil indígenas em pelo menos 30 comunidades. Os fatores que potencializam o conflito são interesses da agroindústria de celulose, da pecuária, e do setor turístico, o que vem desencadeando especulação imobiliária.

Diante desse cenário, desde junho, o povo Pataxó iniciou uma série de retomada. De lá pra cá, Guga contou cerca de 30 retomadas. Ele relata que o sul da Bahia foi invadido nos anos 70 com uma frente madeireira, que desmatou a região. O que foi seguido por um surto de grilagem.

“A propriedade da terra ali é muito mal fundamentada cartorialmente. Em seguida houve um surto de compra de terras para a agroindústria de celulose. Diante da morosidade da demarcação, o povo Pataxó resolveu ir à luta nas retomadas.”

Juliana enfatiza que o próprio estado da Bahia incentivava a agropecuária e as plantações, chegando a ceder terras aos fazendeiros. “Em 2000, começou a retomada dos territórios antigos. Já temos o estudo antropológico do nosso território, mas ainda não temos nenhuma terra demarcada. Esse é o grande conflito.”

Juliana do Rosário, Pataxó de Coroa Vermelha é associada da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR) – Imagem: Arquivo Pessoal
Polícia Militar da Bahia atua como segurança particular dos fazendeiros

No dia 30 de janeiro, Laércio Maia Santos, suspeito de matar Nawir e Samuel em Itabela, se apresentou à polícia, em Teixeira de Freitas (BA). Ele é soldado da Polícia Militar e prestava serviço de segurança privada na região.

A Afirmativa entrou em contato com a Polícia Civil, que investiga o caso e informou que a apuração está em curso e detalhes não podem ser divulgados para não interferir no andamento da investigação. A Afirmativa entrou em contato também com a Corregedoria da PM, tendo em vista que um inquérito policial deveria ter sido aberto contra Laércio, mas não obtivemos retorno até o fechamento desta matéria.

Laércio Maia Santos é suspeito de matar Nawir e Samuel e já se apresntou a Polícia – Imagem: Reprodução Redes Sociais

Essa não é a primeira vez que policiais se envolvem em crimes contra indígenas. Em setembro do ano passado, o indígena Gustavo Conceição da Silva, de 14 anos, foi baleado em uma fazenda em Prado (BA), enquanto tentava fugir dos pistoleiros que atacaram a retomada Vale rio Cahy. Em outubro, três PMs foram presos por suspeita de envolvimento na morte do adolescente. Um mês antes de ser assassinado, Gustavo postou uma foto nas redes sociais com um cartaz escrito “Povo Pataxó pede socorro”.

“Há muito tempo o povo Pataxó denuncia e isso não está evitando as mortes do nosso povo. Há um descaso das autoridades”, denuncia Juliana. De acordo com a Federação Indígena das Nações Pataxó e Tupinambá (FINPAT) do Extremo Sul da Bahia, com os três, sobe para sete o número de indígenas mortos na região por conta dos conflitos de terras no último ano.

Antes de se entregar, Laércio estava sendo procurado pela Força Integrada de Combate a Crimes Comuns que envolve Povos e Comunidades Tradicionais, criada pela Secretaria da Segurança Pública do estado diante dos ataques e assassinatos aos povos indígenas. Para Guga, isto não passa de uma cortina de fumaça. “É desconfortável para o estado a sua polícia fazer serviço de ‘jagunçagem pra matar indío’. Então o governo tem que dar uma resposta, mas é de fachada, já que não reconhece a legitimidade das ações dos indígenas.”

No final de janeiro, a AATR acionou junto da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), uma ação na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) exigindo a proteção do povo Pataxó. “Essa milícia tem porte de grandes armas como fuzil. Imagine enfrentamento de fuzil com arco e flecha. Isso coloca em risco a vida do povo Pataxó nesses processos de retomada”, desabafa Juliana.

Lideranças indígenas já se reuniram para denunciar episódios de violência, ataques de pistolagem, e até mesmo presença de drones sobrevoando moradias locais. Entre os pedidos à CIDH, está assegurar a célere investigação dos assassinatos, “notadamente no que tange à apuração da atuação da Polícia Militar, assegurando-se, ainda, o afastamento cautelar dos agentes públicos envolvidos com os crimes”.

Para Juliana, a solução é o afastamento da corporação na proteção das terras indígenas. Isso porque é a própria Polícia Militar que é chamada nos casos de conflito e também para proteção dos territórios. “É colocar o lobo pra tomar conta do galinheiro.”

Autodemarcação das terras

Não há nenhum interesse do governo do estado em regularizar as terras indígenas, pelo contrário. É o que observa Guga. “As reuniões do gabinete de crise foram decepcionantes. Representantes do governo dizendo que tem muitos interesses em jogo.”

O ativista ressalta, no entanto, que as demarcações dependem do governo federal. Enquanto isso não acontece, os indígenas devem continuar com o processo de autodemarcação. Guga explica que, como as fazendas não têm moradores, apenas gado ou eucalipto, os indígenas simplesmente entram.

O desafio está em consolidar essas retomadas. Principalmente porque essas terras são encontradas pelos indígenas com o solo extremamente degradado, ou com pastagem ou com eucalipto. Além dos pistoleiros rondando a área.  

Imagem: Thiago Miotto

“Só tem uma maneira de acabar com o conflito”

Em setembro do ano passado, a presidente do STF, ministra Rosa Weber, se comprometeu a retomar o julgamento do marco temporal para a demarcação e a posse de áreas reivindicadas como tradicionais indígenas. O que ainda não aconteceu. Para os Pataxó, o que está em jogo são 52,7 mil hectares relativos à área de revisão de limites da TI Barra Velha e 28 mil hectares da TI Comexatibá.

Para Guga, a demora gera insegurança jurídica. Ainda que exista estrutura administrativa para fazer alguns processos andarem independente do marco temporal. “Desde a constituição de 88 já foram demarcadas centenas de TI sem esse critério absurdo. A tendência é que o julgamento seja favorável ao direito indígena. Talvez justamente por isso esteja demorando”, avalia o indigenista.

O fato de, pela primeira vez na história, haver um Ministério dedicado aos assuntos dos povos originários também é considerado uma conquista importante. A preocupação de Guga, no entanto, são os conflitos internos de interesses. “É importante ter o ministério, mas vai bater de frente com outros interesses representados no governo”, avalia.

“Só tem uma maneira de acabar com o conflito no território Pataxó: demarcar nosso território”, finaliza Juliana.

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