Ativistas latino-americanas apontam o fundamentalismo religioso como um dos principais entraves para avanço do direito ao aborto

No Dia Latino-Americano e Caribenho pela Legalização e Descriminalização do Aborto, a Afirmativa ouviu ativistas pelo continente que têm se articulado a partir de exemplos da Onda Verde em países vizinhos

No Dia Latino-Americano e Caribenho pela Legalização e Descriminalização do Aborto, a Afirmativa ouviu ativistas pelo continente que têm se articulado a partir de exemplos da Onda Verde em países vizinhos

Por Andressa Franco*

Imagem: Prensa Obrera

Esta quarta-feira (28), marca os 32 anos da instituição do Dia Latino-Americano e Caribenho pela Legalização e Descriminalização do Aborto. Data escolhida na Argentina, durante o V Encontro Feminista Latino-Americano e Caribenho. No entanto, alguns países do continente têm encontrado cenário mais favorável para avançar do que outros.

Para Xiomara Carvalho, mulher negra costa riquenha, advogada e ativista pela justiça racial e pelos direitos sexuais e reprodutivos, quando se fala dos movimentos pela descriminalização do aborto na América Latina, existe uma tendência a falar sobre a região como um todo.

“Os movimentos têm chegado em avanços importantes em matéria de legislação. Mas parece que esses exemplos determinam toda a visibilidade da região”, destaca. Na Costa Rica, onde vive e atua, o aborto só é permitido em caso de risco à vida da gestante.

Para ela, ao olhar exemplos como a Argentina, é preciso considerar que os movimentos  feministas do país têm muitas décadas. O que permitiu que, chegado o momento de fazer a discussão legal no Congresso argentino, não só ativistas, mas a sociedade em geral, apoiava, por já ter conhecimento acumulado e mitos desmistificados.

Xiomara Carvalho é mulher negra costa riquenha, advogada e ativista pela justiça racial e pelos direitos sexuais e reprodutivos – (Imagem: Arquivo Pessoal)

Mortalidade materna e atendimentos inadequados

O aborto clandestino figura entre as principais causas da morte materna no Brasil. Os casos em que sua realização é permitida no país são: risco à vida da mulher, gravidez resultante de estupro, e anencefalia. Os dados são imprecisos mas, de acordo com a OMS, três em cada quatro abortos realizados na América Latina foram de forma insegura.

Para a educadora do SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia, Talita Rodrigues, as decisões das mulheres sobre o aborto se dão pelas condições ou faltas de condições materiais colocadas. “Pensando o racismo e o empobrecimento histórico, na maioria das vezes, mulheres brancas têm possibilidades de realizar a prática de forma menos insegura.” Especialista em saúde da família e mestranda em saúde pública, pontua que apenas descriminalizar não é suficiente, é preciso legalizar, “ou pode ficar como prática restritiva de serviços privados, e aí como garantimos o acesso de mulheres negras e periféricas?”.

Na Nicarágua, por exemplo, onde o aborto é criminalizado em todos os casos, existe entre os chamados militantes “pró-vida” o argumento de que o país reduziu a taxa de mortalidade materna com a proibição. Em dezembro do ano passado, no entanto, um estudo da Organização Pan-Americana da Saúde mostra que pessoas afrodescendentes nos países latino-americanos vivem em condições totalmente desiguais que afetam saúde e bem-estar, incluindo taxas mais altas de mortalidade materna.

“O Estado faz todo o possível para dar resultado positivo no papel. Esse governo se caracteriza por esconder dados”, afirma a nicaraguense, Lídice Chavez Gammie, jovem socióloga afrofeminista, e uma das coordenadoras da Red de Mujeres Afrolatinoamericanas Afrocaribeñas y de la Diáspora.

No Brasil, os desafios são agravados ainda pela forma como o sistema de saúde trata as pessoas em situação de abortamento. Todos os anos, mais de 100 mil passam por cirurgia que não é aconselhada pela OMS: a curetagem. De acordo com o DataSus, 90% dos casos de aborto atendidos pelo SUS são tratados por esse método. Nos últimos 10 anos, quase 500 morreram por conta da curetagem uterina pós-aborto. O que falta para avançar na garantia de procedimentos eficazes, ressalta Talita Rodrigues, é interesse político com a qualidade do serviço à saúde da mulher.

Talita Rodrigues é educadora do SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia – (Imagem: Arquivo Pessoal)
Diversas realidades

Desde 2006, a Nicarágua é um dos únicos países no mundo onde o aborto é penalizado em sua totalidade. Por mais de um século, o aborto foi permitido em caso de risco à vida da mãe, estupro ou incesto. Mas, a aliança do governo com a igreja católica influenciou a perda desse direito.

Na Costa Rica, o principal desafio é fazer que o direito do chamado aborto terapêutico, em caso de risco à vida da mãe, permitido desde 1971, seja de fato cumprido. Xiomara Carvalho explica que o problema é a falta de clareza no procedimento que deve ser realizado nos hospitais.

O documento que está vigente hoje é a guia para o procedimento que os médicos devem seguir, firmado apenas no ano passado. “O movimento fundamentalista está muito forte, muitos evangélicos no congresso com uma agenda bem definida para tirar esse artigo da legislação. Estamos muito mais perto de não ter acesso nenhum, do que de conquistar mais”, lamenta Xiomara.

Em fevereiro deste ano, a Colômbia se tornou o sexto país da América Latina e do Caribe onde o aborto não é mais considerado crime, mais uma vitória do movimento Onda Verde. Até então, eram realizados cerca de 400 mil abortos por ano no país, e a estimativa era de que menos de 10% fossem por vias legais. Além de centenas de mulheres condenadas à prisão, sendo que 70% dos casos foram descobertos a partir de denúncias de profissionais da saúde.

“Estou muito contente com a conquista da Colômbia, apesar do conservadorismo. Esperamos que isso seja uma forma de exemplificar para a América Latina”, celebra Génesis Morales, jovem que compõe o movimento de mulheres Afro Latino Americana, Afro-caribenha.

Ao olhar para o Brasil, a colombiana observa frutíferas referências em formas de resistências desenvolvidas pelas mulheres negras. Uma das lutas hoje, é pela não criminalização moral, e pleno acesso de mulheres negras que vivem em cidades onde o serviço de saúde é precário. Além do Estado como provedor de todos os métodos contraceptivos.

Educação sexual e vulnerabilidade

Apesar de o Brasil permitir a realização do aborto em casos de violência sexual e risco de vida, um levantamento da Folha de S. Paulo com dados de registros do SUS revela que a cada aborto legal feito em meninas de 14 anos ou menos, outras 11 precisaram ser hospitalizadas em decorrência de interrupções provocadas ou espontâneas em 2021.

“A gente tem várias falhas, primeiro do Estado, de deixar essas meninas expostas à violência.”, analisa Talita Rodrigues. A impossibilidade de abordar saúde sexual e reprodutiva nas escolas, afirma, as deixa mais vulneráveis. A educadora aponta ainda o serviço de saúde como um espaço que não acolhe, nem promove atividades para informar sobre prevenção.

O crescimento do fundamentalismo religioso no âmbito da educação, saúde e assistência social também preocupa. Assim, a menina que está mais vulnerável, engravida vítima de uma violência, não denuncia, e a violência não é investigada. Além disso, não tem acesso à medicação para não engravidar e/ou contrair infecções, nem acompanhamento psicológico.

Nos casos de gravidez dessas meninas, é comum que não conheçam os serviços de aborto legal, que muitas vezes estão concentrados nas capitais. Em muitos casos, vão para Justiça pedir acesso ao procedimento que já seria permitido. A mestranda em saúde chama atenção para equipes médicas que tentam protelar o procedimento para sair do período, convencer a família do contrário ou encaminham a menina ao pré-natal.

A Nicarágua é o país com a maior taxa de gravidez entre 10 e 14 anos. Para  Lídice Chavez Gammie, a criminalização contribui para que essas meninas continuem sendo responsabilizadas pelas violências sofridas. 

Na Costa Rica não é diferente. Adolescentes de 15 a 19 anos foram responsáveis ​​por cerca de 10% dos nascimentos no país em 2020, e menores de idade vítimas de 34% da violência sexual. Xiomara explica que a situação é bem mais complexa porque os movimentos fundamentalistas, além de reforçarem informações falsas, são contra toda educação sexual.

“Todo o trabalho das instituições do governo está focado como se as meninas fossem as culpadas. Os agressores não são processados porque na delegacia há um processo de revitimização”.

Entraves na América Latina

Na América Latina, morrem 62 mulheres a cada 100 mil abortos realizados em condições de risco, segundo o Ipas México, número que representa pouco mais que o dobro das fatalidades registradas em países desenvolvidos. “O empobrecimento das populações, o crescimento do neoliberalismo e da extrema direita são estruturas que atacam veementemente os direitos das mulheres”, aponta Talita Rodrigues.

O principal obstáculo para avanços na Nicarágua hoje, de acordo com Lídice, é o atual governo. O presidente eleito esse ano na Costa Rica também é um entrave apontado por Xiomara. Rodrigo Chaves tem histórico comprovado de assédio sexual, e se comprometeu a eliminar o que chamam de ideologia de gênero, resistir a qualquer flexibilização das leis de aborto e a reter a guia para o procedimento que os médicos devem seguir.  “Ele também tem uma linha super neoliberal, com discurso de privatização dos serviços públicos de saúde e do sistema bancário público. Serviços que estão sempre ameaçados por esse tipo de governo.”

Lídice Chavez Gammie é socióloga afrofeminista, e uma das coordenadoras da Red de Mujeres Afrolatinoamericanas Afrocaribeñas y de la Diáspora – (Imagem: Arquivo Pessoal)

“O movimento feminista não pode fazer a mudança sozinho”

“Um dos caminhos é ter um governo que reconheça o direito sexual das mulheres como direitos humanos, porque o movimento feminista não pode fazer a mudança sozinho, é preciso apoio da sociedade.”, frisa Lídice, que também aponta como essencial desestruturar o “casamento” entre igreja e Estado.

Para Xiomara, é preciso cuidado com as estratégias sistemáticas de desconstrução do que faz contrapeso ao discurso neoliberal. A educadora chama atenção ainda para o embraquecimento da luta pelo direito ao aborto, muito centrada na capital e sem diálogo com as periferias e com a justiça racial. “A gente vai conseguir muito mais espalhando conhecimento e conseguindo apoio social, como aconteceu na Argentina, e não adentrar direto com o tema no congresso. Porque isso pode provocar o efeito contrário”, alerta.

Para Genésis, o Brasil tem pontos em comum com a Colômbia para se atentar. Um é sobre as formas de penalização social, que aproxima as mulheres da clandestinidade. O outro diz respeito a travas no cumprimento da legislação no sistema de saúde por meio de burocracia. “Vítimas de violência sexual precisam passar provar que passaram por violação. Menores de idade não podem ir sozinhas. Nesse tempo, chega aos nove meses e a mulher tem o filho”.

Rodrigues defende que um caminho no Brasil é aproveitar as eleições para fazer avançar um congresso e um legislativo próximo à pauta dos direitos humanos. Às vésperas do marco do dia 28, a Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e Pela Legalização do Aborto lançou uma nota destacando que sem direito ao aborto não haverá democracia, nem Justiça reprodutiva. A Frente quer fortalecer o voto em candidaturas que defendem publicamente o direito ao aborto, o SUS e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS).

Na semana passada, lançou o manifesto e campanha “Vote em Quem Defende a Vida e a Dignidade das Mulheres, Meninas e Pessoas que Gestam”. Cerca de 50 candidaturas já assinaram. Para assinar, basta clicar aqui.

*Com contribuições de Patrícia Rosa

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