Auxílio emergencial e os grupos da base da pirâmide do mundo global e tecnológico

Céres Santos*

As regras estabelecidas pelo Governo Federal para o pagamento do auxílio emergencial nesse momento de pandemia evidenciaram mais uma violência à população de baixa renda do país, formada, majoritariamente, por negros/as: o uso e apropriação das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC’s). Não é nenhuma novidade falar que a ausência de políticas públicas para a ampliação do acesso ao ambiente digital, tornou-se em mais um instrumento de exclusão e reforço das brechas digitais, como as de gênero e raça. Recuero (2011) entende como brechas digitais os mecanismos que excluem certos grupos, em especial, o de mulheres negras, de usarem as TIC’s.

Esses dispositivos não se limitam à diferença de gênero no acesso às redes digitais. Mas, também, aos obstáculos que as mulheres enfrentam para apropriarem-se da cultura tecnológica, já que a hierarquia da diferença de gênero interfere no protagonismo das mulheres, no ambiente digital. Agora, associe às brechas de gênero às exclusões provocadas pelo racismo estrutural e chegaremos às imagens reais da violência das mulheres negras nas filas para recebimento do auxílio emergencial.

E qual o impacto dessa violência nas nossas vidas em um mundo cada vez mais globalizado e tecnológico? O Brasil, seguindo uma lógica neoliberal, continua reproduzindo grupos sociais para serem mantidos na base da pirâmide social. Aquela já conhecida base formada por desempregados/as, de trabalhadores/as informais, trabalhadoras domésticas, pessoas que ocupam vagas de empregos vulneráveis e sem carteira de trabalho assinada. Esse grupo de excluídos/as do ambiente digital é denominado de ‘analfabeto digital’, ou ‘sem letramento digital’, ou ‘sem letramento por mediação digital’. Resumindo: todas as terminologias, na verdade, se referem às vítimas da falta de políticas públicas para a ampliação do acesso ao ambiente digital. Se referem a quem, quando na adolescência, ou antes, teve que trocar a escola pelo tralhado mal remunerado. É a fome da sobrevivência lutando contra a fome do saber.

Vamos ilustrar um pouco essa violência. Diariamente, os mídias hegemônicos têm mostrado a aflição das pessoas que têm direito ao tal auxílio. Ou seja, pessoas que já superaram a longa fase de ‘análise do pedido’, já passaram dos falsos e verdadeiros problemas com o CPF e Receita Federal. Uma trabalhadora doméstica, chefe de uma família de três filhos informa ao repórter que foi dispensada do trabalho, sem salário. Desesperada, ela não sabe mais o que fazer para receber o dito auxílio emergencial (sic) e, então, comprar alimentos para a família, quanto mais produtos de higiene. Ela não tem celular e, assim, não tem como baixar o app e seguir o passo a passo para abrir a conta poupança digital na Caixa, para, só então, acessar o benefício. Todos os dias e já desesperada ela vai a uma agência da CEF e só escuta: esse serviço só é feito pela internet.

Outra entrevista é com um trabalhador da construção civil que tem celular, mas não tem recursos para colocar créditos no aparelho. E, quando consegue entrar na internet o grande acesso a rede torna essa abertura de conta digital em algo impossível. Muitas vezes o crédito do aparelho termina antes da operação ser concluída. Outras pessoas recorrem aos/as filhos/as, sobrinhos/as e vizinhos/as que têm alguma familiaridade com as TIC’s. Mesmo assim, em uma operação terceirizada estão há mais de três semanas tentando acessar a conta digital, sem sucesso. Um outro entrevistado tem celular, mas é um modelo antigo que não lhe permite acessar a internet, quanto mais baixar um app.

O que incomoda nesse contexto de violência, é que o Governo Federal têm dados sobre o acesso às TIC’s no Brasil, mas não os vê. Ou de fato, não estuda esses dados. Não é do seu interesse. Veja só: o Instituto Brasileiro e Geográfico (IBGE), o Instituo de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e o Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic) divulgam informações sobre a vida do povo brasileiro. E elas, são, no mínimo, assustadoras. Vamos ver alguns deles: em 2018 o Cetic divulgou dados da Pesquisa sobre o Uso das TIC’s nos domicílios brasileiros – que indicavam que 93% das pessoas dos domicílios brasileiros tinham algum tipo de acesso ao meio digital. Porém… Só 19% possuíam computador em casa e 27% tinham computadores portáteis.  E esse uso se dá, de forma funcional e limitada, para compra delivery de alimentos e de app de transporte.

Esses números emergiram do papel para o mundo real de forma explicita evidenciando as desigualdades sociais e econômicas no acesso ao meio digital. O Brasil precisa enfrentar essa realidade. Afinal, as brechas digitais têm capilaridades, uma delas, direta com a Educação. É só pensarmos que o Brasil chegou a essa situação de pandemia sem a área de Educação possa recorrer às aulas à distância para estudantes das redes públicas de educação – municipal e estadual – por que esses/as estudantes estão entre os/as escolhidos/as para reforçar a fila dos/as sem letramento por meio digital?

Mas, seguindo a máxima de Aldir Blanc e Maurício Tapajós “o Brasil não conhece o Brasil”, o Governo Federal foi atropelado pelas suas estimativas. Pensou, inicialmente, em um abono de R$200,00… Aí a Câmara aumentou para R$600,00 e o Senado aprovou. O Governo Federal estimou que o benefício chegaria nas mãos de pouco mais de 45 milhões de pessoas, número acima do informado pelo IBGE de trabalhadores/as que atuam no mercado informal, 38 milhões. Mas agora, o Ministério da Cidadania já projeta chegar a 70 milhões de beneficiados/as e, acreditem, está correndo atrás de recursos porque o que tem em caixa mal paga a primeira das três parcelas do auxílio emergencial. Uma ajuda que em mais de um mês de pandemia e de isolamento social, ainda não chegou a milhões de famintas famílias brasileiras.  Nessa correria maluca de tapar um buraco enquanto outros surgem o Governo Federal descarta outras alternativas para o pagamento desse benefício, como colocar outro banco público, para minimizar essa violência e evitar que pessoas já tão excluídas e humilhadas se tornem, ainda mais, vulneráveis ao coronavírus tendo que enfrentar mais de cinco horas de fila, com chuva, sol ou frio, nas agências da Caixa ou de Casas Lotéricas.

Porque estamos em estado de pandemia e de violência digital, é claro que, para o Estado, esse não é o momento de se refletir sobre políticas públicas e educacionais para o enfrentamento das brechas digitais, que nos atingem, visceralmente. E la nave va.

 

* Ativista dos movimentos negro e de mulheres negras, jornalista, doutora em Comunicação, docente na Universidade Estadual da Bahia (UNEB) e Vice coordenadora do Grupo de pesquisa Hierarquizações Étnico-raciais em Comunicação e Direitos Humanos (Rhecados).

 

 

Foto de Destaque: Extra

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