OPINIÃO: Brasil e Colômbia elegeram governos progressistas. E agora? Que democracia é essa que será construída? Democracia, para quem?

Para coletivos jovens de arte e comunicação das periferias de Cali e Salvador, só haverá democracia se esta for radicalizada permanentemente

Por Bruna Hercog*

Imagem: Ricardo Stuckert/Reprodução Redes Sociais

Em 2022, a Colômbia conquistou algo inédito: elegeu um governo de esquerda, representado pelo presidente Gustavo Petro e pela vice-presidenta Francia Márquez. O Brasil, por sua vez, ao eleger Luiz Inácio Lula da Silva, conseguiu impedir a reeleição de um governo de extrema-direita que em quatro anos trouxe danos incalculáveis para a população brasileira. É inquestionável a urgência em se eleger governos progressistas para que seja possível (re)estabelecer processos democráticos na América Latina. Mas, que democracia é esta pela qual lutamos? Quem, de fato, tem direito à democracia? Para jovens que se organizam comunitariamente em coletivos de arte e comunicação nas periferias de Cali (Valle del Cauca, Colômbia) e de Salvador (Bahia, Brasil), é preciso radicalizar a democracia, ou seja, construir uma democracia feita por aqueles e aquelas que historicamente foram apartadas dos processos decisórios e tiveram suas memórias e corpos violentados. É preciso construir uma democracia desde abajo – para recorrer a uma noção do jornalista uruguaio Raúl Zibechi.

Este texto – mesmo que de forma breve – pretende abordar o tema a partir das narrativas de quatro jovens que se organizam comunitariamente nas periferias de Cali e de Salvador: Johan García, da Rádio Comunitária A Ritmo de Ladera, Ángel Gonzále, Miguel Rodríguez e Gabriela Díaz, do Colectivo A La Hora 30 e Raiane Vasconcelos, do Coletivo Cutucar[i]. Escutemos, portanto, estas vozes.

Para Johan García, morador da Comuna 1, na região das Laderas, zona periférica de Cali, o exercício democrático na Colômbia por muito tempo se reduziu ao voto. “Agora que temos um governo de mudança, que temos esperança em mudar muitas coisas estruturais, é importante a participação, mas não só a eleitoral, mas a de ideias, de imaginários, de propostas, de construção de uma democracia que se faça pela raiz. Radical vem de raiz. É a base, as pessoas que não sabem ler e escrever, aquelas que estão nas zonas rurais mais distantes, vítimas do conflito armado, que precisam participar dos planejamentos de desenvolvimento local e nacional”. Por meio do exercício radiofônico, a rádio web A Ritmo de Ladera vem há 12 anos criando espaços comunitários de participação, de construção de outros imaginários sobre as Laderas, que assim como o Oriente de Cali são zonas estigmatizadas pelos meios de comunicação hegemônicos.

Rádio A Ritmo de Ladera faz durante o Primer Campamento de La Paz, ação de proteção das zonas verdes do Distrito de Aguablanca | Imagem: Bruna Hercog

Ángel González, morador do Distrito de Aguablanca, Oriente de Cali, e um dos integrantes do Colectivo A La Hora 30, reforça que para que haja de fato uma transformação social profunda na Colômbia é preciso que as populações empobrecidas conheçam e participem dos mecanismos locais de participação, a exemplo dos conselhos de direitos, as plataformas de juventudes e as assembleias comunitárias, para que possam incidir diretamente nos processos de elaboração e controle de políticas públicas. “É muito difícil e complexo o tema da participação nos territórios. Apesar de termos ganhado a eleição nacional, não dá para colocar os políticos em pedestais. O que precisamos seguir fazendo é o controle político”, comenta Ángel.

Para ele, para radicalizar a democracia “é preciso dar-se conta que político não é política e que política não é algo prejudicial, passa pelas decisões que queremos tomar em nossos territórios. É preciso pensar na organização dos territórios, juntar la banda e ocupar os espaços de participação”.

É o que o A La Hora 30 vem fazendo desde 2018, a partir de ações articuladas de proteção das áreas verdes do Distrito de Aguablanca, que evitam – ou ao menos tensionam – processos de gentrificação. Entre as ações do coletivo destacam-se a criação de hortas comunitárias que fortalecem o desenvolvimento local, a promoção de ações para fortalecer a mobilidade urbana, a exemplo dos bicipaseos e da produção do documentário BiciBles. “A bicicleta é o nosso método, a nossa ferramenta de trabalho para atuar na comunidade”, diz Gabriela Díaz.

Aqui vale destacar a importância que coletivos como estes – e tantos outros – tiveram para que a eleição de um governo progressista fosse possível na Colômbia. As juventudes foram peças chave do Paro Nacional que aconteceu entre julho e agosto de 2021. Conhecido como “Estallido Social”, o movimento durou cerca de três meses e foi disparado pela indignação da população diante da proposta tributária do governo de Iván Duque. Formou-se uma grande onda de protestos que se expandiu por todo o país. Cali foi uma das cidades com maior número de pessoas nas ruas por mais tempo. A repressão do governo contra as juventudes, os campesinos, as lideranças indígenas foi violenta. Foram milhares de feridos, dezenas de desaparecidos e mais de 70 mortos.

Mesmo assim, as pessoas seguiram nas ruas, criando estratégias de cuidado, defesa e autogestão. A primera línea foi uma delas: para proteger os manifestantes da violência da Escuadrón Móvil Antidisturbios (ESMAD), unidade da Polícia Nacional Colombiana, jovens se organizaram na linha de frente dos protestos. Muitos deles morreram ou foram gravemente feridos. Com intuito de cessar as manifestações, o governo iniciou negociações com jovens das primeras líneas. Houve conquistas importantes. Em Cali, vale citar o Compromisso Valle. Com recursos vindos de empresas e fundações do estado do Valle del Cauca, a iniciativa se dispõe a financiar projetos comunitários em áreas como educação, segurança alimentar e fortalecimento comunitário.

Segundo Miguel Rodríguez, do Colectivo A La Hora 30, as empresas se comprometeram a apoiar diretamente ações comunitárias promovidas pelas/os jovens da primera línea. Neste processo, o coletivo Fundación Um Distrito en Paz (FUNDP), formado por jovens ligados às barras de futebol que atuam no Oriente de Cali, conseguiu recursos para comprar um imóvel que passou a ser sede da “Casa de Cultura Fundpiana”: “um espaço para todos, a materialização de um sonho e a construção de uma realidade coletiva que transpassa horizontes”. Com o governo de esquerda eleito, as expectativas é que iniciativas como estas recebam apoio para que possam seguir fortalecendo a participação comunitária.

No Brasil, mesmo com quatro anos de desmontes sistemáticos de direitos e uma pandemia que agudizou as desigualdades sociais e raciais existentes no país, as juventudes periféricas seguiram articuladas, inclusive dando exemplos de autogestão durante as fases mais graves da pandemia de Covid-19. São inúmeras iniciativas que surgem a cada dia em todos os estados, em vários cantos das grandes e pequenas cidades, das zonas rurais e urbanas. O Coletivo Cutucar é uma delas. Raiane Vasconcelos conta que o coletivo nasceu em 2013, do desejo de jovens moradores de ocupação no bairro de Paripe em construir outras narrativas sobre o bairro. “Foram vários atravessamentos. A ideia de cutucar vem de incomodar, provocar, transformar. Percebemos o quanto a arte, nosso corpo político dentro dessas comunidades pode construir outras referências. Nosso discurso e prática é construir novas narrativas, é falar da gente, é colocar nosso povo como protagonistas das suas histórias”, ressalta. O Mocambos Marginais retrata bem isso: com o projeto, o Cutucar conseguiu realizar a primeira exposição fotográfica a céu aberto do Subúrbio Ferroviário de Salvador. Foram produzidas 150 imagens com até 10 metros de altura, que foram expostas em pontos estratégicos dos bairros.

Parede grafitada no espaço da Biblioteca Comunitária Zeferina Beiru, no Arenoso, Salvador | Imagem: Bruna Hercog

Raiane conta que a criação do coletivo e tudo do que fazem é justamente uma forma de tensionar, de radicalizar a democracia, à medida que a partir da arte e da comunicação estão buscando formas de fazer com que as políticas públicas cheguem aos territórios, de que as pessoas sejam ouvidas e tomem parte da construção de soluções para as suas problemáticas. “Como vamos fazer para que as pessoas possam ser escutadas e como as políticas podem chegar aqui, ou, inclusive, sair daqui? É o que nos move. O coletivo muitas vezes funciona para criar essas pontes entre a comunidade e o poder público. Há de fato muita descrença nas instituições e nos políticos e acreditamos que é papel dos coletivos fazerem esse diálogo com as comunidades, com uma escuta atenta e buscar caminhos para radicalizar”, diz. Para ela, é preciso continuar incomodando – independente do governo que esteja no poder – para evitar que perdure o silenciamento das comunidades periféricas, principalmente das mulheres e das juventudes negras.

Exemplos de atuações com as destes coletivos lembram que essa “outra democracia possível” já está sendo construída cotidianamente nos inúmeros outros centros urbanos e rurais das cidades latino-americanas – que ainda insistimos em chamar de periferia. Organizadas/os em processos comunitários horizontalizados nos saraus, rádios comunitárias, coletivos audiovisuais etc., estas/es jovens questionam cânones, propõem mudanças nas formas tradicionais de organização política e caminham tendo a arte e a comunicação como alicerces pedagógicos, a ancestralidade como bússola, o território como âncora e a aposta pelo comunitário como catalizadora da atuação[i]. Por meio do uso político da palavra elaboram dribles epistêmicos: táticas coletivas que se propõem a ressignificar os imaginários estigmatizados e difundir outras versões da história.

Foto do making of da exposição Mocambos Marginais, do Coletivo Cutucar | Imagem: Vaguiner Braz

No entanto, ainda são enormes os desafios para garantir a sustentabilidade financeira das ações – editais públicos pontuais são importantes, mas não suficientes – e para que elas deixem de ser iniciativas localizadas para ganhar corpo, influenciar políticas públicas, estruturar programas e projetos.

Assim, as perguntas são: temos as lentes e os ouvidos preparados para escutar essas vozes e, principalmente, para aprender com elas a construir modelos de gestão, políticas públicas, produções acadêmicas que de fato as coloquem no centro? Os novos governos eleitos no Brasil e na Colômbia terão vontade política e condições de negociar com os poderes econômicos a priorização de orçamento para a implementação de políticas feitas efetivamente “com” as populações periféricas – e principalmente com as juventudes – e não mais “para” elas?

Este texto integra a série “Ideias para um Brasil democrático”, conjunto de textos que pretendem contribuir com a reconstrução do Brasil e com a necessária democratização da nossa democracia. A série é uma iniciativa do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político.


 

[i] Estes são os quatro eixos do que tenho chamado de possíveis epistemologias das quebradas e que pode ser melhor compreendido na tese de doutorado “Rumo às Epistemologias das Quebradas: iniciativas juvenis em arte e comunicação em Salvador (Bahia, Brasil) e Cali (Valle del Cauca, Colômbia). Disponível em: https://repositorio.ufba.br/handle/ri/35390.


[ii] Tivemos a oportunidade de dialogar sobre estes assuntos durante a aula “Epistemologias das barriadas: tejiendo desde abajo arte y derecho à ciudadania”, ministrada no Seminário 2257 – “De las desigualdades a las diversidades. Prácticas artísticas en las periferias de América Latina y el Caribe”, promovido pelo Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO) e coordenado pelos professores Carlos Bonfim e Lúcia Tennina. Contribuíram, também, com os debates que seguem aqui Luciano Simões e Marco Molina.

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