Carmen de Oliveira: o silêncio que mata e a transfobia estrutural no Brasil

Desaparecida há mais de 35 dias, o caso expõe a crueldade, o apagamento e a transfobia a que a vítima foi exposta 
Imagem: Reprodução

Por Patrícia Rosa

Quando uma pessoa trans desaparece, a resposta do Estado e a comoção da sociedade tardam a chegar. Carmen de Oliveira Alves, de 26 anos e estudante de Zootecnia na Universidade Estadual Paulista (Unesp), está desaparecida desde o dia 12 de junho. A jovem foi vista pela última vez ao sair do câmpus de Ilha Solteira (SP) e teria saído para encontrar o namorado, Marcos Yuri Amorim, apontado pela Polícia Civil como o principal suspeito no caso.

Mulher trans, negra, cursando o último ano da faculdade de zootecnia, ela concilia a vida acadêmica com o trabalho de garçonete. Ligada ao mundo das artes, ela também gosta de fotografia. Uma mulher amada, estudiosa, trabalhadora e muito querida por sua família, amigos e pessoas que convivem com ela. Assim ela é descrita pela família e amigos, que não desistem de buscar arduamente por Carmen. 

Apesar da gravidade, a ação da polícia foi tardia. Marcos Yuri e o policial ambiental da reserva, Roberto Carlos de Oliveira, apontado como amante do namorado da jovem e possível cúmplice no crime, foram ouvidos e conduzidos para prisão temporária, como os principais suspeitos pelo desaparecimento, no último dia 10 de julho.

Ainda não há corpo e nem confirmação da morte, entretanto o caso é tratado pela mídia como feminicídio. Nas redes sociais, a família de Carmen se manifestou sobre a prisão dos suspeitos e sobre o luto antecipado que vivenciam. “Recebemos várias manifestações de pêsames, algo pelo qual somos profundamente gratos, mas queremos reiterar que o nosso luto só será vivido quando obtivermos a resposta da pergunta que gritamos há um mês: Onde está a Carmen?”

O alívio com a prisão dos suspeitos existe, mas a família recebeu a notícia como um presságio de uma batalha longa que terão que enfrentar.  “Pois sabemos que a justiça brasileira caminha de forma muito lenta, principalmente quando não se tem a materialidade do fato e por se tratar de uma mulher trans e preta, onde infelizmente as leis de defesa das pessoas da comunidade LGBTQIAP+ são falhas.”

A Afirmativa entrou em contato com a Polícia Civil de São Paulo para obter mais informações sobre as investigações. Apesar da urgência que envolve o desaparecimento de uma jovem trans negra, a resposta foi genérica e pouco informativa, como costumam ser as respostas do Estado diante da violência contra a comunidade LGBTQIA+.

“O caso segue sendo investigado por meio de inquérito policial instaurado pela Delegacia de Ilha Solteira. Na noite de quinta-feira (10), dois suspeitos foram conduzidos à delegacia, onde foram ouvidos e permaneceram à disposição da Justiça. As diligências prosseguem visando à localização da vítima, bem como ao total esclarecimento dos fatos.”

Nesta semana, a Polícia Civil de São Paulo encontrou ossos queimados na propriedade de Marcos Yuri Amorim. Os restos mortais foram encaminhados para análise pericial na quarta-feira (16). À TV TEM, o delegado Miguel Rocha, responsável pelo caso, informou que os vestígios dos ossos aparentavam ser de um animal, mas, para não ter dúvidas, encaminhou para análise pericial.

Apesar de ter sido o último local em que Carmen foi vista, a universidade levou 26 dias para se manifestar publicamente, limitando-se a declarar “preocupação” com o caso. Em nota, a Reitoria da Unesp, junto à Pró-Reitoria de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade (Proade), informou estar colaborando com as investigações e prestando apoio à família e amigos.

“Ela tem nome, tem rosto, tem história. A vida de Carmen importa”. Esta é uma das frases estampadas em cartazes e ecoadas em vozes durante uma manifestação por justiça e por respostas sobre o desaparecimento da jovem. Familiares e amigos seguem em busca de respostas. 

“Se Carmen fosse uma mulher branca, cis, montanhas já teriam sido movidas.” Esse foi um dos gritos dos manifestantes. E, sim, se a jovem correspondesse a esse estereótipo, a pressão por celeridade nas buscas e a atuação da polícia seria muito mais efetiva. 

Uma pressão popular necessária, diante de um Estado que não cria políticas públicas de proteção à comunidade trans, e de uma cobertura midiática que costuma ser ausente ou sensacionalista quando se trata da morte dessas pessoas. No caso de Carmen, mesmo com o desaparecimento ainda em curso, algumas reportagens priorizam o drama da relação com Yuri, em um tom novelístico que desvia do essencial: a brutalidade e a urgência de encontrar uma jovem trans negra desaparecida.

O Brasil é um país que apaga e banaliza a morte de pessoas trans. De acordo com dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), no ano passado foram registradas 122 mortes de pessoas trans no Brasil. Entre as vítimas, 95,9% eram mulheres trans ou travestis. Um cenário de brutalidade e invisibilidade, onde os corpos dessas pessoas estão expostos a diferentes formas de violência motivadas pela transfobia. Trata-se de uma realidade onde a cultura do ódio e exclusão pode levar ao apagamento fatal.

Carmem, uma jovem trans que busca respeito, reconhecimento e o direito de existir plenamente. Segundo informações da investigação, ela vinha enfrentando dificuldades no namoro com Marcos Yuri Amorim, que resistia a tornar a relação pública. Pessoas próximas relatam que Carmen já manifestava o desejo de ter uma relação pública e livre.

O irmão da estudante, Lucas de Oliveira Alves, relatou ao UOL que a família de Marcos Yuri não aceitava a relação por se tratar de uma mulher trans. Ele também afirmou que o suspeito se aproveitava dela.

“Na faculdade, ela fazia os trabalhos para ele, cozinhava, o chamava para dormir em casa, para comer, para sair. Enfim, ela meio que carregava-o nas costas. Isso é mais um traço da personalidade dele que comprova que ele é um aproveitador, porque é um cara que só queria saber de coisas para o seu próprio benefício.”

Pessoas trans já enfrentam marginalização e exclusão na sociedade: baixo acesso à educação, altos índices de violência e abandono familiar. Manter o relacionamento em sigilo foi um reflexo da transfobia estrutural, que contribui para o apagamento e a marginalização de pessoas trans.

O Dossiê: Assassinatos e Violência Contra Travestis e Transexuais Brasileiras indica que travestis e mulheres trans têm a expectativa de vida de 35 anos, uma realidade de um país que silencia, esconde, exclui e mata.

O que a família e amigos de Carmen querem é respostas efetivas sobre o que aconteceu com Carmen, que o caso seja tratado com a gravidade e urgência que ela pede.

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