CHUVAS EM SALVADOR: AS PERGUNTAS QUE PRECISAM SER FEITAS E O CINISMO DA ELITE

Por Yuri Silva*/Trabalhador da Notícia

Aprendi desde cedo no jornalismo que, independente do cargo de poder que uma fonte ocupe, as perguntas devidas precisam ser feitas. Entretanto, com as nada sutis restrições imposta pelas direções dos veículos de imprensa, quase sempre comprometidas com governantes e grandes empresários por causa de gordas cotas de patrocínio, a autocensura entre os jornalistas, mesmo aqueles sérios e dedicados à apuração isenta, se tornou prática tão comum que chega a ser invisível.

Entre as perguntas que precisam e devem ser feitas às fontes, geralmente estão algumas que, de tão óbvias, nunca – ou quase nunca – saem da boca de coleguinhas em entrevistas.

Foi pensando nessas questões, após ser escalado para cobrir uma coletiva de imprensa convocada pelo prefeito de Salvador, ACM Neto, com o objetivo de anunciar medidas municipais durante as intensas chuvas que provocaram a morte de 19 pessoas em duas semanas na cidade, que decidi fazer a pergunta que eu, enquanto consumidor de notícia, não havia visto nenhum jornalista fazer até ontem, 11 de maio.

Quase no final da coletiva e de forma aparentemente bem despretensiosa, como costumo agir nessas ocasiões que para alguns colegas parecem tensas, questionei ao excelentíssimo Príncipe da Graça, atual governante da primeira capital do Brasil, se a sua gestão pretendia inverter a lógica de investimentos que concentra a maioria esmagadora dos recursos de infraestrutura nos bairros centrais e nobres e deixa os moradores das periferias morrerem sob encostas e entulho.

Foi a deixa para Neto, encurralado entre um gravador e o mural de publicidade da sua gestão, usar de um recurso habitual no repertório das elites política e econômica: o cinismo.

Se antes tentava colocar a culpa pelas tragédias em famílias que não têm para onde ir e ocupam encostas para ter uma moradia próxima do centro, sem ter que se submeter a um sistema de transporte público humilhante, entre outros motivos, o herdeiro dos Magalhães respondeu incomodado, mas sem perder a ironia, que precisaria fazer uma pesquisa histórica para saber se pode dar razão às informações que minha pergunta trazia (referindo-se ao desequilíbrio de investimento entre centro e periferia).

Quando se faz de desentendido em perguntas como essa, dura para uma gestão que aposta na segregação geográfica, seja por meio do sucateamento do transporte público ou de outras formas de negação do direito à cidade, o prefeito das elites não só tenta se blindar como protege os anos de governo do seu avô, responsável por grande parte da desigualdade da Bahia, de sofrer justos ataques póstumos.

Além disso, ACM Neto dá um recado, ao meu entender, à classe jornalística. O desprezo por uma questão tão essencial (e óbvia) sobre a chuva e a política de investimento em infraestrutura urbana demonstra que os veículos de imprensa estão cada vez mais amordaçados diante dos poderes político e econômico.

Neto recorre ao cinismo em uma situação tão séria porque sabe que, com apenas uma ligação para qualquer jornal, TV, rádio, portal ou blog que a prefeitura financie com cotas de patrocínio, ele consegue impedir a publicação da sua resposta, sob pena de levar esses veículos à pindaíba.

Em tempo, desafio qualquer leitor a me indicar qual grande obra de infraestrutura Neto promoveu em bairros periféricos de Salvador, sobretudo em Cajazeiras, no Subúrbio Ferroviário e na chamada Cidade Baixa. Enquanto isso, só na elitizada e branca Barra aproximadamente R$ 52 milhões foram investidos em requalificação. Sem contar aí os investimentos nas outras praias da capital baiana.

Este é apenas um exemplo. Basta circular pelas cidades brasileiras para verificar que a segregação periferia vs. centro é dada, além de incentivada pelo Estado, por meio dos concentrados investimentos em infraestrutura. Ermínia Maricato, em seus estudos sobre alternativas para a crise urbana, aponta para essa questão. O mesmo fazem os estudiosos Flávio Villaça e Jean Lojkine, quando tratam sobre o espaço intra-urbano e a questão urbana no Estado capitalista, nesta ordem.

Em artigo de 2000 em que fala do urbanismo na periferia do mundo globalizado, Maricato, na época professora e coordenadora da Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e ex-secretária de Habitação e Desenvolvimento Urbano do Município de São Paulo, afirma que “as reformas urbanas, realizadas em diversas cidades brasileiras entre o final do século XIX e início do século XX, lançaram as bases de um urbanismo moderno ‘à moda’ da periferia”.

Segundo ela, “eram feitas obras de saneamento básico e embelezamento paisagístico, implantavam-se as bases legais para um mercado imobiliário de corte capitalista, ao mesmo tempo em que a população excluída desse processo era expulsa para os morros e as franjas da cidade”.

“Os governos municipais e estaduais desviaram sua atenção dos vazios urbanos (que, como se sabe, se valorizam com os investimentos públicos e privados feitos nos arredores) para jogar a população em áreas completamente inadequadas ao desenvolvimento urbano racional, penalizando seus moradores e também todos os contribuintes que tiveram de arcar com a extensão da infraestrutura”, diz a pesquisadora em outro texto, datado de 1987.

Outro trabalho acadêmico – do mestre em planejamento urbano, doutor em Ciências Sociais, pesquisador da Fapesp e professor convidado no Departamento de Ciência Política da USP, Eduardo Marques, e da pesquisadora da Fapesp, Renata Bichir – também mostra, com absoluto detalhamento, como os investimentos em infraestrutura urbana se concentram mais ou menos em espaços habitados pelas classes econômicas altas, a depender da ideologia do governante.

O trabalho, que pode ser lido aqui (http://migre.me/pOQth), utilizou a cidade de São Paulo como objeto de pesquisa, mas o modelo, como mostra Maricato, se repete país adentro.

O que ACM Neto tenta esconder é que o grupo social que ele compõe e representa na prefeitura de Salvador – as elites política e econômica, os grandes empresários e as grandes construtoras e o oligopólio do transporte público – são os grandes beneficiados dessa política de concentração de investimento nos bairros ricos. O que o prefeito soteropolitano quer que nós esqueçamos é que foi sua família e os seus aliados, adeptos da política coronelista, que contribuíram para que essa política segregacionista, racista e classista se tornasse habitual nas grandes metrópoles brasileiras.

E o que faz a absoluta maioria dos jornalistas? Prefere refletir sobre como e por quem seus salários são pagos.

*Yuri Silva é um jovem estudante de jornalismo, repórter estagiário de um jornal centenário da Bahia, militante do movimento negro brasileiro, ativista LGBT e membro do MPL Salvador.

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