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Da disputa de território ao racismo religioso: atravessamentos do narcopentecostalismo nos corpos negros no Brasil

Fenômeno articula varejo de drogas ilícitas, igrejas neopentecostais e perseguição às religiões de matriz africana
Colagem: Patrícia Rosa

Por Andressa Franco e Karla Souza

O cruzamento entre crime organizado e fé evangélica ganhou visibilidade nos últimos anos, sobretudo nas grandes capitais. Pesquisadores e lideranças religiosas têm chamado esse fenômeno de narcopentecostalismo, que vai desde a presença de versículos bíblicos em muros até a expulsão de terreiros em favelas. A dinâmica envolve grupos armados que se apresentam como convertidos, e utilizam símbolos religiosos para impor controle social e territorial.

Esse arranjo se fortaleceu na década de 2010, quando setores do varejo de drogas ilícitas passaram a se alinhar a igrejas neopentecostais. O processo não se restringe à adesão individual de criminosos à fé, mas se estende a operações de lavagem de dinheiro, ocultação de bens e legitimação simbólica de práticas violentas. A gramática religiosa, nesse contexto, sustenta a imposição de uma ordem moral sobre territórios majoritariamente negros.

Se a década de 2010 marcou o início da ascensão desse fenômeno, o neopentecostalismo em si vêm se expandindo desde as últimas décadas do século XX, quando pastores brasileiros importaram ideias e movimentos neopentecostais dos Estados Unidos, alcançando territórios historicamente dominados pelo tráfico de drogas.

A estratégia de conversão nesses territórios, de acordo com o historiador e pesquisador do crime organizado Joel Paviotti, era a aproximação das mulheres negras que viviam nas periferias.

“Nos EUA, geralmente eles convertiam o pai da família, e ele trazia o resto da família para a igreja. Mas eles percebem que o Brasil é um país ‘sem pai’, e as mulheres levam a família para a igreja. Muitas eram de religiões de matrizes africanas, mas acabaram se convertendo. Então muitos traficantes cresceram em lares evangélicos.”Joel Paviotti

O historiador pontua ainda que, por ser uma atividade de risco, estar no mundo do crime, demanda “determinada fé” para se proteger. “O neopentecostalismo vai crescendo nas favelas, e a conversão – ou metanoia – possibilita que o cara saia do mundo do crime e vá para a igreja. Os pastores também começaram a fazer muitas missões dentro das prisões”, relata. Mas uma mudança aconteceu com o tempo: se antigamente os convertidos deixavam as atividades do narcotráfico, hoje muitos deles não só permanecem, como abraçam a simbologia bíblica.

Joel Paviotui, historiador, pesquisador do crime organizado e dono do canal Iconografia da História – Imagem: Reprodução Redes Sociais

A graduada em Relações Internacionais do Instituto de Educação Superior de Brasília, Ana Clara Rodrigues, explica que essa aproximação foi favorecida tanto pela busca das igrejas por ampliar sua influência, quanto pela necessidade de determinados líderes de facção de legitimar seu poder e controlar culturalmente as comunidades sob seu domínio.

“O discurso religioso oferece uma narrativa que reforça uma identidade coletiva baseada na oposição ao ‘mal’, frequentemente associado às religiões de matriz africana, o que aumenta a aceitação comunitária de suas lideranças e, em alguns casos, cria alianças com setores religiosos que podem fornecer proteção política ou econômica”, detalha.

A pesquisadora observa, assim, uma contradição: chefes do crime, envolvidos em atividades que violam frontalmente os princípios previamente associados ao cristianismo, como a valorização da vida, a compaixão e o amor ao próximo, impondo códigos de conduta baseados em uma moral religiosa seletiva. “Moralidade” que, por sua vez, promove a perseguição às religiões afro-brasileiras. No plano prático, é possível citar desde restrições de horários de culto e proibição de símbolos como o uso do branco e imagens de orixás, até ações extremas, como expulsão de fiéis e destruição de terreiros.

Tropa de Aarão

Um dos episódios mais conhecidos é o chamado Complexo de Israel, criado em 2016. A região reúne comunidades como Vigário Geral, Parada de Lucas e Cidade Alta, no Rio de Janeiro (RJ), onde líderes do Terceiro Comando Puro (TCP) passaram a se autodenominar Tropa de Aarão, referência bíblica ao irmão de Moisés. O território ganhou bandeiras israelenses em estações de trem e placas de boas-vindas com mensagens bíblicas, transformando-se em vitrine do que pesquisadores descrevem como fusão entre religião e poder armado.

Joel explica que esses escritos são reforço de identidade do TCP, e vai além de uma “pintura de muros”. “Se eles tomam uma comunidade dominada pelo Comando Vermelho, por exemplo, a primeira coisa que fazem é limpar toda a favela e pintar esses muros com símbolos religiosos. Essas simbologias marcam o processo de conversão desses morros”, ilustra.

A teóloga e pastora Vivian Costa, que escreveu Traficantes Evangélicos – Quem são e a quem servem os novos bandidos de Deus (2023), afirma em sua obra que o discurso de “soldados de Jesus” legitima a perseguição às religiões afro-brasileiras. 

Outros exemplos documentados também ficaram marcados, como o fechamento de terreiros em Piedade e no Morro da Fazendinha, em 2005; os ataques filmados em Foz do Iguaçu em 2017, no qual, um pai-de-santo, foi obrigado a destruir símbolos sagrados de sua religião, enquanto recebia ameaças constantes contra a sua vida, caso reconstruísse o templo; e a atuação do “Bonde de Jesus” sob a liderança de Álvaro Malaquias Santa Rosa (Peixão), mostram como a violência sistemática se intensificou nas últimas décadas.

Favela não tem “pé” de AK-47, fuzil, pistola e cocaína

O debate, no entanto, vai além da adoção de práticas religiosas por grupos armados. Para pesquisadores e lideranças comunitárias, o termo narcopentecostalismo corre o risco de reduzir uma trama política mais ampla a uma junção entre drogas e igrejas. A disputa em curso atravessa corpos, territórios e espiritualidades, reforçando a criminalização das expressões culturais negras.

Carolina Rocha (Dandara Suburbana), autora de ‘A Culpa é do Diabo’, não adota o termo “narcopentecostalismo”, por acreditar que ele simplifica um fenômeno muito mais complexo, como se fosse apenas a soma de “droga” e “igreja”. Para ela, o que está em jogo é um projeto político de disputa de territórios, corpos e espiritualidades

“Narcotráfico é um mercado ilegal global dedicado ao cultivo, fabricação, distribuição e venda de substâncias proibidas. Nós não temos narcotráfico nas favelas. O que temos, em grande parte das vezes, é o varejo de drogas ilícitas. O varejo é só a ‘ponta do iceberg’, de um esquema muito maior desse mercado global” – Carolina Rocha (Dandara Suburbana)

Ela elucida que os meninos e homens, em sua maioria negros, que estão à frente do varejo de drogas ilícitas nas favelas brasileiras não possuem o capital econômico, simbólico, político e social que envolvem outros participantes desse mercado internacional gigantesco, que envolve o comércio ilegal de armas e drogas ilícitas.

Carolina Rocha (Dandara Suburbana), autora de ‘A Culpa é do Diabo’ – Imagem: Arquivo Pessoal

A disputa, portanto, não é apenas espiritual, mas política e cultural, envolvendo o direito de existir em meio a múltiplas vulnerabilidades. O fenômeno expõe como a sociedade brasileira ainda nega o direito pleno à pluralidade religiosa e como o racismo segue atravessando territórios de maioria negra. A favela, lugar de invenção e resistência, continua a ser também o palco onde se disputa o sentido da vida, da fé e do corpo negro no Brasil contemporâneo.

Disputas envolvem o direito de existir em meio às vulnerabilidades

A disputa que envolve espiritualidade, política e cultura no Brasil é atravessada por diferentes camadas de vulnerabilidade. A violência armada, o racismo, a precariedade educacional e o racismo religioso somados criam um cenário que torna desigual o direito de existir.

 O racismo religioso também revela a dimensão dessa disputa. Em 2024, o Brasil registrou 2.472 denúncias de ataques à liberdade religiosa. A maior parte dos casos envolveu violências contra terreiros. Ao mesmo tempo, o Censo 2022 mostra que essas religiões cresceram de 0,3% em 2010 para 1% da população, indicando maior afirmação identitária apesar da perseguição histórica. A composição religiosa do país também vem se transformando. Enquanto os católicos recuaram de 65% para 56,7% entre 2010 e 2022, os evangélicos cresceram de 21,6% para 26,9%. Esse avanço tem se dado de forma mais expressiva entre jovens e moradores de territórios populares, onde igrejas se apresentam como espaço de acolhimento, suporte espiritual e, em muitos casos, social e financeiro, ocupando espaços que deveriam ser garantidos por políticas públicas.

Essas dinâmicas religiosas se entrelaçam com a presença do crime organizado e a violência armada. Segundo levantamentos do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e Datafolha, cerca de 23 milhões de brasileiros vivem em áreas dominadas por facções ou milícias: 11% da população. Em 2022, o país registrou 33.580 homicídios por armas de fogo, sendo 72,4% de todos os homicídios cometidos dessa forma. As vítimas são, em sua maioria, jovens negros de periferia. O Observatório Nacional dos Direitos Humanos mostra que, em 2023, uma em cada sete mortes violentas foi causada por intervenção policial; oito em cada dez vítimas eram negras, e sete em cada dez eram jovens.

Diante da ausência do Estado e da letalidade das políticas de segurança, a vida nas favelas brasileiras segue marcada pela chamada “guerra às drogas”. Essa lógica tem produzido não apenas mortes, mas também apagamentos culturais e religiosos.

Identidades e memórias coletivas minadas

A aliança entre fé, armas e poder modifica profundamente a vida cotidiana das comunidades, produzindo impactos que vão muito além da esfera religiosa. 

No campo das relações sociais, Ana Clara pontua que a imposição de uma moralidade religiosa armada transforma códigos de convivência, regulando desde comportamentos individuais até celebrações coletivas. “A ‘guerra espiritual’ imposta pelas facções redefine quem é aceito ou marginalizado, criando divisões internas e enfraquecendo laços comunitários que antes eram fortalecidos pela diversidade cultural e religiosa.”

Ana Clara, graduada em Relações Internacionais do Instituto de Educação Superior de Brasília – Imagem: Arquivo Pessoal

O controle territorial é outra dimensão que impacta diretamente o acesso a direitos. Mas, o impacto mais profundo, de acordo com a pesquisadora, recai sobre a construção das identidades coletivas.

“A substituição forçada de símbolos e práticas afro-brasileiras por elementos neopentecostais impõe uma homogeneização religiosa artificial, que apaga referências históricas e culturais essenciais, comprometendo tanto a memória coletiva quanto o exercício pleno da liberdade cultural da comunidade.” – Ana Clara

Superar esse cenário exige ações simultâneas no campo da segurança pública, da garantia de direitos e da promoção da diversidade cultural e religiosa.

No aspecto jurídico e institucional, Ana Clara defende o fortalecimento de mecanismos de proteção às comunidades de religiões afro-brasileiras, garantindo investigação e punição efetiva para crimes de intolerância, além de ampliar o suporte a vítimas e líderes religiosos ameaçados.

No entanto, ela demonstra preocupação com as instâncias responsáveis por esse trabalho, dada a adesão de parte das corporações policiais ao neopentecostalismo radical, o que pode gerar omissão, conivência ou até apoio a práticas de racismo religioso. Vide o exemplo do último 24 de agosto, quando a Igreja Universal do Reino de Deus reuniu chefes das polícias de 18 estados e 100 mil militares em um único dia.

Além de investir no fortalecimento das próprias comunidades religiosas perseguidas e em campanhas de conscientização sobre liberdade religiosa, Ana Clara reforça a importância da presença do Estado nos territórios dominados por facções para além da repressão. São necessárias políticas públicas que garantam educação, cultura, emprego e saúde, reduzindo a vulnerabilidade que permite a captura dessas comunidades por discursos religiosos armados.

“Sem essa base concreta de proteção e responsabilização, qualquer tentativa de preservação cultural corre o risco de se tornar apenas simbólica diante da violência e do controle territorial já estabelecidos pelo narcopentecostalismo”, finaliza.

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