Os números do Anuário de Segurança Pública demonstram que o número de pessoas negras encarceradas crescem enquanto que o de pessoas brancas diminui
Por Andressa Franco / Imagem: Arquivo EBC
Os dados do 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, referentes a 2019, divulgados no último mês de outubro chamaram atenção para a necessidade de uma abordagem sobre o racismo estrutural e o encarceramento em massa. Dentre esses dados, podemos destacar o crescimento de 14% de pessoas negras nas prisões, paralelo à queda de 19% das pessoas brancas nos últimos 15 anos.
De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Anuário se baseia em informações fornecidas pelas secretarias de segurança pública estaduais, Tesouro Nacional, polícias civis, militares e federal, entre outras fontes oficiais da Segurança Pública.
É possível considerar essas informações, divulgadas periodicamente, como base para melhoria do funcionamento do nosso sistema prisional, como uma ferramenta para orientar e direcionar as políticas públicas necessárias, mas nenhuma mudança concreta é perceptível. Essa questão, somada aos dados do Anuário, acaba levantando o debate da presença do racismo no sistema prisional.
Números que também impressionam e ajudam a perceber qual é o perfil dos presos, se refere aos 657,8 mil detentos com declaração de raça disponível, indicando que dentre esses os pretos e pardos representam 66,7%. Ou seja, dois a cada três detentos são negros.
Racismo no Sistema Prisional
Para Felipe Freitas, 33, doutor em direito pela Universidade de Brasília (Unb) e integrante do Grupo de Pesquisa em Criminologia da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), os dados do encarceramento no Brasil são injustificáveis se olharmos para a configuração populacional do país. “Enquanto a população negra representa pouco mais de 50% da população brasileira, se olharmos a taxa de encarceramento os negros ultrapassam os 65%, ou seja, há uma super-representação de negros que só se explica pelo racismo. Se a questão fosse a da composição demográfica, negras e negros deveriam ser também maioria nas posições de poder, o que não se verifica”, explica.
Autor de diversos artigos sobre o tema, como “Corpos negros perseguição do Estado: política de drogas, racismo e direitos humanos no Brasil”, Freitas fala sobre a influência que a raça tem na tomada de decisões na sociedade, especialmente em questões centrais como conquistar uma vaga de emprego ou como uma decisão judicial.
“Discutindo a questão do encarceramento nos Estados Unidos, Angela Davis nos ensina que a prisão é uma forma de atualização do regime escravista não porque é uma reminiscência de um tempo antigo, mas porque a prisão na diáspora negra representa uma forma de atualizar o mandato de controle físico das pessoas negras em nossas sociedades”, acrescenta Freitas a respeito da eficácia do racismo em contribuir para o imaginário do corpo negro ser automaticamente associado ao crime.
As políticas públicas, afirma, são uma forma de atuar para prevenir a ocorrência de práticas discriminatórias, mas são efetivamente insuficientes. “É fundamental que haja por parte da nossa comunidade um relativo ceticismo em relação aos resultados possíveis dentro da máquina do Estado, não para estimular um sentimento derrotista diante dos desafios institucionais, mas para promover uma desconfiança necessária que siga estimulando a nossa imaginação política e que não nos deixe jamais desacreditar da necessidade de construir um jeito novo de fazer política”.
Cárcere Feminino
Uma abordagem também necessária no cenário do encarceramento é o de gênero. De acordo com o Anuário, em 2008 havia 21.604 pessoas do sexo feminino no sistema prisional, em 2019 esse número chegou a 36.926, um crescimento de 71% de prisões de mulheres. Dessas mulheres, segundo relatório do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) de 2019, 68% são negras.
Mesmo representando apenas 5% de toda a população carcerária, o aumento observado nos últimos anos também provocou o surgimento de movimentos que atuam em defesa dos direitos das mulheres encarceradas. Um desses grupos é a Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (RENFA), fundada pela pernambucana Ingrid Farias, que também integra a Escola Livre de Redução de Danos, pela necessidade de um espaço no feminismo para debater as questões das mulheres encarceradas.
“Acho que os principais dilemas iniciais estavam na ausência que a gente tinha de poder fazer esse debate em outros espaços feministas acerca das questões do encarceramento, da política de drogas, da prostituição, a impossibilidade de avançar com essa pauta no campo dos direitos humanos e até mesmo no campo da esquerda brasileira”, lembra Farias.
E é justamente na política de drogas que se encontra o crime mais comum entre as presas: o tráfico de drogas. “Fundamentalmente o aumento do encarceramento feminino no Brasil está ligado à política de drogas brasileira, está ligado a esse sistema que nos últimos anos têm afunilado a ação bélica sobre as periferias, periferias essas que as mulheres vivem sem garantia de direito, e por isso muitas vezes acessam o comércio ilegal de drogas.”, explica.
Ainda assim, Farias também aponta falhas no sistema por conta da existência de uma cultura punitivista voltada para mulheres que têm uma postura considerada desviante a partir da perspectiva patriarcal. “A sociedade começa a encurralar essas mulheres que têm uma postura desviante na sociedade. Hoje uma mulher que comete um crime na sociedade brasileira é julgada por várias questões, ela é julgada porque ela cometeu aquele crime, então é julgada no âmbito da lei, mas ela é julgada também no âmbito moral, existe muito moralismo no julgamento das mulheres no Brasil”, afirma.
De acordo com a ativista, essas organizações têm tido um impacto muito importante nos últimos anos no sentido dos ataques aos direitos humanos dentro do campo do encarceramento e também das periferias.
Outro ponto onde têm sido fundamentais se refere ao atual cenário de pandemia, garantindo as denúncias das violações de direitos com as famílias, com as pessoas que estão encarceradas e a possibilidade de uma rede de apoio a essas pessoas, além de vários Habeas Corpus e liminares colocadas junto ao Supremo Tribunal Federal acerca dessa crise do sistema carcerário.
“Já há muitos anos essas organizações vêm atuando em um campo institucional e político de apoio a esses familiares e a essas pessoas que estão privadas no sentido de garantir o acesso a direitos humanos, à cidadania.”, defende.
Vivência no Cárcere
Entre as muitas histórias de vida que tiveram a passagem pelo cárcere no meio de suas trajetórias, está a de Iza Jakeline, 36, conhecida como Negratcha. Hoje rapper, poetisa, escritora e trancista, além de militante do movimento negro e estudante de Direito, ela vivenciou a experiência da prisão quando foi detida em 2011.
Percebendo a escassez do debate sobre as mulheres encarceradas, passou a atuar em prol dessas mulheres pelo Conselho da Comunidade de Execução Penal, tentando inseri-las no mercado de trabalho. “Isso pra mim é importante porque eu entendo que a gente precisa ter uma ideia visionária para o nosso povo, povo preto, povo periférico”, afirma. Negratcha também compõe o projeto Mulheres Arteiras Sergipe, grupo voltado para o artesanato, muito praticado no presídio feminino, além de trocarem experiências em conversas para se sentirem acolhidas.
“Percebi que muitas daquelas mulheres não sabiam ler nem escrever, foi onde eu e outra interna, que hoje é um homem trans, começamos a dar aula de alfabetização. A gente viu nosso maior resultado quando uma interna, que não sabia ler nem escrever, escreveu uma carta para o filho”, recorda a rapper, que desde aquele período sentiu a necessidade de fazer alguma coisa pelas outras internas, uma das poucas boas lembranças do período em cárcere.
Para Negratcha, sua prisão foi mais um dos equívocos da justiça, e um assunto sobre o qual ainda encontra barreiras para falar sobre. “Eu fui acusada de tráfico, e é algo complicado estar em um ambiente onde você não conhece ninguém, com costumes que você não está habituada e ter que se adequar aquele ambiente”, conta. Iza relata que suas testemunhas de defesa não foram escutadas, “o próprio delegado sabia que não era eu que ele queria, e ali eles me acusaram de tantas coisas”. De acordo com ela sua prisão foi baseada em áudios acerca de um notebook que queria vender para o seu irmão, principal acusado.
Uma das frases que mais diz escutar é que se a prisão fosse ruim, ninguém iria querer voltar. Mas, foi justamente por ter passado pelo sistema penitenciário brasileiro que Iza passou a entender os motivos de tanta reincidência no crime. Hoje ela deixou de acreditar em ressocialização, e diz que se não fosse por seu emprego informal como cabelereira, talvez tivesse sido uma destas reincidentes. Mesmo com o trabalho e uma vida que considera estável, ainda não conseguiu a guarda do filho de 9 anos, do qual estava grávida quando foi presa e que hoje vive com a avó paterna.
São poucos os dados sobre reincidência criminal especificamente feminina no Brasil, mas, de acordo com a maioria das pesquisas e relatório ao longo dos anos, é fato que a reincidência é uma tendência que se repete. Segundo levantamento realizado pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias do Conselho Nacional de Justiça e o programa Justiça Presente no relatório “Reentradas e Reiterações Infracionais”, por exemplo, 42,5% das pessoas maiores de 18 anos com processos registrados em 2015, retornaram ao sistema prisional até dezembro de 2019.
“Quem passou pelo sistema prisional quando sai, não pode trabalhar em nenhum emprego de carteira assinada, porque nenhuma empresa vai te aceitar, se você passar em uma universidade, você vai fazer sua faculdade, mas não pode pegar o diploma, você pode fazer um concurso público, mas se passar não pode assumir, você perde seus direitos eleitorais até terminar de responder esse processo, fora que mesmo que depois seu nome fique limpo, você ainda tem 8 anos do fim da data que você terminou de responder esse processo até sua vida voltar ao normal, então o que é que essa pessoa pode fazer? Onde é que tem essa ressocialização? Como é que isso funciona? Na minha concepção não existe. E se a ressocialização não existe, claro que você vai voltar para o sistema prisional”, desabafa.
Natural de São Paulo, Negratcha tentou uma vaga na Câmara de Nossa Senhora Do Socorro – SE, pelo PT, nas últimas eleições municipais, na tentativa de expandir os trabalhos sociais que já vinha fazendo, para um trabalho dentro da política. Inspirada por Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro pelo PSOL assassinada em 2018, a ideia era ocupar um espaço onde pudesse colaborar na criação de um mecanismo que desenvolvesse as políticas públicas necessárias para a periferia.
A candidatura foi indeferida antes do pleito devido à Lei da Ficha Limpa, que a mantém inelegível até 2025, quando terá se encerrado o período de 8 anos após o fim do seu processo. A rapper conta que a notícia foi um baque emocional muito forte.
Pandemia nas Prisões
Desde fevereiro o Brasil convive com a pandemia de covid-19, e foi em abril o primeiro caso em um sistema penitenciário, no Pará. No mesmo mês também foi registrada a primeira morte e, apesar das informações superficiais divulgadas pela maioria dos estados do país, estamos entre as populações carcerárias que mais registrou casos de infecção e de óbitos pelos vírus nos presídios.
“A pandemia expõe o pior das nossas desigualdades. As prisões são a expressão mais acabada desse horror. No âmbito do projeto Infovírus o que temos visto é uma série de cenas de desrespeito à Constituição e aos princípios do direito penal e processual penal com decisões que sistematicamente negam a liberdade que aprofundam quadro de estrutural, permanente e sistemática violação de direitos humanos”.
É o que relata Freitas, que também é um dos coordenadores do projeto Infovírus, surgido nesse processo com o objetivo de verificar e contrastar as declarações e informações existentes sobre a pandemia no sistema prisional. Uma iniciativa conjunta e voluntária de grupos de pesquisas de diversas universidades brasileiras.
Outro problema denunciado no sistema prisional brasileiro nesse sentido é o déficit de mais de 300 mil vagas e a situação nessas unidades, que inclui falta de água, comida e banheiro, um contexto que amplia os riscos de contágio e propagação do vírus. “A falta de informação é outro aspecto bastante nebuloso dessa realidade”, pontua Freitas “Como gerir uma pandemia sem saber como estão as coisas dentro das unidades? É uma política de extermínio para a qual, não há dúvida, os destinatários são pretos e pardos”.