Dia das Trabalhadoras Domésticas: “Para que o quartinho da empregada deixe de ser a senzala moderna”

Com longo histórico de organização política, Trabalhadoras Domésticas ainda sofrem com falta de acesso a direitos e violências da cultura escravocrata

Por Karla Souza e Patrícia Rosa

“Se fosse uma profissão de mulheres brancas, nós já tínhamos avançado muito. Há um retrocesso gigantesco dessa abolição não conclusa. Quem eram os escravizados domésticos, hoje são as trabalhadoras domésticas com o mesmo requinte de crueldade”. A reflexão é de Preta Rara, que é ex-trabalhadora doméstica, rapper, historiadora, empreendedora, multiartista e autora do livro e da página nas redes sociais “Eu, empregada doméstica”.

27 de abril é marcado como o Dia das Trabalhadoras Domésticas, uma data que nos convida a refletir sobre a importância e os desafios enfrentados por essas profissionais. Em 2023, o Brasil contabilizou 6,08 milhões de pessoas exercendo trabalhos domésticos, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra por Domicílio (Pnad). Deste total, 91,1% são mulheres e a maioria são negras (65%), e apenas 1/3 da categoria têm carteira assinada.

Apesar dos avanços legislativos das últimas décadas, como a promulgação da Emenda Constitucional nº 72 em 2013 e a Lei Complementar 150/2015, conhecida como PEC das Domésticas, ainda há um longo caminho a percorrer rumo à garantia dos direitos trabalhistas. 

De acordo com a lei, os empregadores teriam que garantir uma jornada de trabalho de 8 horas diárias, férias, Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), seguro-desemprego, salário-família, adicional noturno, licença maternidade, entre outros direitos.  

A partir do importante marco para a categoria, a expectativa era de aumento no número de formalizações. Porém, de acordo com dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), em 2013, 30,4% das trabalhadoras domésticas tinham carteira assinada no Brasil. Em 2014, houve um pequeno aumento, para 31,8%. Nos anos seguintes, o quadro foi de declínio, em 2022 o número chegou a 24,7%. A carteira de trabalho é um direito para a categoria desde 1972, quando a Lei 5.859 regulamentou a profissão de empregado doméstico. 

Aumento da lista suja de empregadores 

A categoria do trabalho doméstico é a atividade trabalhista com o maior número de empregadores na lista suja do trabalho análogo à escravidão divulgada no último dia 05 de abril. Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, por meio da Secretaria de Inspeção do Trabalho, 248 empregadores foram adicionados à lista, dos quais 43 casos foram relativos a trabalho doméstico.

Para a coordenadora geral da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD), Luiza Batista, uma das problemáticas é a dificuldade da efetivação das fiscalizações nos locais de trabalho. Por se tratar de residências, existe o direito fundamental à inviolabilidade de domicílio. As inspeções só podem ser feitas através de denúncias, ou com as fiscalizações diretas, através de visitas às casas dos contratantes mediante autorização do dono da casa.

Luiza Batista coordenadora geral da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD)

“Essas casas são de pessoas que moram em bairros ‘bons’, nobres, que têm uma boa conta bancária, a pele clara, família tradicional. Na periferia a permissão é meter o pé na porta, infelizmente”, compara Luiza.

Denúncias de trabalho escravo podem ser feitas por meio do  Sistema Ipê, um canal exclusivo para recebimento de denúncias de trabalho análogo à escravidão e integrado a Fluxo Nacional de Atendimento às Vítimas do Trabalho Escravo.

A invisibilidade das diaristas

De acordo com informações da Nota Informativa de 2023, da Secretaria Nacional de Cuidados e Famílias, metade das trabalhadoras domésticas do Brasil são profissionais autônomas, as chamadas diaristas.

O quadro expõe o aumento de trabalhadoras domésticas que recebem como diarista, modalidade estratégica para os empregadores evitarem a concessão dos direitos trabalhistas.

“Isso é a desvalorização e invisibilidade do trabalho doméstico. Não acontece com os profissionais de educação, de saúde e de outras categorias de trabalhadores e trabalhadoras”, reflete Luiza.

A luta da FENATRAD é que a lei complementar seja revista e a trabalhadora doméstica, que recebe por diária tenha o contrato formalizado. “A luta tem que continuar para que esses contratos, até mesmo de um dia, sejam formalizados. Não tem como o empregador utilizar essas estratégias que só beneficiam a eles”, aponta a coordenadora.

Laudelina de Campos Melo, inspiração na luta pela garantia dos direitos

Nascida em Poços de Caldas (MG) em 1904, a história de vida de Laudelina de Campos reflete as lutas e sacrifícios enfrentados pelas trabalhadoras domésticas desde a infância. Ela foi forçada a abandonar os estudos aos 7 anos para sustentar seus irmãos após a morte do pai.

Seu ativismo começou aos 16 anos, quando foi eleita presidenta do Clube 13 de Maio, uma iniciativa voltada para a comunidade negra de sua cidade. Mais tarde, em São Paulo, juntou-se ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e à Frente Negra Brasileira (FNB), onde fundou a primeira associação de trabalhadoras domésticas do Brasil, em Santos, na década de 1930.

Em entrevista à Elisabete Pinto, educadora que estava produzindo sua dissertação de mestrado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Laudelina descreveu a situação precária das trabalhadoras domésticas da época. “A maioria delas trabalharam 23 anos e morriam na rua, pedindo esmola. Lá em Santos, a gente andou cuidando, tratou delas até a morte. Era um resíduo da escravidão”. A situação de falta de direitos persistia mesmo com a promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em 1943.

Durante a ditadura militar, Laudelina continuou sua batalha, encontrando apoio em pastorais e comunidades eclesiais de base da Igreja Católica. Apesar das perseguições, em 1988, com a nova Constituição, a associação que fundou finalmente se tornou um sindicato, um marco na luta por justiça social e igualdade de direitos. Seu nome foi recentemente incluído no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, reconhecendo sua contribuição histórica.

O legado de Laudelina inspira não apenas pela sua coragem, mas também pela sua persistência em meio às adversidades. Seu nome se tornou um símbolo de luta por justiça e reparação.

Visão de futuro para quem leva o país nas costas

O reflexo da luta de Laudelina permanece vivo nas memórias de quem tem e teve os mesmos desafios. Preta Rara conheceu a sindicalista em meio a pesquisas sobre a pauta do trabalho doméstico. “Eu a conheci e me identifiquei muito, né? Porque a luta dela foi em Santos, na cidade onde eu nasci. Ela lutou até para a casa dela virar o primeiro sindicato das trabalhadoras domésticas do Brasil. Então, essa figura tão importante apareceu nas minhas pesquisas e aí eu achei justo e legal a capa da página ter a imagem dela.”

Preta Rara, que é ex-trabalhadora doméstica, rapper, historiadora, empreendedora, multiartista e autora do livro e da página nas redes sociais “Eu, empregada doméstica” – Imagem: Fernando Luz

A pesquisadora e ativista destaca a importância do Estado em promover mudanças para reverter a situação dessas trabalhadoras, como a implementação de campanhas pelos diversos ministérios para abordar questões enfrentadas por essas mulheres. Desde a saúde ao acesso à educação e transporte. 

“Para que realmente a gente consiga viver nessa era de que o quartinho da empregada deixe de ser a senzala moderna. São 6 milhões de trabalhadoras domésticas no Brasil, e a maioria delas são mulheres pretas. As trabalhadoras domésticas são responsáveis por tantas coisas, elas são o alicerce deste país. Eu costumo dizer que elas mantêm o país de pé, e sobre os ombros”, finaliza Preta Rara. 

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