Por Elizabeth Souza
“Zé Meningite já teve bronquite, leptospirose, cancro, sarampo, catapora (…)”. É quase impossível ler sem cantarolar esse trecho de um dos clássicos do samba nacional. Composta por Rody do Jacarezinho e eternizada pelo Grupo Revelação, a letra, embora tenha um tom cômico, reflete uma dura realidade: a prevalência de enfermidades que encontram na desigualdade social a maneira de existir, a exemplo das Doenças Tropicais Negligenciadas (DTNs).
O samba narra a história de um homem, conhecido por “Zé Meningite”, que após contrair inúmeras doenças, assustou a própria morte. Na lista de enfermidades, três integram o grupo das DTNs: doença de chagas, sarna (escabiose) e raiva.
As Doenças Tropicais Negligenciadas são um grupo de doenças infecciosas e parasitárias que afetam principalmente regiões tropicais e subtropicais. De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), essas patologias impactam a vida de mais de 1,7 bilhão de pessoas, especialmente em comunidades vulneráveis e socialmente marginalizadas em diversas partes do mundo, devido a problemas como falta de acesso à água potável, saneamento básico e coleta de lixo, por exemplo.
“Muitas dessas doenças são crônicas e debilitantes, podendo causar deformidades, incapacidades permanentes e até a morte”, explica Pedro Benvindo Bartolomeu, residente de Clínica Médica no Hospital de Doenças Tropicais da Universidade Federal do Tocantins (HDT-UFT).
Na realidade brasileira, pessoas negras e indígenas são alguns dos principais grupos afetados, tendo em vista que lideram os piores rankings de acesso a saneamento básico, saúde e moradia, por exemplo.
Tipos
Para trazer conscientização a respeito do assunto, o dia 30 de janeiro foi escolhido pela Assembleia Mundial da Saúde como o Dia Mundial das Doenças Tropicais Negligenciadas.
A doença de chagas, por exemplo, é transmitida principalmente pelo inseto barbeiro, a doença é causada pelo protozoário Trypanosoma cruzi. A transmissão ocorre quando o barbeiro libera fezes na pele ao sugar o sangue, permitindo que o Trypanosoma cruzi entre pelo local da picada, mucosas ou feridas. Também pode ocorrer via transfusão de sangue, transmissão congênita, ingestão de carne contaminada ou acidentes laboratoriais.
Além dessa, o grupo é complementado por outras enfermidades bastante comuns no Brasil, segundo informações do MS: hanseníase, febre chikungunya, esquistossomose, filariose linfática, envenenamento por animais peçonhentos, geo-helmintíases, oncocercose, tracoma,, leishmanioses, hidatidose, micetoma e cromoblastomicose.
Dentre os objetivos do ODS (Objetivo de Desenvolvimento Sustentável) nº 3, criado pela Assembleia Geral da ONU, erradicar as epidemias de DTNs até 2030 é um dos principais. Mas, de acordo com Pedro, é preciso esforço conjunto para alcançar tal resultado.
“O Brasil tem potencial, mas para alcançar a eliminação total das DTNs, é essencial melhorar a infraestrutura de saúde, aumentar a conscientização e garantir recursos suficientes, além de fortalecer o sistema de vigilância epidemiológica”, avalia.
As barreiras sociais
“Igual Zé Meningite eu nunca vi/Pegar tanta doença braba, sobreviver e resistir”, diz outro trecho do samba. A resistência de qual fala a música é muito comum aos brasileiros e brasileiras reféns dos impactos provocados pelas desigualdades no país.
A alta incidência das Doenças Tropicais Negligenciadas evidencia essa realidade. O próprio termo “negligenciadas” reflete a falta de esforços para erradicar essas enfermidades que afetam, de forma desproporcional, populações em situação de pobreza. Dados da Global Burden of Disease mostram que essas doenças são responsáveis por aproximadamente 100 mil mortes anuais em todo o mundo.
“O termo ‘negligenciadas’ se refere também à ausência de pesquisa e inovação em tratamentos e vacinas. Embora algumas dessas doenças possam ser tratadas ou controladas com medicamentos existentes, muitos desses tratamentos são pouco acessíveis ou têm eficácia limitada, o que aumenta a carga sobre as comunidades afetadas”, destaca Pedro Benvindo.
O personagem do samba Zé Meningite é o retrato de um Brasil esquecido, por isso não é difícil associar seu Zé à realidade de um homem negro, pobre e da periferia. Situações que falam de um país que apesar de ter um Sistema Único de Saúde (SUS) – que é modelo mundial de saúde pública -, ainda não comporta adequadamente às demandas da sua população. É importante lembrar que mais de 80% dos usuários do SUS são pessoas negras, de acordo com dados do MS.
Prevenção
Alinhado à campanha de combate às DTNs, o médico Pedro Benvindo listou algumas medidas importantes de prevenção: práticas de Higiene e Saneamento, Uso de Repelentes e Roupas de Proteção, Cuidados com a Água, Prevenção de Infecções Parasitárias, Procura Rápida por Atendimento Médico, Educação e conscientização nas comunidades, combate a focos de transmissão, como água parada e lixo acumulado.
“Combater o estigma social que muitas vezes acompanha as DTNs também é importante, porque devido a isso muitas pessoas afetadas evitam procurar ajuda ou tratamento”, alerta Pedro. “Todos podem colaborar tratando as pessoas afetadas por essas doenças com respeito e empatia e incentivando a busca por atendimento médico quando necessário, sem medo de julgamento.”