Além de Micael, ao menos duas outras crianças negras foram mortas durante ações policiais no complexo do Nordeste da Amaralina nos últimos anos
Da Redação do Instituto Odara
Imagens: Instituto Odara
Micael Silva Menezes, menino negro de 11 anos, morador do Vale das Pedrinhas – bairro do complexo do Nordeste da Amaralina, em Salvador (BA), frequentava o 6º ano na Escola Municipal Teodoro Sampaio, no bairro de Santa Cruz, onde ia todos os dias acompanhado por sua mãe, dona Joselita Silva.
Diagnosticado com Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), Micael fazia acompanhamento psicológico no Centro de Referência da Assistência Social (Cras) do Nordeste de Amaralina.
Seu pai, Maurício dos Santos Menezes, conta que o maior sonho do garoto era se tornar jogador de futebol para mudar a vida da família. Ele fazia aulas de futebol em uma escolinha do bairro.
Domingo, 14 de Junho de 2020. Micael acorda animado para aproveitar o dia. Em sua casa, o menino toma banho, almoça e sai para brincar na rua. Com a ajuda do pai, Micael desfruta de um dos seus passatempos preferidos: empinar arraia. Micael logo se cansa da brincadeira e vai passear pelo bairro, onde é conhecido e querido por todos. “Se vocês conhecessem essa criança, iam saber que ele era realmente um menino de ouro”, afirma Maurício.
Um pouco mais tarde, ainda na pelas ruas do Vale das Pedrinhas, o menino e um amigo ganham um cachorro-quente e um refrigerante de uma conhecida para dividir entre os dois. Foi a sua última refeição.
“Infelizmente, o sonho dele foi cortado. Micael se foi”, diz Maurício, com semblante triste. Micael foi vítima de mais uma incursão da Polícia Militar da Bahia, que adentra as favelas com truculência e sedenta por sangue negro.
Em casa, por volta das 18h, os pais começam a receber a notícia pelos vizinhos: “Seu filho foi baleado!”. Descem até o local onde tudo aconteceu, mas não há mais sinal de Micael ou de seus assassinos. Descobrem que o menino foi jogado na viatura e levado para o Hospital Geral do Estado (HGE), na Avenida Vasco da Gama e, tamanho era o desespero de seu Maurício e dona Joselita, que se deslocaram andando [por cerca de 5 km] até o hospital, na esperança de encontrar o menino com vida.
Ao chegar no hospital, os pais de Micael contam que uma enfermeira informou que o menino estava sendo preparado para passar por uma cirurgia. Maurício relata que mesmo com muita insistência os funcionários do hospital não queriam deixar que ele e sua esposa vissem a criança. “Até que a mãe tomou uma atitude, passou pelos seguranças, entrou na sala e reconheceu ele pelo pé. Micael estava lá, morto”.
Além do corpo de Micael, dentro da sala do hospital, dona Joselita se deparou também com um policial militar que, segundo ela, estava todo ensanguentado, e por isso ela acredita ser o autor do disparo que matou seu filho. Revoltada, disparou: “Você vai ficar louco, maluco, sem paz na sua vida”.
De acordo com Joselita e Maurício, outros policiais também estavam no HGE e não utilizavam a etiqueta de identificação de uso obrigatório da PM.
“Micael não é o primeiro e nem o último”
Após a confirmação da morte do menino Micael, a Polícia Militar divulgou uma nota na qual dizia que, no dia 14 de junho de 2020, policiais da 40ª Companhia Independente da Polícia Militar (CIPM/Nordeste de Amaralina) foram acionados para atender um chamado referente à ocorrência de homens armados na região da Rua Santo André, no Vale das Pedrinhas:
“Houve troca de tiros e, ao cessar os disparos, os policiais encontraram um menino de 12 anos atingido, que foi socorrido para o Hospital Geral do Estado, onde não resistiu aos ferimentos. No local onde houve o confronto, a guarnição encontrou ao solo um revólver calibre 38, duas porções de crack e de pasta base para cocaína, 50 pinos de cocaína e 17 trouxas de maconha”.
No entanto, testemunhas e familiares de Micael contam que não houve troca de tiros e que o menino tentava correr para se proteger dos tiros da polícia, quando foi atingido. Na época, uma testemunha que preferiu não se identificar contou ao Correio que, após ser baleado, Micael pediu socorro e chegou a se abrigar na casa de uma moradora do local, mas foi retirado pelos PMs e jogado na viatura.
“Micael não é o primeiro e nem o último. Antes dele, várias crianças já faleceram, depois dele já aconteceu com vários e tudo eles dizem que é troca de tiro”, fala, revoltada, Joselita. E infelizmente, tudo leva a crer que ela tem razão.
Antes de Micael, em novembro de 2010, o menino Joel Conceição Castro foi atingido no rosto, dentro do seu quarto, durante operação policial. Depois de Micael, em março de 2021, a vítima foi o menino Ryan Andrew Pereira Tourinho Nascimento, de 9 anos. Ambos os casos também aconteceram durante ações da PM no complexo do Nordeste de Amaralina.
Uma família marcada pelas sequelas do racismo
O caso do assassinato de Micael foi encaminhado à Corregedoria da Polícia Militar e só agora, depois de dois anos sem o menino, a família terá a primeira audiência do processo.
Durante todo esse tempo, os pais vêm sofrendo com a dor da perda precoce de Micael e a revolta por saber que quem o matou segue sem responder na justiça. Dona Joselita, que é trabalhadora doméstica, conta que desde a morte do filho não tem condições psicológicas de voltar a trabalhar.
“Eu estou sendo acompanhada por psicólogo e psiquiatra. Eu vejo meu filho andando dentro de casa, vejo meu filho me chamando”, diz ela, muito abalada.
A morte de Micael, no entanto, não foi a primeira vez que a família vivenciou a truculência da PM. A região do Nordeste de Amaralina é constantemente vitimada pela violência e letalidade policial.
Maurício conta que, tempos antes da morte do filho, sua casa foi invadida por policiais que atiraram em um dos cachorros da família e o levaram para a cadeia. Maurício ficou um ano detido: “Não tinha nada. Não tinha acusação nenhuma. Minha ficha era limpa. Eles implantaram drogas e uma arma no boletim de ocorrência, mas eu não tinha nada”, afirma Maurício.
Após um ano detido Maurício teve a primeira audiência e contou que uma juíza lhe pediu perdão e o liberou por falta de provas.
Sobre o caso de Micael, os pais afirmam que o objetivo deles é que os responsáveis paguem pela morte do menino: “Eu só quero justiça. Que ele [o policial que fez os disparos contra Micael] pague pelo que fez. Ele tirou a vida de uma criança! Se a justiça existe, que ela seja feita por meu filho também. Estou ansioso por essa audiência para saber quais são as intenções do juiz ou do promotor com a gente, porque não é possível que tenha levado dois anos para acontecer a primeira audiência”, afirma, indignado, Maurício.