A matriarca baiana estreia nossa série “Anônimas Guerreiras Brasileiras” em homenagem ao dia internacional das mulheres
Por Andressa Franco e Patrícia Rosa
Na manhã do último sábado (6) tivemos o prazer de começar o dia ouvindo um pouco da história de vida de Dona Maria Ivonete dos Anjos, com 82 anos bem vividos. A virginiana do dia 11 de setembro, – não tão virginiana para dispensar um samba de roda ou um carnaval, mas o suficiente para mandar áudios logo após a entrevista e saber se “respondeu tudo direitinho” – nasceu na Ilha de Itaparica, maior ilha da Baía de Todos os Santos, no município de Vera Cruz (Ba), onde passou a infância e juventude.
Por conta da pandemia a conversa aconteceu através de um aplicativo de reuniões online, e para isso Dona Maria contou com a ajuda de uma das netas, entre os 30 que poderiam tê-la auxiliado. Sim, são 30 netos cujos nomes se orgulha em dizer que nunca esquece ou confunde. Além dos 28 bisnetos contados cuidadosamente por uma das netas.
Aos 15 anos, ainda em Vera Cruz, se casou, ou melhor, “Casei não… Vivemos juntos até o dia que nosso Senhor quis, tivemos quinze filhos e hoje restam dez: sete mulheres e três homens”. Todos os filhos nasceram na ilha, com exceção da caçula, única que nasceu em Salvador, para onde a família veio há 44 anos e está até hoje, atualmente morando em Mirantes de Periperi, no Subúrbio da capital baiana.
Mas as memórias das vivências em Vera Cruz são bem guardadas e acompanham Dona Maria, recordações que relata com carinho, apesar da dor pela perda da mãe quando pequena. “Minha infância foi boa, só não foi melhor porque minha mãe faleceu, eu tinha 7 anos e meu pai que acabou de me criar, somos cinco filhas mulheres. Mas foi muito boa, brinquei muito de roda, corria muito, subia nos arvoredos, brincava com minhas amigas, também de esconde-esconde… Hoje ninguém brinca mais”.
Mesmo casada, Dona Maria lembra que ainda ia para a rua brincar de roda enquanto o companheiro cuidava da primogênita, que teve aos 16 anos. “Sempre gostei de brincar”. Mas a vera-cruzense não poderia ser mais grata pela família que tem e agradece por ela todos os dias: “Me sinto heroína por ter meus filhos, netos e bisnetos e que venham os tataranetos para eu carregar, estou ansiosa”.[AR1]
Com uma trajetória marcada também pelo trabalho, além de dona de casa, trabalhou na roça, no mangue e na maré. Seu último ofício, que exerceu por quase 10 anos nas imediações do Sindicato dos Bancários, na Avenida Sete, foi como baiana de acarajé.
Tudo o que aprendeu com o pai e a educação que teve é a mesma que perpassa entre as gerações em sua família: “Ser educado, estudioso, trabalhador, respeitar os mais velhos. Eu dou a benção aos meus mais velhos quando chego à ilha meus filhos todos me dão a benção. Na semana santa não tem nenhum deles que chegue aqui e primeiro tem que se ajoelhar, me dar a benção e beijar minha mão e eu dou um agrado, uma moeda, pode ser de 10 centavos, de 1 real, o quanto for”.
Não é fácil para quem gosta da casa cheia e da família reunida enfrentar mais de um ano de pandemia sendo parte do grupo de risco. Mas Dona Maria conta que a necessidade de cumprir a quarentena não fez diferença em sua vida. “Sou muito caseira, meus filhos me amam, meus netos ficam todos comigo, quando tem tempo vem, quando não tem, não vem. Aqui tem professor, tem enfermeira, e sei que eles não podem vir todo dia”. Ainda assim, foi monitorada pelos filhos e netos, que queriam se assegurar de que a matriarca da família estava tomando todos os cuidados, a filha enfermeira, inclusive, mora por perto da casa dela.
“Eles vêm quando podem, às vezes aparecem até escondido para ver se tem alguém aqui, vem ver se estou de máscara, traz minha merenda, eles têm muito cuidado comigo. Minha vida é assim, eu não senti por ficar em casa, senti a doença, senti todo o acontecimento, pois nós perdemos nossos irmãos, nossos amigos, a pandemia está no Brasil e no mundo, então a gente tem que sentir. Mas pela rua não, porque o que eu quero meus filhos fazem, me bota no carro e aonde eu quero ir, eu vou”.
Felizmente, Dona Maria é uma das sortudas que já tomou a primeira dose da vacina e aguarda ansiosa pela segunda, que está prevista para maio. Mais uma razão para não se abater, seus 82 anos trazem a juventude de uma vida cuja maior parte passa sorrindo. Os filhos e netos estranham se a encontram meio pra baixo, ou se não está com vontade de brincar, mas ela garante: “Minha vida é rir, quando me perguntam o porquê eu não fico velha, digo que quando eu amanheço o dia, eu rezo, abro a porta e olho para o mundo, e não fico velha”.
E por falar em rezar, fé é algo que não falta para a devota de Santo Antônio, ela também é Yalorixá na Casa Ilé Asé Opô Oyá Bazanè. Mãe Maria de Oyá começou sua história com o Candomblé, ainda na juventude. Uma mulher de Fé e que se apega em suas crenças, pra seguir sem temores : “Deus me protege, meus Santos, meus Orixás, estou dentro da minha casa, não tenho medo de nada”. Com uma família católica, na casa de Dona Maria todo mundo mantém suas tradições, como rezar antes das refeições e realizar a trezena de Santo Antônio todo ano sem falta, sem contar a feijoada no dia 13 de junho, em homenagem ao Santo. “Esse ano eu rezei todas as noites, em casa, mesmo com essa pandemia, rezei com minha neta e com meu neto”.
Habituada a frequentar a igreja, foi lá que começou sua festa de 80 anos, com uma missa. Depois seguiu com a família e amigos para o espaço onde continuaram com a celebração das suas 8 décadas: “foram 2 dias de festa”, conta entre risos. Não poderia ser diferente para a amante de sambas de roda e de Carnaval que não vê a hora de poder sair para brincar na rua outra vez.
Questionada se gostava da grande festa de rua, Dona Maria nos mostrou como sua paixão por aproveitar a vida segue pulsante: “Gosto, ainda não morri, se tiver oportunidade ainda vou lá, 2022 vem aí”.
Outra paixão na vida dela é o futebol. Troca qualquer folhetim por um jogo na televisão e se for o Flamengo em campo aí ela se empolga mesmo: “Não gosto de novelas, se tiver alguém aqui em casa, fica na sala e eu vou pro meu quarto ver o que eu gosto, eu gosto é de futebol. Sou doente pelo Flamengo, não tem outro. Grito, fico rouca, faço tudo pelo flamengo”. Na preferência dessa flamenguista o rubro negro baiano não ganha: “torço um pouquinho pelo Vitória, mas o meu time mesmo é o Flamengo”. Ela conta aos risos que se os dois times jogarem, a torcida de Dona Maria vai para o time carioca.
A mulher negra, mãe, avó, bisavó e ansiosa para segurar os tataranetos, traz a luta, vontade de viver e o amor pela por sua trajetória e cheia de expectativas para o futuro.