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Em todo o continente, iniciativas debatem a identidade e o reconhecimento das populações afrolatinas

Pesquisa “Vozes Latinas” apresenta experiências de organizações afrodescendentes em diversos países das Américas 
Imagem: Laila Diaz - ANCCOM

*Por Alex Pegna Hercog

Quando espanhóis e portugueses pisaram nas terras que povos originários batizavam de Abya Yala, uma nova ordem mundial passou a ser estabelecida. Em 1507, os invasores passaram a chamar o continente de “América”. Um gesto “simples”, mas que revela a prepotência dos colonizadores e o desprezo à cultura e identidade dos povos que habitavam o território.

Por séculos, os europeus foram dizimando os povos originários. Em todo o continente americano, milhares de pessoas sequestradas de África desembarcaram para serem escravizadas pelos colonos europeus, por mais de três séculos. O primeiro país a abolir a escravidão foi o Haiti, em 1791, após uma revolução comandada pela população negra. O último foi o Brasil, em 1888.

Após a abolição, diversos países americanos tentaram implementar uma política de “embranquecimento” interno. Tentaram acabar com os negros e negras de diferente formas: em guerras, com fome, negando terras e trabalho para os filhos, netos e bisnetos dos africanos escravizados, falando que a música deles não prestava, nem o seu Deus, nem a sua alma.

Há quem acredite, por exemplo, que não existem negros no Chile. E pessoas, em El Salvador, que não sabem dizer se são negras ou não. Há quem seja branco na Bahia, mas que na Argentina será “el Negro”. Há quem pense que todos os negros restantes foram mortos na Guerra da Tríplica Aliança – assim chamada pelo Paraguai sobre o que aprendemos a chamar de Guerra do Paraguai. Mas, como diria Gerônimo, na beirada da multidão, em cima do caminhão, no carnaval da Castro Alves: estamos aqui e eles sobreviveram. E, assim, existe África em todas as vias, veias e vielas de Abya Yala – ou como nos acostumamos a chamar: nas Américas.

Afroidentificação

As tentativas de apagamento das populações negras na América Latina se refletem nos levantamentos censitários de muitos países. Até 2010, apenas nove, dos 19 países latino-americanos possuíam dados sobre a população afrodescendente. No Chile, por exemplo, somente em 2019 é que foi reconhecido oficialmente o “povo tribal afrodescendente chileno” e em 2024 é que essa opção passou a constar no Censo. Na Argentina, a categoria “negro/a” e o questionamento “você se identifica como afrodescendente ou tem ancestrais negros ou africanos”, só foi aplicado amplamente no último Censo, em 2022.

No Chile, grupos como a Colectiva Luanda e a Kilombo Negrocentricxs realizaram as campanhas “Afroidentifícate” e “Orgullosamente Afro”, durante o processo de recenseamento. Através de rodas de conversa e mobilização midiática, buscaram provocar reflexões sobre o que é ser afrochileno/a e como se reconhecer. Um debate relativamente novo no Chile e que instiga a auto-estima da população negra no país, conta sua história e busca o reconhecimento oficial. O levantamento de indicadores também é uma estratégia de luta por políticas públicas.

Campanhas semelhantes foram ou estão sendo realizadas em diversos lugares da América Latina. Por exemplo, pela Asociación de Pueblos Indígenas y Afrobolivianos de Santa Cruz de la Sierra (APISACS), na Bolívia. Pela fundação Afrodescendientes Organizados Salvadoreños (AFROOS), em El Savador. Pela Ashanti, no Peru. Pelo coletivo Copera, no México.

A luta para constar nos registros oficiais e reivindicar políticas públicas é acompanhada das discussões em se pensar a identidade desse tal indivíduo afrolatino. A relativa novidade do debate, em diversos países do continente, acende dúvidas sobre esse autorreconhecimento, que perpassa questões ligadas ao fenótipo, mas também à ancestralidade. Em cada país, uma realidade e debates particulares. Em todos eles, algumas semelhanças e muitas diferenças em relação ao que historicamente foi e vem sendo construído no Brasil.

Vozes Latinas

Em 2024, realizei a pesquisa “Vozes Latinas”, a partir do coletivo Intervozes. Em uma primeira etapa, o projeto identificou algumas organizações afrolatinas, especialmente as que trabalham diretamente com comunicação e cultura. São, portanto, uma diversidade de experiências ao longo do território latino-americano e que se conecta com África.

Desde el México, les invito a conocer Afrochingonas. Um grupo formado por três jovens afromexicanas e que afirma ser um “projeto interdisciplinar de criação, comunicação e investigação antirracista”. Elas também produzem o podcast Afrochingonas, “gerando conhecimento fora do meio acadêmico” e buscando incidir a partir de uma “alegre rebeldia”. O episódio mais escutado do podcast é “No somos feministas”, onde o grupo traz críticas à formação do movimento feminista mexicano, chamando a atenção para as questões raciais.

O podcast e produções audiovisuais também inspiram diversas iniciativas, em diferentes países. É o caso do Voces de la Rochela, podcast produzido pelo coletivo Mata´e Pelo, que se define como “mulheres afroguajiras gerando espaços de transformação social para a população afro”. O grupo atua no departamento de Guajira, na região da fronteira da Colômbia com a Venezuela.

Desde o Equador, o coletivo de mulheres La Movida Antirracista produziu o podcast Palabras Negras. Desde o Chile, o Kilombo Negrocentricxs realizou o Tertúlias Negras. Quem também utilizou o podcast como meio para ampliar o debate sobre afrodescendência em seu país foi o Ashanti Peru, através do Afropresentes e do programa de rádio Voces Afroperuanas.

Diferentes expressões artísticas também são utilizadas em todo o continente para reafirmar o orgulho afrolatino e provocar debates. Da Colômbia, surge o projeto audiovisual do grupo Mejoda, que trabalha com a produção de curta-metragem e realização de oficinas, no distrito de Aguablanca, em Cali, umas das regiões com maior concentração de afrolatinos do continente. De lá também atua a Casa Cultural El Chontaduro, uma associação que não dispensa a música, dança, cores e corpos para se fortalecer enquanto rede comunitária e buscar incidir no duro contexto enfrentado pela população afrocolombiana. Da Colômbia, outra iniciativa que se destaca é o Museo Popular de Siloé, um “espaço vivo de construção da memória do bairro”.

O carnaval também é instrumento de luta e afirmação de identidade para o grupo Oro Negro, que organiza desfiles na cidade de Arica, onde há uma das maiores concentrações de população negra no Chile. O candombe, expressão cultural vista nos carnavais de Uruguai e Argentina, também é cultuada durante todo o ano, sendo um importante instrumento de visibilidade da população negra e resgate de sua história.

No Uruguai, a organização Mizangas – Mujeres Arodescendientes é um exemplo de iniciativa para manter vivos os tambores do candombe, somada a outras frentes de lutas e debates pelo reconhecimento e direitos das pessoas afrouruguaias. Na Argentina, a Associación Misibamba também promove debates a partir do candombe, somadas a outras ações pelo fortalecimento e construção da identidade afroargentina, reivindicando o reconhecimento oficial e políticas públicas.

Com diferentes estratégias e formas de organização, muitas outras iniciativas afrolatinas se espalham pelo continente: Mujeres de Asfalto (Equador), Organización Fraternal Negra Hondureña (Honduras), Cimarronas, Asociación de Mujeres Afrobolivianas (Bolívia), Agrupación Xangô (Argentina) e ILEX Acción Jurídica (Colômbia), além da Red de Mujeres Afrolatinoamericanas, Afrocaribeñas y de la Diáspora. Todas essas organizações foram identificadas durante a pesquisa “Vozes Latinas”.

Algumas dessas experiências não escondem as influências brasileiras, apesar de vivenciarem processos distintos. O sistema de cotas raciais para ingresso nas universidade é um exemplo inspirador de políticas públicas para os países vizinhos. Entidades do movimento negro, intelectuais e ativistas brasileiros e brasileiras também são referência. 

Não à toa, muitas dessas organizações estarão em Brasília para participar da Marcha das Mulheres Negras (25 de novembro) e de outras agendas – fruto de uma articulação que aproxima o Brasil do restante do continente. Uma importante possibilidade de intercâmbio e trocas entre países para contribuir ainda mais com as reflexões e construções dessa tal identidade afrolatina.

* Alex Pegna Hercog é baiano, comunicador social e membro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social. Em 2024, realizou a pesquisa “Vozes Latinas”, que mapeou mais de 200 grupos de mídias na América Latina, além de organizações afrolatinas. Desde então, já realizou intercâmbios com organizações na Colômbia e Chile.

** Este é um artigo de opinião que está dentro da nossa política editorial, mas não reflete necessariamente o posicionamento da Revista Afirmativa

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