FILANTROPIA NO BRASIL: O que é? Como se organiza? E como se deu e se dá a participação negra nesta história

Entenda as raízes oficiais e as histórias invisibilizadas por trás da chegada e do fortalecimento da filantropia no país

Por Andressa Franco e Elizabeth Souza

No último domingo (10), a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) completou 75 anos de proclamada. O documento foi estabelecido no dia 10 de dezembro de 1948, pela  Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU). Trata-se do primeiro documento de caráter universal de proteção aos direitos humanos.

De lá pra cá, o “acordo” tem orientado as constituições dos Estados democráticos por todo o mundo, mas não só. Também tem sido uma inspiração para cobrança e defesa desses direitos por parte da sociedade civil organizada.

Entre as estratégias para advogar por esses direitos, e combater as desigualdades, está a filantropia. De acordo com estudo do World Giving Index (WGI), nunca tantas pessoas praticaram algum tipo de ação filantrópica. O levantamento tem sido realizado há mais de 10 anos para identificar os países mais generosos do mundo. O Brasil sempre ocupou posições baixas nesse ranking. Mas no último levantamento, o país avançou da 54ª posição em 2021, para o 18º lugar em 2022.

Com grande potencial de crescimento no território brasileiro, a filantropia não é mais um termo desconhecido pela população. Como ela funciona, no entanto, ainda pode ser um terreno repleto de dúvidas para muitas pessoas.

O trajeto histórico “oficial”

A filantropia possui uma raiz humanitária que encontra respaldo em sua conjuntura etimológica. De origem grega, philos significa amor, e antropos homem: amor à humanidade.

“Filantropia são atos para o bem comum, que podem ser feitos por praticamente qualquer pessoa”, explica Patrícia Kunrath, doutora em antropologia social e coordenadora de conhecimento no Grupo de Institutos Fundações e Empresas (GIFE). A pesquisadora destaca que em países onde a prática é culturalmente consolidada, como os Estados Unidos, o debate remonta à própria colonização. “Sobre a forma como se constituiu a sociedade norte-americana, historiadores apontam que colonizadores vindo nos barcos já falavam sobre filantropia, associativismo. Enquanto o Brasil foi colonizado na chave de exploração.”

Patrícia Kunrath, doutora em antropologia social e coordenadora de conhecimento no Grupo de Institutos Fundações e Empresas (GIFE) – Imagem: GIFE Reprodução

Além disso, com as consequências do imperialismo estadunidense nos séculos que se seguiram, fortalecimento do neoliberalismo e liderança do dólar no sistema monetário internacional, o país foi alçado à potência econômica. Sendo os mais ricos do mundo, foram também pressionados a tornarem-se os maiores doadores – ainda que não o façam proporcionalmente às suas riquezas.

No Brasil, o surgimento da filantropia também tem raízes na colonização, visto que era atrelado a instituições de poder e dominação, como a igreja católica, através da caridade. De acordo com a pesquisadora Nathalie Beghin, em sua tese, a origem se dá através da chegada da Irmandade da Misericórdia, em 1543, instituição religiosa trazida da Europa. É a partir daí que também surgem as primeiras Santas Casas de Misericórdia, oferecendo assistência hospitalar aos enfermos, através de práticas racistas/higienistas a pessoas negras e de classes inferiorizadas.

Santa Casa da Misericordia SP 1884 – Imagem: Acervo Histórico do Museu da Santa Casa de São Paulo

A Santa Casa de Misericórdia da Bahia do século XIX, por exemplo, apesar de oferecer serviços gratuitos, cobravam taxas aos proprietários de escravizados para tratar esses sujeitos explorados, o que fazia com que muitos desses senhores abandonassem pessoas negras doentes, como explica Gabriela Sampaio em seu artigo “Decrépitos, anêmicos, tuberculosos: Africanos na Santa Casa de Misericórdia da Bahia (1867-1872)”. De acordo com a pesquisa, a Santa Casa se apropriava desses trabalhadores abandonados e os submetia a mais uma nova temporada de escravização.

Fomentando o debate, o ebook “Histórias da Filantropia Negra que Transformam Comunidades”, produzido pelo Fundo Agbara, destaca que a filantropia surge no mundo com o viés caritativo impulsionado por homens ricos cristãos. “O objetivo principal da filantropia era garantir a salvação através das boas ações”, informa o livro.

Com o fim do Império português e a proclamação da República no Brasil, veio a separação entre o Estado e a Igreja, no final do século XIX,  trazendo outro viés à filantropia, tendo em vista que o Estado passa a assumir um papel mais assistencialista, que não se aplicava às pessoas negras, tendo em vista que a abolição da escravatura não promoveu o acesso destes povos a direitos básicos, como moradia, renda e educação. 

Mudanças

A Constituição Federal de 1891 trouxe dispositivos pertinentes para o desenvolvimento do terceiro setor, enquanto que a passagem para o século XX, apontou novas mudanças que redesenharam a vida social brasileira, como a urbanização e a industrialização do país. Na década de 1930, durante o Estado Novo, sob a então liderança do presidente Getúlio Vargas, entidades do terceiro setor foram regulamentadas

Já a filantropia institucionalizada através de empresas, fundações e institutos, e conduzida pela elite branca brasileira, nasce em um momento muito específico da história do país: a redemocratização pós ditadura militar, que durou entre 1964 e 1985.

“Nesse período, as organizações da sociedade civil estão se estruturando para combater a ditadura. Alguns fundos independentes começam a receber recursos de organizações internacionais, e com a reabertura democrática pós-constituição de 1988, algumas empresas e instituições começam a fazer Investimento Social Privado (ISP)”, aponta Kunrath.

A pesquisadora, no entanto, lembra que ISP não é necessariamente sinônimo de filantropia. Segundo o próprio GIFE, ISP é a mobilização de recursos privados para fins públicos. “Significa fazer doações ou executar projetos de benefício público para o bem comum de forma sistemática e recorrente.”

Para a antropóloga inglesa Jessica Sklair, que pesquisa filantropia e ISP na elite brasileira, organizar a filantropia dessa forma tem relação com o movimento da responsabilidade social corporativa, movimento global que chega ao Brasil nesta época.

“No Brasil, a filantropia da elite sempre foi corporativa, ligada a empresas familiares. O que a gente vê é o surgimento nos anos 80 e 90 da filantropia brasileira institucionalizada acompanhando o momento neoliberal e a chegada da responsabilidade social corporativa.”

Jessica Sklair, que pesquisa filantropia e ISP na elite brasileira – Imagem: Queen Mary University of London

Nessa altura, final dos anos 90, nascem organizações ainda discutindo o que é filantropia e responsabilidade social, como o Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, o Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social e o GIFE.

A antropóloga inglesa ressalta que até então não era comum o repasse de recursos direto para organizações da sociedade civil, o chamado grantmaking, mas a execução dos seus próprios projetos, que diziam respeito aos seus próprios interesses. Quadro que vem mudando aos poucos, mas, segundo dados do Censo GIFE, ainda é a regra.

Negritar a memória da filantropia no Brasil

Se filantropia é a expressão grega para “amor pela humanidade”, a filosofia africana Ubuntu defende que “a minha humanidade está inextricavelmente ligada à sua”. Essa forma de ver o mundo acompanhou os milhões de africanas/os sequestradas/os e trazidos ao Brasil. No decorrer dos séculos em que o tráfico negreiro e seu uso como força de trabalho eram a base da economia, a população negra se viu diante da necessidade de articular estratégias de subsistência e solidariedade coletiva. Registros históricos que sofrem reiterado apagamento.

“Vivemos um processo de amnésia social”, denuncia Giovanni Harvey, diretor executivo do Fundo Baobá para Equidade Racial, em referência à invisibilidade da filantropia negra dos registros históricos “oficiais”. “Temos um conjunto de exclusões  que passam a falsa sensação de que a população negra não tem memória, ao passo que outros segmentos têm a sua, não apenas conservada, mas também utilizada como referência.”

Giovanni Harvey, diretor executivo do Fundo Baobá para Equidade Racial – Imagem: Silvia Zamboni

Algumas das iniciativas organizativas negras mais conhecidas são as irmandades e redes de apoio para arrecadar recursos para comprar alforrias e custear enterros. Entre as experiências mais conhecidas estão: a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, uma das primeiras confrarias negras do Brasil, associada à igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, localizada no Pelourinho, em Salvador (BA); a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, confraria religiosa constituída por mulheres negras e situada em Cachoeira, cidade do recôncavo baiano, desde 1810; os clubes e Associações dos Homens de Cor, consolidados em São Paulo no final do século XIX, e que em poucas décadas se espalhou pelo país.

“As irmandades surgem no seio de uma instituição branca, que é a igreja católica, como espaços que produziram algum tipo de resistência a partir desse lugar. Não é um espaço propriamente de ruptura com a ordem estabelecida, então eles buscam resistir a partir desse laço de solidariedade”, explica Lucas Campos, historiador que pesquisa há 10 anos a Sociedade Protetora dos Desvalidos (SPD), primeira associação civil negra do Brasil, também considerada a primeira experiência de previdência privada do país.

Lucas Campos, historiador que pesquisa há 10 anos a Sociedade Protetora dos Desvalidos (SPD) – Imagem: Acervo Pessoal
Sociedade Protetora dos Desvalidos

A SPD foi criada pelo africano Manoel Victor Serra em 1832, e se desvinculou da “tutela” da igreja em 1851, tornando-se uma associação com personalidade jurídica e civil, em atividade até os dias de hoje. Além de buscar recursos para compra de alforrias, a organização atuava como sistema de crédito e fornecia pensão aos sócios em momentos de doença, ou para manter sua família em caso de morte, além de manter um sistema de penhores.

Sessão Solene do centenário da Sociedade Protetora dos Desvalidos em 16 de setembro de 1932 – Imagem: Arquivo SPD

De acordo com a presidente da assembleia geral da SPD, Lígia Margarida de Jesus,  a organização fazia filantropia apoiando o empreendedorismo de mulheres e homens escravizados que viviam de ganho, e fundando uma escola para ensinar o povo preto a aprender a ler, numa época em que eram proibidos de ir à escola.

Lígia Margarida de Jesus, presidente da assembleia geral da SPD – Imagem: Felipe Iruatã

Para Lucas, uma associação declaradamente negra sobreviver no Brasil colonial décadas antes da abolição, é um grande mistério. “No século XIX já existia uma política imperial de democracia racial para esconder qualquer tipo de identificação racial, por medo de experiências como a Revolução do Haiti (1791)”. O pesquisador estuda hoje a possibilidade da sobrevivência da SPD, então, estar ligada à boa articulação política.

Lígia explica que a associação era composta por homens africanos que sabiam ler, fazer contas e empreender. Assim, pensaram a instituição para ter sustentabilidade. Apesar dos notórios conhecimentos, organização e ousadia do grupo, Lígia acredita que estratégias de sobrevivência como essas demoraram muito a serem reconhecidas enquanto filantropia. “A SPD surgiu entre duas grandes revoltas: Búzios e Malês. Foi um momento em que a gestão de Salvador queria exterminar os negros. Então muitas organizações foram invisibilizadas. Mas, está no gene da população preta, e ainda mais num país com o racismo tão acelerado, ter empatia e acolher os que têm mais necessidade.” 

Novas articulações

A invisibilidade comentada por Lígia também se estende a diversas outras organizações negras atuantes na história contemporânea do Brasil. Dois exemplos recentes de Filantropia Negra no Brasil são: o Fundo Baobá, criado em 2011, primeiro e único fundo dedicado exclusivamente à promoção da equidade racial para a população negra brasileira; e o Fundo Agbara, lançado em 2020, durante a pandemia da Covid-19, reconhecido como o 1º fundo filantrópico de mulheres negras  do Brasil.

As organizações de movimentos negros, de forma geral, são exemplos materiais de resistência que atravessam o tempo e permanecem encontrando sentido e direção no Brasil do século XXI. Contudo, é urgente não romantizar a luta e trabalho encabeçados por esses grupos em um campo dominado por pessoas brancas. Dados da 11ª edição do Censo GIFE 22/23 mostram, por exemplo, que 92% dos principais órgãos de governança das instituições do ISP, os conselhos deliberativos  são compostos por brancos.

Nessa empreitada, Giovanni reforça o papel imprescindível da valorização da memória. “O que nós queremos fazer é criar as condições para que essa memória possa ser usada politicamente, entendendo esse mundo político como uma demonstração cabal de que precede a existência das organizações tradicionais filantrópicas  com vertentes religiosas. A filantropia negra é pautada pelo debate social, pela justiça social.”

A valorização da memória, como apontado por Giovanni, é importante para que não se esqueça a trajetória dos que vieram antes e também serve para manter vivo o presente de quem caminha e atua mirando o futuro que, inegociavelmente, é ancestral.

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