De acordo com o Portal da Transparência, os investimentos na Secretaria de Políticas para as Mulheres do governo da Bahia têm caído
Por Andressa Franco*
Imagem: Divulgação/Policia Civil
Em 1985, o Decreto 23.769, criou a primeira delegacia da mulher e a estabeleceu como responsável por investigar “delitos contra a pessoa do sexo feminino”, previstos no Código Penal. Segundo a Polícia Civil, a Bahia tem hoje 15 Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher (Deams) e sete Núcleos Especializados de Atendimento à Mulher (Neams).
Em 2015, a Ronda Maria da Penha foi criada na Bahia através de um Termo de Cooperação, e integra a Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. Segundo dados da Polícia Militar, de março de 2015 até março de 2023, a Ronda realizou a prisão de 164 agressores, fez 68 encaminhamentos às delegacias e 1.331 palestras e eventos, além de ter fiscalizado 13.025 medidas protetivas de urgência e ter atendido 2.401 mulheres em todo o estado.
Apesar disto, de acordo com dados do Portal da Transparência, a evolução histórica das despesas com a Secretaria de Políticas para as Mulheres do governo da Bahia, uma das responsáveis pelo termo de cooperação, caiu desde o ano em que foi assinado. Em 2016, foram investidos R$ 10,87 milhões, já em 2023: R$5,9 milhões. Entramos em contato com a Secretaria para saber o motivo da diminuição do investimento, mas não obtivemos retorno.
Segundo levantamento da Rede de Observatórios de Segurança, entre agosto de 2021 e julho de 2022, os casos de violência contra mulheres crescem 47% no estado.
O cenário nacional não difere muito, e aponta que a maior parte das vítimas continua sendo as mulheres negras. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública divulgado em 2022 mostram que em 2021 houve pelo menos uma ligação por minuto para denunciar violência doméstica. De acordo com a pesquisa, 62% das vítimas de feminicídio no Brasil são negras.
Experiências na DEAM
Estão entre os direitos das mulheres que buscam as Deams, serem atendidas por mulheres capacitadas para fazer a oitiva; requerer medida protetiva; expressar que deseja ir para um abrigo; atendimento presencial, sigiloso, sem discriminação ou questionamento ao seu relato. É o que explica Letícia Ferreira, advogada, diretora presidenta da Tamo Juntas, organização que assiste mulheres em situação de violência.
No entanto, nem sempre é assim que acontece. Raquel Gomes guarda lembranças ruins das suas experiências no espaço da Deam. Sua mãe foi vítima de sete facadas em 2016, no Engenho Velho de Brotas, bairro de Salvador, há poucos metros de uma Deam.
“Eu já descobri que minha mãe tomou uma facada dentro da viatura da Maria da Penha, por um policial sem nenhuma cautela, ele me mostrou a faca cheia de sangue. Na Deam, estavam falando que ela não ia sobreviver”, relata. Raquel lembra que precisou esperar por muito tempo na delegacia para fazer a denúncia, enquanto sua mãe estava no hospital.
“Quando eu voltei lá não me informaram sobre medida protetiva, denúncia. Se você não tiver advogada, não tem instrução, não sabe pra onde vai, como se proteger.”
Desde o crime contra sua mãe, Raquel passou a se informar sobre os direitos e protocolos em relação à violência contra a mulher, e as visitas a Deam foram mais frequentes. Ela questiona o fato de que são homens que registram as ocorrências. “Um homem vai entender?”.
Raquel critica ainda o fato da vítima ter que “fazer o serviço da polícia” juntando provas. Como sua mãe, que precisou de todos os documentos do hospital em que foi atendida durante as audiências, já que o laudo da perícia estava ilegível e a perícia não fotografou.
O caso de Raquel e sua mãe está longe de ser o único. Joseane Chagas tem 42 anos, e é assessora da mandata coletiva Pretas por Salvador. Ela teve um casamento de 20 anos, que chegou ao fim em 2022, depois de um episódio de agressões que duraram 30 minutos. No mesmo ano, Josi registrou ocorrência na Deam, apesar de ter tentado voltar atrás, pelo sentimento de culpa. Ao tentar retomar a denúncia este ano encontrou dificuldades. “Eu voltei para Deam depois de um ano para dar o seguimento, porém agora ficou tudo mais complicado para mim e não para ele.”
Ela lembra que o crime aconteceu durante a pandemia de Covid-19 e por isso teve um péssimo acolhimento e sua mãe não pôde acompanhá-la.
“Ficávamos fora da delegacia, eu estava vulnerável. Achava que teria o acolhimento de assistente social, psicóloga, até dos agentes. O que mais me chocou foi quando a agente que registrou a queixa falou: ‘você sabe que vai acabar com a vida dele né?’”, desabafa.
Ainda assim, a diretora da Tamo Juntas acredita que não é estratégico generalizar e personalizar os problemas de atendimento dessas estruturas.
“A gente não pode descredibilizar serviços que são referência para as mulheres. É preciso incentivá-las a buscar os serviços”, pondera. Para ela, é necessário fortalecer esses serviços. O que mais tem observado é que o protocolo não é cumprido integralmente, resultando em revitimização, atendimentos negligenciados e até negados.
“Existe uma negativa em registrar ocorrências que não sejam violências praticadas por ex ou atuais companheiros. É completamente descabido. Deams não são restritas a ocorrências da Lei Maria da Penha até porque são anteriores à ela”, denuncia.
Nesses casos, a advogada recomenda que as vítimas procurem uma delegacia comum ou o Ministério Público, tanto para relatar a revitimização quanto a violência que sofreram.
Fragilidades da Ronda Maria da Penha
A Ronda foi criada nas comemorações do Dia Internacional da Mulher. O objetivo é assistir as mulheres baianas com medidas protetivas decretadas pela Justiça.
A mãe de Raquel conseguiu a medida protetiva logo que se recuperou dos ferimentos. Raquel conta que no início haviam visitas periódicas, mas depois de sete anos do caso, não acontecem mais. Como o agressor foi condenado em primeira instância em março deste ano, mas está recorrendo em liberdade, a vítima tem medo de retaliação, assim como tinha medo de ir às audiências e só conseguiu ser levada pela Ronda através de um ofício.
Já Joseane, está com a medida protetiva desde março deste ano, mas ainda não recebeu visita da Ronda. Para Letícia, o problema da Ronda é estrutural: carros, equipe, etc. A ativista orienta as mulheres que desejam o serviço, a informarem na Vara de Violência, fazendo o requerimento pessoalmente através de advogado ou pela Defensoria Pública.
“As Varas de Violência estão superlotadas em demanda, assim como as próprias delegacias e centros de referência. São serviços precarizados e insuficientes pela falta de prioridade do poder público. No interior, por exemplo, têm patrulhas que atendem a 10 municípios. É impraticável”, avalia.
Outro obstáculo é o fato de que a Ronda funciona apenas das 8h às 18h. Durante a pandemia, a presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Câmara de Salvador em 2020, vereadora Ireuda Silva (Republicanos), indicou ao então governador Rui Costa (PT) a ampliação do horário de funcionamento para 24h.
“Eu acho um absurdo porque a violência contra a mulher acontece a qualquer hora. A medida protetiva também não funciona 24h, além dela ser falha”, aponta Raquel.
Para Letícia, o funcionamento 24h seria importante, assim como ampliar o número de profissionais. “As agressões e descumprimentos não têm hora pra acontecer. A Ronda é um destacamento da polícia treinado para atender esses casos, muitas vezes a polícia vai na casa e tem uma postura despreparada.” Ela aponta que o mesmo vale para as DEAMs, que funcionam 24h, mas passado o horário administrativo, o atendimento é por videoconferência.
Caminhos
Antes de ser atravessada por essas violações, por conta da agressão sofrida por sua mãe, Raquel conta que era “uma mulher adoecida”, sem consciência racial. “Na minha visão, se a mulher apanhava e estava com o cara, era porque queria. Hoje eu sei que não funciona assim”, afirma. Entre suas considerações para melhorias da Deam e da Ronda, destaca a importância de mulheres treinadas para o atendimento; orientação sobre o passo a passo depois da denúncia; mais viaturas, e funcionando 24h.
Considerando o diagnóstico de falta de investimento como principal fragilidade dos instrumentos da Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, a diretora da Tamo Juntas defende a luta pelo orçamento público como melhor caminho para ver esses serviços fortalecidos e cumprindo os protocolos que já estão estabelecidos.
O segundo caminho, pontua, é a orientação, informação e divulgação desses serviços e de como funcionam. Como o Centro de Referência do Atendimento à Mulher (CRAMs). Em Salvador existem três. Letícia explica que são espaços que oferecem suporte multidisciplinar e independem da mulher ter medida protetiva ou boletim de ocorrência. Ela defende espaços como estes, que apoiam e orientam para além da questão jurídica e que atendem mulheres em sua diversidade, mulheres em situação de rua; mulheres com deficiência; mulheres trans e trabalhadoras do sexo.
Letícia destaca também a importância dos movimentos de mulheres fazerem o controle social e incidência, sendo fiscalizadores desse serviço.
“As mulheres que mais dependem do serviço público são as que têm menos recursos econômicos e sociais. Que, por força do racismo e também da transfobia, são mulheres negras e mulheres trans. Não basta ter o lugar, as paredes, a delegacia se não tem delegada presencial, o inquérito é lento, o atendimento é ruim, se negam medidas protetivas. É nessas demoras, negativas e violações que muitas vidas se vão”, finaliza a advogada.
*com contribuições de Patrícia Rosa