Livro conta a história de Maria de Araújo, beata negra protagonista de milagres do Padre Cícero, que foi invisibilizada pela Igreja

A autora Dia Nobre revisita tese de doutorado premiada e traz versão adaptada para o público geral, apresentando a história da beata e sua participação no “milagre de Juazeiro”

Por Karla Souza

A beata Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo, uma das poucas mulheres negras a ganhar destaque no contexto religioso do século XIX, é a figura central do livro “Incêndios da Alma”, escrito pela doutora em história, Dia Nobre. Publicado pela Editora Planeta, a obra é uma adaptação da tese de doutorado da pesquisadora, que foi premiada pela sua análise detalhada sobre o apagamento histórico da beata, protagonista dos eventos milagrosos em Juazeiro do Norte (CE).

Imagem: Reprodução

Nascida em 24 de maio de 1862, na antiga Juazeiro (CE), Maria de Araújo teve uma vida marcada por uma profunda espiritualidade e por sua devoção ao catolicismo. Criada em um ambiente de trabalho artesanal e de intensa religiosidade, ela se dedicou a uma vida missionária após um retiro espiritual orientado pelo Padre Cícero Romão Batista. 

Em 1889, durante uma missa celebrada por Padre Cícero, Maria vivenciou o primeiro de uma série de fenômenos milagrosos que culminaram na transformação de hóstias em sangue em sua boca. Esse evento marcou o início de um movimento de fé que atraiu milhares de fiéis a Juazeiro do Norte (CE). Além desse milagre, Maria de Araújo também apresentava estigmas — marcas visíveis no corpo que representavam os ferimentos de Cristo durante a crucificação — e entrava em estados de êxtase durante as missas.

Apesar de sua importância, ela foi silenciada pela Igreja Católica, que a submeteu a 20 anos de reclusão e, após sua morte em 1914, teve seu túmulo violado e seus restos mortais desapareceram. 

A obra de Dia Nobre busca trazer à luz essa história de resistência e fé, questionando o racismo estrutural que levou ao apagamento de Maria de Araújo, em detrimento da figura do Padre Cícero, que foi o único creditado pelos milagres.

Imagem: Divulgação

Dia Nobre é natural de Juazeiro do Norte e traz em “Incêndios da Alma” uma narrativa baseada em 10 anos de pesquisa realizada em locais como Juazeiro, São Paulo e o Vaticano. A autora conversou com a Afirmativa sobre o processo de pesquisa e produção do livro. 

Revista Afirmativa: Maria de Araújo foi uma beata negra em um contexto religioso predominantemente branco. Como você analisa a representatividade e o impacto da sua figura na época e nos dias de hoje?

Dia Nobre: Maria de Araújo ganhou certa visibilidade na época em que viveu, devido ao impacto que causou na Igreja Católica. A Igreja, representada pela Diocese cearense, não aceitava que uma mulher negra, pobre e analfabeta ganhasse status de santidade, muito menos reivindicando uma experiência mística que dispensava a intermediação dos padres. Investigo no meu livro, justamente, o apagamento social e historiográfico de Maria, uma vez que há um esforço da Igreja brasileira em ocultar sua existência. A publicação da minha tese em 2014 despertou um interesse de outras mulheres pesquisadoras e do poder público sobre a imagem de Maria. Considero que é extremamente positivo pensar no resgate da história dela, não só enquanto uma mulher negra que foi julgada pela Igreja, mas, principalmente, como uma mulher negra que resistiu a todas as formas possíveis de apagamento.

R.A.:  Como surgiu seu interesse pela história da Maria de Araújo? O que você descobriu durante sua pesquisa sobre as razões para esse apagamento e como ele reflete o racismo estrutural na Igreja e na sociedade brasileira?

D.N.: Ao ter acesso ao principal documento sobre o acontecimento de 1889, percebi que ela, Maria, e não o Padre Cícero, era o foco da investigação da Diocese sobre o suposto milagre da hóstia. Inicialmente foi justamente a invisibilidade historiográfica dela que me interessou, mas quanto mais eu pesquisava e entrava em contato com a documentação sobre ela, mais me apaixonei por sua trajetória que é muito potente, principalmente, quando pensamos no contexto do final do século XIX. Uma das minhas hipóteses para a condenação e posterior apagamento de Maria de Araújo é que, em primeiro lugar, o movimento de romarias começa em torno do corpo de Maria, no sentido em que era com ela que se dava o sangramento da hóstia, não com o padre Cícero. Isso é demonstrado uma vez que a hóstia sangrava mesmo quando outros padres a ministravam. Além disso, ela manifestava outros fenômenos em seu corpo, como estigmas da paixão de Cristo e êxtases. Então, esse corpo negro não era o ideal, em um mundo de Santos e Santas brancos, para representar a Igreja.

R.A.: Quais foram os principais desafios que você enfrentou ao longo dos 10 anos de pesquisa para reconstruir a trajetória da beata, especialmente em locais como o Vaticano, onde parte da documentação estava armazenada?

D.N.: O principal desafio foi, sem dúvida, o acesso à documentação. Desde que iniciei a pesquisa em 2004, sempre que dizia que estava pesquisando a trajetória da Beata Maria de Araújo, tive meu acesso aos arquivos eclesiásticos limitado. Vários documentos que eu poderia ter acessado no Brasil, só pude acessar anos depois no Vaticano. Cheguei a receber uma carta de uma pesquisadora e de uma freira me “alertando” para o perigo da minha pesquisa e que ela era “muito feminista”. No Vaticano, o acesso foi mais tranquilo, pois minha orientadora italiana, a Doutora Marina Caffiero, tinha uma boa relação com os diretores dos arquivos, e consegui ter acesso aos documentos relativos ao processo sobre a Maria de Araújo.

R.A.: O que mais surpreendeu você ao explorar os arquivos do Archivio Segreto Vaticano e do Archivio della Congregazione per la Dottrina della Fede? Houve alguma descoberta que mudou sua percepção sobre o “milagre de Juazeiro”?

D.N.: No Arquivo da Congregação, tive acesso aos pareceres dos cardeais sobre o caso de Juazeiro, e me surpreendeu a violência na linguagem usada para se referir à Maria. Por exemplo, em um dos relatórios, ela é descrita como “aquela jovem é dada a bebidas alcoólicas e não obstante esse vício, quer se passar por santa”. Além disso, os padres sempre ressaltam que ela é uma “mulher feia, pobre e analfabeta”, reforçando que ela tinha características “mestiças, de cabelos carapinhos”. Essa ênfase na figura de Maria faz uma equivalência entre seu fenótipo racial e a impossibilidade direta de ela ser considerada santa. Há uma linguagem que não esconde a repulsa e o preconceito.

R.A.: Você acredita que a história de Maria de Araújo poderia ter sido diferente se ela não fosse uma mulher negra? De que forma a questão racial influenciou o tratamento dado a ela pela Igreja e pela sociedade na época?

D.N.: Talvez, pelo contexto, ela não fosse mesmo considerada milagreira, uma vez que temos um caso muito parecido contemporâneo ao dela que ocorre com uma freira francesa na cidade de Chartres. No entanto, acredito que se ela fosse branca, o processo teria sido menos violento, uma vez que ela foi torturada, obrigada a se afastar da sociedade e, mesmo depois da sua morte, seu túmulo foi destruído. Então, creio que o fato de ela ser negra despertou também um ódio relativo à potência de suas manifestações e à mudança que ela causou na ordem do povoado. Ela conseguiu mexer com toda a estrutura hierárquica da Igreja e incomodou bastante os padres e os bispos da época.

Imagem: Em Foco

R.A.: Como você avalia o papel do Padre Cícero nesse contexto e a relação dele com a beata? Por que ele foi o único creditado pelos eventos milagrosos e como isso afetou a narrativa em torno de Maria de Araújo?

D.N.: O Padre Cícero era o diretor espiritual da Beata e estava muito próximo dela, desde que ela era uma adolescente. Para mim, não cair nos extremos é bastante importante. O Padre Cícero não é um vilão nessa história, ele era profundamente místico, acreditava no que a Maria vivenciava e sofria com o que acontecia a ela. O padre era muito respeitado e querido por toda a comunidade, e por isso ele teve uma vida longa e se tornou uma liderança política importante para Juazeiro. Ele também passou por diversas crises de fé, mas sempre manteve o respeito ao corpo da Maria e, ao final de sua vida, procurou resgatar a memória dela, que, infelizmente, não surtiu efeito. Creio que o silenciamento e o apagamento da Maria se deram justamente pela Igreja ter considerado que uma mulher negra, pobre e analfabeta não poderia se tornar santa e, por isso, o Padre Cícero foi o único creditado pelos eventos.

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