Filha de Mãe Gilda, cuja morte deu origem ao Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, lembra ataques ao busto da Yalorixá, das ameaças que ainda recebe e da importância de denunciar
Por Andressa Franco e Patrícia Rosa
Imagem: Arquivo Pessoal
O dia 21 de Janeiro não foi escolhido como Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa por acaso. Instituída em 2007 por meio da Lei nº 11.635, foi motivada pelo falecimento em 2000 de Gildásia dos Santos e Santos, a Mãe Gilda, sacerdotisa do Ilê Axé Abassá de Ogum, em Salvador. A Ialorixá morreu vítima do racismo religioso, após ter seus problemas de saúde agravados em consequência dos ataques de ódio e agressões verbais e físicas que sofreu por parte dos membros da Igreja Evangélica Assembleia de Deus, dentro de seu próprio terreiro no bairro de Itapuã.
Essa não foi a única vez que Mãe Gilda sofreu com o racismo religioso. Mesmo depois de 20 anos do seu falecimento, em julho de 2020, o busto da Ialorixá erguido no Parque do Abaeté em Salvador foi alvo de vandalismo. O crime foi praticado por um homem, que disse ter tentando destruir o monumento “em nome de Deus”.
Não é um caso isolado, no decorrer de 2021 o Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela, atendeu 94 casos entre racismo, intolerância e casos correlatos. Número que supera o registrado pela unidade em 2020. Também em 2020, as denúncias de casos relacionados à intolerância religiosa, destinadas à Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), aumentaram 41,2% no primeiro semestre em relação ao mesmo período de 2019. O aumento passa para 136% quando se compara aos casos de 2018, segundo dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH).
O Brasil tem normas jurídicas que visam punir a intolerância religiosa. A Lei nº 9.459/1997, considera crime a prática de discriminação ou preconceito contra religiões. A pena vai de um a três anos de reclusão, além de multa. E essas não são as únicas condutas criminosas previstas na legislação brasileira em relação a intolerância e perseguição religiosa. No entanto, o código penal não parece intimidar os agressores.
Mãe Jaciara, filha de Mãe Gilda e atual ialorixá do Ilê Axé Abassá de Ogum, vem há 22 anos atuando na luta antirracista e pelo livre direito de exercer sua cultura e religião. A Revista Afirmativa conversou com a religiosa sobre como enfrentar e lidar com a intolerância religiosa na sociedade brasileira.
Revista Afirmativa: A sua mãe, a Mãe Gilda, se tornou símbolo da luta contra a intolerância religiosa. E apesar de ter sido necessário chegar ao ponto de os ataques contra sua religião provocarem a sua morte, a data deu origem ao Dia de Luta Contra a Intolerância Religiosa desde 2007. Você sente que houve avanço no cenário das discussões sobre intolerância religiosa no decorrer desses anos?
Mãe Jaciara: O caso Mãe Gilda completa agora 22 anos, esse é o tempo da minha vida que eu me dedico a fazer parte dessa luta antirracista. Eu vejo que nós não demos muitos passos a frente, mesmo a Bahia saindo a frente com o primeiro caso julgado [de racismo religioso]. Eu estou muito decepcionada, porque mesmo com as leis que são sancionadas, mesmo na pandemia, além de Mãe de Gilda há 22 anos ter sido morta, violentada, teve seu busto violado. A imagem dela foi apedrejada, quebrada, por um homem que diz que fez “em nome de Deus”. Eu fiquei extremamente chocada. Como um ser humano sai de sua religião, do seu culto, de sua igreja, vai até uma praça e ataca a imagem de uma Ialorixá? Porque ela não está vestida de roupa comum, ela está trajando seus adereços africanos, sua herança cultural. No dia do ocorrido, o homem foi preso em flagrante, a minha advogada acompanhou o caso e ao chegar lá, a delegada disse que ele teve um surto. Então eu também posso. Eu queria recrutar 16 mulheres pra gente começar a surtar e dar o retorno. Mas eu não quero me tornar um espelho violento do que a sociedade me dá. Ainda não existem pessoas qualificadas, de ética, que possam efetivar essas políticas públicas. É incansável, mas a gente não pode silenciar a luta, a denúncia é muito importante.
“No dia do ocorrido, o homem foi preso em flagrante, a minha advogada acompanhou o caso e ao chegar lá, a delegada disse que ele teve um surto. Então eu também posso. Eu queria recrutar 16 mulheres pra gente começar a surtar e dar o retorno. Mas eu não quero me tornar um espelho violento do que a sociedade me dá“
R.A.: Como lidar com os insistentes ataques?
M.J.: Os ataques não são só focados em mim e nem no busto de Mãe Gilda. Na Bahia os casos têm crescido muito, o estado tem passado por momentos difíceis não só em ataques presenciais, mas as próprias redes sociais têm sido muito violentas para a nossa comunidade. Eu sempre digo que a ancestralidade é o que me sustenta, eu sou uma mulher de muita fé. Antes da pandemia, quando eu chegava tarde de qualquer reunião, tinha um desconhecido parado num carro, em frente à minha porta. E por precaução eu não entrava, ia para um hotel. Com o processo do espólio de minha mãe, eu sofri juras de morte, recebi uma ligação que dizia: “Eu estou indo aí agora no terreiro para arrancar sua cabeça, eu estou indo agora tocar fogo no terreiro”. Eu não consegui divulgar isso tanto, para não amedrontar mais ainda quem estava do meu lado. No ano de 1999, a Folha Universal publicou uma matéria com o título “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes” utilizando na ilustração uma foto de Mãe Gilda. No ano seguinte, a Ialorixá faleceu, mas seus filhos iniciaram uma ação de indenização por danos morais. Tiveram manchetes que divulgaram assim: “Ialorixá ganha milhão da Igreja Universal”. E não foi isso, foi só uma sentença, que ainda ficou recorrendo para várias instâncias e foram 10 anos parado, no final o valor reduziu para 150 mil reais. Eles ainda teriam que fazer um pedido de desculpas no Jornal deles, mas eu não tive acesso ao jornal. Foi muito triste a história, no dia 20 de Janeiro ela saiu e voltou dentro de um caixão. Isso ficou muito marcado em mim, eu aumentei 28kg, pois a gente fica depressivo. O racismo, a intolerância religiosa tem afetado as mulheres e homens negros de candomblé e de movimento negro. A gente termina não querendo mostrar tanto a fragilidade. Eu sou uma filha de Oxum e as lágrimas às vezes querem descer, eu não deixo elas escorrerem dos meus olhos, eu as engulo para matar a minha sede, não de vingança, mas de reparação, uma vontade fazer com que o futuro seja diferente.
“A gente termina não querendo mostrar tanto a fragilidade. Eu sou uma filha de Oxum e as lágrimas às vezes querem descer, eu não deixo elas escorrerem dos meus olhos, eu as engulo para matar a minha sede, não de vingança, mas de reparação, uma vontade fazer com que o futuro seja diferente“
R.A.: A Bahia registrou em junho de 2021 a primeira condenação por racismo religioso, seis anos após a morte da vítima do crime, a ialorixá Mildredes Dias Ferreira, conhecida como Mãe Dede de Iansã. A condenada, Edneide Santos de Jesus, terá que prestar serviços à comunidade. Como a senhora analisa essa condenação e o tempo que levou para sair a sentença?
M.J.: É extremamente vergonhoso e perverso, eu queria saber se fosse um Papa, se fosse um padre, uma freira que morresse dentro de uma igreja. Eu duvido que seria julgado dessa forma. Até porque Mãe Dede era muito amiga de minha mãe, nós acompanhamos tudo isso, seis anos parados as pessoas esquecem ou não sabem da dor de quem perdeu a Ialorixá e como o terreiro ficou. E prestar serviço comunitário é muito pouco. No caso de Mãe Gilda tivemos outro caso com a igreja Assembléia de Deus, que aconteceu quando um casal invadiu o nosso terreiro e bateram com a bíblia na cabeça dela. Eu procurei o Ministério Público e fizeram a mesma coisa, disseram que eles teriam que prestar serviços à comunidade. Se fosse para isso, que pelo menos vinhesse prestar no meu terreiro, quem sabe eu poderia educá-los de uma forma mais consciente.
R.A.: Diante de casos como esses, você acredita que os religiosos de matriz africana podem se considerar bem assistidos pela legislação que existe hoje contra crimes de intolerância religiosa?
M.J.: Eu não concordo que exista uma legislação que contemple a nossa especificidade, que contemple o povo de religião de matriz africana. Na verdade, pra mim é uma maquiagem, a gente sempre é a cerejinha do bolo do carnaval da Bahia. As cantoras cantam a nossa religiosidade, nossas músicas sagradas, quando chega algum poder no âmbito político dão fitinha do bonfim. Por isso que eu não me qualifico dessa forma, eu sou uma mulher religiosa, eu cuido de Orí, a gente precisa se posicionar. Eu acho que a legislação não tem nos dado resposta. Eu acredito que Mãe Gilda, Macota Valdina, Mãe Stella, Mãe Menininha do Gantois, Mãe Ogá de Alaketu, Mãe Senhora, Procópio d’Ogum, Mãe Dede e tantas outras que me antecederam, lutaram muito para eu poder estar aqui hoje, sentada em frente ao notebook falando da minha religião. Mesmo assim, os avanços foram muito poucos. Na Bahia o racismo é um caso de pandemia. Alguns terreiros de candomblé não se sentem à vontade para denunciar, as pessoas ficam com medo, acham que vão perder o terreiro. Você não dorme direito, escuta uma buzina porta e já acha que é um evangélico querendo lhe matar e a gente segue a vida, só pra você entender como é difícil denunciar.
“Você não dorme direito, escuta uma buzina porta e já acha que é um evangélico querendo lhe matar e a gente segue a vida, só pra você entender como é difícil denunciar“
R.A.: O Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela atendeu 94 casos entre racismo, intolerância e casos correlatos ao longo de 2021. Número que supera o registrado pela unidade em 2020. Também em 2020, as denúncias de casos relacionados à intolerância religiosa, destinadas à Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), aumentaram 41,2% no primeiro semestre em relação ao mesmo período de 2019, o aumento é de 136% quando se compara aos casos de 2018, segundo dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH). Você consegue fazer relação entre esses números e a atual conjuntura política do país?
M.J.: Eu acredito que ter um presidente da república que incita a morte, a violência, que é racista, homofóbico, machista e tudo de ruim que uma pessoa pode carregar dá força a pessoas que agiam silenciosamente. E essas pessoas acham que as portas se abriram pra isso. Eu percebo que depois deste antigoverno a nossa luta antirracista cresceu, você tem que atuar para não perder, e eu estou falando de intolerância religiosa, de racismo religioso e racismo ambiental.
“Quando eu chego no presídio, a diretora é uma mulher branca. Quando eu vou denunciar na delegacia, é um homem branco. Ninguém vai ver a gente como parte fundamental de uma sociedade que nos exclui, que nos mata todo dia, só em a gente dizer que é de candomblé“
R.A.: Qual a sua opinião sobre mecanismos de prevenção para esse tipo de crime que continua com toda força?M.J.: É através da educação. Eu acho que o governo precisa ter um plano de ação diretamente focado nas lutas antirracistas, eu acho que isso não acontece, ainda é muito silenciado. Os poderes públicos nos âmbitos estadual, federal, municipal, as secretarias, elas não pautam isso diariamente. Isso tem que ser como uma pauta, uma disciplina educacional, não adianta só ser falado no dia 21 de janeiro, no dia seguinte acaba e ninguém fala mais no assunto. Eu acho que depende muito de como esses mecanismos são formados e quem está dentro desse espaço. Aqui tem um Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela, tem a Secretaria Municipal de Reparação, mas eu não vejo pessoas de Candomblé dentro desses órgãos. Eu acho que precisa ter a nossa cara. Quando eu chego no presídio, a diretora é uma mulher branca. Quando eu vou denunciar na delegacia, é um homem branco. Ninguém vai ver a gente como parte fundamental de uma sociedade que nos exclui, que nos mata todo dia, só em a gente dizer que é de candomblé.