Morte na Contramão

Um nome bíblico de cinco letras. Trabalhador braçal. Pele escura. Jovem. Nascido numa região de guerra. Levantava sua voz contra a injustiça. De família pobre. Migrante. Não lhe tiveram compaixão e o fizeram padecer como cordeiro para o matadouro. Tortura, espancamento e morte sob o poder do madeiro.

Wagner Lemos*

Um nome bíblico de cinco letras. Trabalhador braçal. Pele escura. Jovem. Nascido numa região de guerra. Levantava sua voz contra a injustiça. De família pobre. Migrante. Não lhe tiveram compaixão e o fizeram padecer como cordeiro para o matadouro. Tortura, espancamento e morte sob o poder do madeiro. Provavelmente, muitos leitores tiveram a impressão de que as cinco letras a que me referi eram do nome Jesus, o homem que em território palestino sofreu e padeceu sob a violência daqueles que se consideravam impunes e superiores. Não deixa de ser verdade, pois é também dele de que estou falando, haja vista que, segundo a tradição de suas palavras, ele se transfigurava no faminto, no injustiçado, na desamparada, enfim, em todos aqueles cujas costas sofriam o arreio da injustiça.

Contudo, é de Moise Mugenyi Kabagambe, moço de 24 anos, refugiado do Congo, que desde 2011, morava no Brasil. Fugiu da guerra, mas no Rio de Janeiro, diante do mar, encontrou cruel morte espancado com pedaços de madeira, por criminosos, que, talvez, se intitulem cidadãos de bem. Não deixo de registrar que o jornal da Ku Klux Klan, organização criminosa e terrorista estadunidense de promoção ao preconceito, tortura e assassinato, era intitulado  “The Good Citizen”, algo que pode ser traduzido como “Bom Cidadão” ou “Cidadão de Bem”. Isso só nos faz recordar o quanto o parâmetro de senso de bondade e justiça podem ser desvirtuados na boca de um carrasco. Assim o fizeram os cinco executores de Moise, assim o fizeram executores do profeta Galileu, assim o fizeram os assassinos do indígena pataxó Galdino, em 1997, tal qual fizeram outros sórdidos com pessoas que não podiam se defender.

Moise fora ao seu lugar de trabalho, um quiosque na orla carioca, apenas para cobrar as diárias que lhe eram devidas. Precisava do dinheiro para o alimento, precisava que lhe pagassem por aquilo que trabalhara. Foi agredido, amarrado e executado com pancadas até a morte. À luz do dia, um homem, nosso igual, foi executado diante de um estabelecimento que continuou a funcionar como se nada houvesse ocorrido ali. O que propriamente não é inédito, já vimos a indiferença em pelo menos duas ocasiões, quando, no Recife, um representante de vendas sofreu infarto fulminante dentro de um supermercado e teve o cadáver coberto por guarda-sóis para que a loja continuasse funcionando. No Rio de Janeiro, mais dois casos houve. Uma senhora sexagenária passou mal e faleceu dentro de um supermercado. Seu corpo foi coberto por um plástico rosa e cercado por carrinhos de compras, assim a loja continuou a atender a freguesia. Não foi diferente, quando um morador de rua morreu dentro de uma padaria na cidade maravilhosa. O cadáver estendido entre os pacotes de pães, biscoitos e patês.

Um dia, um músico e um catador são mortos por mais de oitenta tiros, noutro um trabalhador que cobra seu salário é espancado até a morte, mais um dia e se tem a notícia de alguém cuja morte foi banalizada. Essas pessoas pobres que insistem em morrer na contramão para atrapalhar o tráfego. Ainda há os infortúnios causados por aquelas pessoas que insistem em viver e demandam por direito à justiça. Nunca falha, entretanto, que são os menos favorecidos pelo dinheiro e aqueles cuja pele não é alva, mas alvo no cotidiano deste país. Alvos de nossa barbárie brasileira que se tornou habitual.   

* Doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) e professor do Instituto Federal de Sergipe. Instagram: @prof_wagnerlemos    Podcast: Esquina Literária

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