Por Luciana Lindenmeyer*
Todos os dias vemos notícias que nos chocam e nos desanimam. Nossas vidas são repletas de dores, desafios, forças e fraquezas que nos fazem duvidar todo dia sobre nosso propósito e sobre nossa perspectiva de seguir lutando por nossa sobrevivência.
O racismo estrutural, vivenciado há muito tempo pelo povo negro, vem sendo comprovado em números, em estatísticas e estudos. Somos os menos representados em todos os espaços de destaque na sociedade, na universidade, nos postos de direção de empresas, nos empregos qualificados, no poder executivo das cidades, na política, no sistema de justiça.
Por outro lado, sobram estatísticas onde o povo negro, com destaque para as mulheres, tem preponderância, como os cárceres, as mortes violentas, a violência obstétrica, nos sub empregos ou nos empregos menos qualificados e mais precarizados, na insegurança alimentar, na falta de moradia digna, nos índices de desempenho educacional.
Quando algum caso de extermínio de um homem ou mulher negra ganha visibilidade nas redes, o movimento da branquitude é logo para postar em campanhas como “Vidas Negras Importam” ou “Seja Antirracista”. O movimento para por aí e não avança para posturas mais concretas de enfrentamento ao racismo, de desconstrução das posturas que perpetuam e adoecem.
Mas ano após ano, continuamos vendo passos muito lentos na ocupação de espaços pelas pessoas pretas, mesmo com a implementação das ações afirmativas, que vem mudando as universidades e instituições públicas, cujos concursos destacam percentuais para pessoas pretas.
Mas sabemos que a luta das mulheres negras carrega a ancestralidade de todas que vieram antes de nós. A representação de mulheres negras na política sempre foi muito aquém do esperado para uma sociedade que se vislumbra democrática e equânime.
Os negros são mais de 56% de toda a população brasileira de acordo com o IBGE. No entanto, apenas 0,1% da população negra brasileira ocupa uma cadeira no legislativo. Quando falamos de mulheres negras a sub-representação é ainda maior. Apesar de serem 28% da população, elas ocupam menos de 5% das vagas do executivo e legislativo do país.
Muitas são as pessoas que souberam que essa realidade precisava mudar. Antonieta de Barros foi a primeira mulher negra eleita no Brasil, em 1932, como Deputada Estadual em Santa Catarina, e tinha como foco a questão da educação, entendendo como peça fundamental da transformação social no país. Na década de 1980, nos movimentos pela redemocratização do país e da assembleia constituinte, tivemos o protagonismo de Lelia Gonzalez e Benedita da Silva, grandes referências do movimento negro – que foi responsável por avanços na luta contra o racismo.
Ambas enfrentaram muitas dificuldades nos partidos políticos e nas disputas eleitorais, mas Benedita foi eleita vereadora em 1982 e segue até os dias atuais numa luta que defende as mulheres e principalmente a população negra para continuar avançando em conquistas que melhorem a vida de fato.
Em 2016 tivemos a eleição de Marielle Franco como vereadora da cidade do Rio de Janeiro, uma mulher negra com origem na Favela da Maré. Sabendo da força que uma mulher negra (5ª vereadora mais votada na cidade) representa, as reações a ela foram muitas. Em 2018, Marielle foi assassinada, junto do motorista Anderson Gomes. O caso teve repercussão nacional e internacional e até hoje, mais de 4 anos depois, continuamos a nos questionar: QUEM MANDOU MATAR MARIELLE E ANDERSON E POR QUÊ!?
A violência política que atingiu Marielle foi um grande impulsionador de novas candidaturas de mulheres negras. Se os assassinos e mandantes achavam que a voz de uma mulher negra seria calada, se enganaram, pois Marielle deixou muitas sementes por todo o país. As eleições de 2018 foram marcadas por grandes contradições. Ao mesmo tempo que foi alçado ao maior posto do país uma pessoa sem nenhum pudor de mostrar seu racismo, sua misoginia e sua pouca preocupação com a maioria do povo, foram vitoriosas muitas candidaturas de mulheres negras, como Taliria Petrone, no Rio de Janeiro, Áurea Carolina, em Minas Gerais, As Juntas Co-Deputadas, em Pernambuco, e Erika Malunguinho, em São Paulo.
Em 2020, esse movimento teve continuidade e, tivemos outras mulheres negras trans e travestis eleitas com excelentes votações em câmaras municipais, como Erika Hilton, em São Paulo (SP), Benny Briolly, em Niterói (RJ), e Carolina Iara, da Bancada Feminista, também em São Paulo.
No entanto, apesar do número de candidaturas estar crescendo, a sub-representação ainda é muito grande. Vários são os motivos e causas, uma vez que o racismo estrutural impede que mulheres negras tenham espaço nas discussões e poder nos partidos, e recebam financiamento adequado, ou seja, que sejam reconhecidas e valorizadas como necessárias para a mudança que o parlamento precisa.
Muitas iniciativas em 2022 vem buscando enfrentar essa questão.Uma das iniciativas foi alavancada pelo Instituto Odara durante o Julho das Pretas. Foi realizado um Encontro com Mulheres Negras e Indígenas das regiões Norte e Nordeste. Durante o encontro foi elaborada uma Carta Aberta à Sociedade que explicita a visão dessas mulheres sobre a disputa dos espaços de poder.
“Fica consensuado entre nós que o acesso ao Poder diz respeito à garantia de condições de autodeterminação coletiva, e autonomia cultural, econômica, política, tecnológica e territorial. Bem como, destacamos que o exercício do poder coletivo deve eliminar as práticas coloniais sexistas patriarcais e binárias de controle e violência contra nossos corpos, em nossas diversidades étnicas, territoriais, etárias, de gênero e sexualidade”.
O povo precisa de um parlamento que enxergue suas necessidades, que entenda a educação, a cultura, a vida, a saúde, o lazer como prioridades. Que coloque a ciência como relevante para o avanço do país, e que principalmente afaste a política de morte do povo negro dos espaços públicos e da vida em comunidade
Outras iniciativas como: Pretas no Poder, Eu voto em Negra, Estamos Prontas, realizaram ações em prol da preparação de mulheres negras que colocaram seus corpos à disposição dessa ocupação institucional.
Iniciativas como essas precisam ser permanentes, pois a mudança nos parlamentos precisa acontecer de forma imediata e sem retrocessos. O povo precisa de um parlamento que enxergue suas necessidades, que entenda a educação, a cultura, a vida, a saúde, o lazer como prioridades. Que coloque a ciência como relevante para o avanço do país, e que principalmente afaste a política de morte do povo negro dos espaços públicos e da vida em comunidade.
As candidaturas coletivas têm sido vistas como uma forma que resgata os princípios que existem desde África, quando a comunidade resolve suas questões de forma compartilhada
Além da preparação das mulheres negras para essa ocupação, uma outra iniciativa vem ganhando força desde 2016 no país. As candidaturas coletivas têm sido vistas como uma forma que resgata os princípios que existem desde África, quando a comunidade resolve suas questões de forma compartilhada.
A coletividade roubada pela colonização e pelo capitalismo estimula o individualismo e coloca nos representantes eleitos o poder inclusive de votar contra os interesses dos eleitores que o colocaram naquele espaço.
As candidaturas coletivas propõem horizontalizar as discussões e ampliar a participação da sociedade em suas formas ampliadas de debate como assembleias populares, conselhos políticos e a própria consulta popular, que coloca o eleitor mais próximo das decisões a serem tomadas pelo mandato.
Desde 2016, ano em que a primeira candidatura coletiva se sagrou eleita no município de Alto Paraíso (GO), temos visto um número cada vez maior de candidaturas com este perfil. De acordo com informações da Frente Nacional de Mandatas e Mandatos Coletivos, mais de 28 coletivas estão atuando em assembleias legislativas e câmaras municipais.
Essa coletividade vem mostrando sua proposta e efetivando o que apresentaram nas ruas durante o período eleitoral. São mulheres negras, indígenas, LGBTQIA+, PCDs, defendendo pautas negligenciadas ou atacadas pelo histórico Congresso formado em sua maioria por homens brancos, cis, heterossexuais e ricos, sem nenhum compromisso com a pauta das maiorias sociais.
Pautas como a luta contra o encarceramento em massa, contra o racismo, a LGBTfobia e o capacitismo, pela legalização das drogas, por cultura e lazer para juventude, educação, agroecologia, saúde, enfrentamento às violências, emprego e renda, e ampliação da participação popular, são exemplos de prioridades de mandatos coletivos que muitas vezes são ignoradas pelos eleitos, exatamente por não vivenciarem as dificuldades da maioria do povo.
Espaços da mídia são muito importantes para ampliar o conhecimento das pessoas sobre a importância de eleger candidatas que valorizem e defendam os mesmos pontos que cada um de nós acredita.
Não basta estar lá eleita, precisa dialogar com quem segue nos territórios enfrentando a falta de água, de saneamento, de transporte, de comida. Precisa, mesmo depois de eleita, continuar em contato com os movimentos sociais e coletivos que contribuíram para a eleição.
Importante também considerar a segurança das mulheres que colocam seus corpos nessa tarefa, pois a violência política de gênero vem aumentando e impactando inclusive a disponibilidade e coragem dessas mulheres nessa tarefa.
Nossa tarefa, enquanto pessoas que desejam uma nova sociedade, é mudar em cada lugar que ocupamos e sensibilizar mais pessoas para essa mudança. Que qualquer movimento não terá sucesso se for individual, que nossa jornada é coletiva, só tem sentido se tocar o outro.
Ano de 2022 é um ano decisivo para conseguirmos mudar os rumos do país. Por isso, eleger a bancada com maior número possível de candidaturas negras e indígenas é nossa melhor estratégia
Por fim, deixo uma mensagem para todes que forem ler esse texto. Ano de 2022 é um ano decisivo para conseguirmos mudar os rumos do país. Por isso, eleger a bancada com maior número possível de candidaturas negras e indígenas é nossa melhor estratégia. Mas para além desse movimento, também precisamos ver a educação como fundamental para essa mudança, uma educação emancipadora, que possa contar a história real do povo negro e descolonize o pensamento eurocentrado que vivemos em nosso país.
Importante também que os movimentos de mulheres, negros e negras, indígenas e antirracistas sigam contribuindo para o debate na sociedade, para que as politicas de ações afirmativas e a continuidade das lutas para que a ocupação de espaços por pessoas negras e indígenas sigam avançando.
Assim, nossa missão é árdua, mas ao mesmo tempo fundamental para que possamos ter um presente e um futuro com o Bem Viver que as mulheres negras tanto defendem.
Este artigo faz parte da Série de Narrativas: Maiorias Silenciadas no Poder! Uma realização da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político, em parceria com a Revista Afirmativa, por meio da Campanha Quero Me Ver No Poder, com Coordenação Editorial e Curadoria de Alane Reis.