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“Não dá pra falar de Bem Viver sem falar em sustentabilidade” – conheça Durica Almeida, voz negra amazônida em Marcha por Reparação e Bem Viver

No primeiro perfil da série Mulheres que Marcham, apresentamos Durica, mulher negra amazônida que há décadas semeia resistência — e hoje mobiliza coletivamente uma região inteira rumo à Marcha por Reparação e Bem Viver. Sua história revela: a luta não começa em 25 de novembro. Ela já está em curso.

Por Matheus Souza

Há pouco mais de três meses para a Marcha das Mulheres Negras por Reparação e Bem Viver, que acontecerá em novembro, em Brasília (DF), as mulheres negras da Amazônia fazem os preparativos e mobilizam as comunidades locais para participarem deste momento histórico. Em meio a este clima de preparação, conversamos com Maria das Dores do Rosário Almeida, de 63 anos, carinhosamente conhecida como Durica – como são chamadas as várias “Marias das Dores” no Amapá.

Nascida e criada em Carmo do Macacoari, distrito de Itaubal (AP), a ativista na União do Negros do Amapá (UNA) desde a juventude, é professora e Mestra em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília (UNB), e atualmente atua como técnica no conselho do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB). Em 2000, ela fundou o Instituto de Mulheres Negras do Amapá (IMENA) e também a Rede Fulanas – Negras da Amazônia Brasileira.

Durica conta que sua ancestralidade e identidade foram construídas pelos territórios negros ocupados pelos seus pais: sua mãe vem da Vila do Carmo do Macacoari, comunidade negra e ribeirinha do Amapá, e seu pai do Formigueiro, bairro negro da capital Macapá.

Roda de Conversa “Feminismo Negro do Amapá” / 2024 – Imagem: Arquivo Pessoal

A história dela com a Marcha das Mulheres Negras começa na década de 1980, ao se mudar para o estado do Pará a fim de continuar os estudos e conhecer ativistas que mais tarde seriam responsáveis por pensar o movimento. Em Macapá, onde morava na época, não havia faculdade. “Todo mundo que quisesse estudar, na minha geração, tinha que sair para algum lugar. Eu me formei na Universidade Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), mas todo mundo ia para o Pará, que era o mais próximo, e eu acabei indo também na época”, lembra.

A tia de Durica morava em uma república em Belém (PA), e foi lá que a professora ficou hospedada e conheceu Zélia Amador, famosa ativista, intelectual e professora paraense, que na época ainda trabalhava como atriz. “Conheci a Zélia Amador na década de 1980. Assisti muitas das peças que ela participava. Ela ia lá na casa da minha tia trançar os cabelos”, relata orgulhosa.

A irmã de Durica, Maria Luíza, participou junto com outras mulheres e estudantes, da fundação da UNA, que surgiu na mesma época que o Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (Cedenpa), cofundado por Zélia. A professora gosta de brincar que a UNA é “prima” do Cedenpa: “A nossa amizade é pra lá de amizade, é uma irmandade”, explica sobre a relação não só das instituições, mas entre as três mulheres envolvidas nas suas concepções.

É durante esse período que ela também conhece Nilma Bentes, engenheira agrônoma, escritora e ativista do Cedenpa, que décadas depois se tornaria a responsável por idealizar a Marcha.  Estava plantado ali, através daquela amizade, o embrião que anos depois desaguaria na relação tão intrínseca de Durica com a Marcha e o Movimento de Mulheres Negras. “A Nilma é uma grande visionária. Ela enxerga o que ninguém consegue ver. Pessoas visionárias precisam ser ouvidas e seguidas”, comenta sobre a amiga.

Em 2011, durante um encontro de movimentos na Bahia, as ativistas da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB) – que integraram o Comitê Nacional da Marcha de 2015, e novamente integram em 2025 – lançaram oficialmente a Marcha para o Brasil. Em 2014, acontece uma pré Marcha das Mulheres Negras no Amapá, dentro do Fórum Social Pan-Amazônico (Fospa), preparando o terreno para a edição nacional, no ano seguinte, em Brasília. Neste processo, Durica acompanhou e construiu a Marcha desde sua concepção até sua disseminação pelo Brasil. 

Organização da Marcha das Mulheres Negras 2015 – Imagem: Arquivo Pessoal

Hoje, ela atua no Comitê Nacional da Marcha das Mulheres Negras como uma das representantes da Rede Fulanas, responsável por impulsionar a marcha na Amazônia. “Estou mobilizando toda a região. Temos um grupo no Whatsapp, e é por lá que todas as mulheres compartilham o que estão fazendo nos estados. ” 

Este ano, o Amapá começou cedo a mobilização: desde 2024 as lideranças nos estados vem realizando ações em torno da marcha, tentando tecer diálogos e apresentando projetos para senadores e deputados, e também para a Secretaria de Igualdade Racial do município de Macapá (AP) e para a Federação Marabaixo – Fundação Estadual de Políticas de Igualdade Racial.  Apesar do esforço coletivo para conseguir subsídios para o evento, não está havendo retorno por parte daqueles que possuem os recursos para apoiar. A reportagem entrou em contato tanto com a Secretaria de Igualdade Racial quanto com a Federação Marabaixo, porém, até o momento da publicação da matéria, não houve resposta.

O desejo é que esse ano o Amapá consiga enviar 200 mulheres para participar do ato, porém faltam recursos financeiros. Durica afirma que apesar do discurso antirracista de diversas figuras e instituições políticas da região, poucas ações são realizadas para promover o que é dito. O IMENA, até o momento, possui recursos de dois editais: do Fundo Baobá para Equidade Racial, recebido por todos os estados do país, e que servirá para financiar a mobilização; e do Edital Nilma Bentes, que tem por objetivo interiorizar a Marcha, especialmente na periferia do Macapá. Entre as estratégias para esse alcance está o uso do rádio – meio de comunicação que ainda consegue acessar todos os municípios da região – para através de parcerias, como programas ao vivo e podcasts, convocar todas as mulheres negras da região para marcharem em Brasília. Durica ressalta que o papel da instituição é levar a marcha aos quatro cantos do estado, fazendo com que todas as mulheres tomem conhecimento do evento.

Bem Viver

“Existe uma identidade múltipla de mulheres negras na Amazônia”, conta Durica sobre as pautas que são particulares à essa população. “Há mulheres rurais, urbanas, agricultoras, pescadoras, entre tantas outras. Mas o que une essas mulheres? A identidade ancestral carregada por cada uma delas”. Ela nomeia essa identidade interseccional da mulher negra amazônida de cultura andante. “Onde vou, a identidade amazônica está presente em mim.” 

Barracão da Tia Gertrudes, durante apresentação do Projeto Mulheres pretas na percussão / 2025 – Imagem: Arquivo Pessoal

As experiências da mulher negra amazônica estão intrinsecamente ligadas à natureza e ao meio ambiente, porém pouco se vê sobre essa identidade, seja na nos meios de comunicação ou até mesmo dentro do próprio ambiente de luta. A invisibilidade da região dentro do contexto nacional é notável. A região amazônica, infelizmente, é enxergada como um vazio demográfico. “A Amazônia é reconhecida pela sua natureza, biodiversidade e população indígena, porém a população negra, apesar de fortemente presente, é deixada de lado na construção dessa identidade local”, explica a professora.

COP 30

A Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2025 (COP30)  acontece esse ano aqui no Brasil, e a cidade de Belém foi a escolhida pessoalmente pelo presidente Lula (PT) para sediar o evento internacional, numa tentativa de jogar luz aos problemas da região. Porém, a organização da conferência tem sido alvo de diversas críticas. Obras têm interferido diretamente na vida das comunidades tradicionais presentes na região, como a rodovia de quatro faixas que corta dezenas de milhares de hectares de floresta amazônica protegida.

“As populações estão sendo retiradas dos locais. Amigas que moram há anos e anos estão sendo removidas das suas casas porque a obra vai passar por ali”, conta Durica. A professora opina que, “pelo andar da carruagem”, as várias obras previstas para a COP30 não ficarão prontas a tempo, e lamenta que a enxurrada de recursos destinados ao evento poderiam ser direcionadas para a população local: “Nós [IMENA] não vamos participar, mesmo estando dentro do contexto amazônico. Enquanto mulheres negras, nós optamos por participar da Marcha”. A Marcha acontece quatro dias depois do encerramento da COP30, em novembro. 

A realização da conferência em Belém afeta diretamente a participação das mulheres da região Norte na marcha em Brasília. Durica explica que, por Belém ser a cidade central para o deslocamento no Norte do país, só será possível sair de Macapá passando por Belém de avião ou de barco, e o preço das passagens estará muito caro. Primeiro, por conta do Círio de Nazaré, que acontece na capital e atrai milhares de turistas; e segundo, por causa da COP30, fazendo com que a hospedagem na região subisse exponencialmente de preço.

Reunião de conselheiras titulares sobre situação das mulheres brasileiras / 2012 – Imagem: Arquivo Pessoal

A ativista também denuncia que ao invés de discutir saídas para o desmatamento, a COP30 parece abraçar os grandes projetos, como a própria exploração da natureza. “É isso que temos visto em torno da COP30. Não é discutir a sustentabilidade de quem mora aqui, mas desses grandes projetos que as empresas querem trazer para nossa região”, lamenta Durica.

“Sem território, não há ancestralidade”

Durica salienta que é impossível pensar o tema da Marcha de 2025, “Reparação e Bem Viver”, sem atravessar as questões da sustentabilidade e da biodiversidade. “Para nós, o desenvolvimento sustentável é a garantia das nossas tradições, saberes e história. É a garantia do Bem Viver. Não dá pra falar de Bem Viver sem falar na sustentabilidade. Sem território, não há ancestralidade.”

Pensar o Bem Viver, por exemplo, numa comunidade tradicional, quilombola, sem a garantia dos recursos naturais, é impossível. Hoje, a pauta da sustentabilidade acaba se alinhando a grandes interesses e projetos na região amazônica, como a exploração de petróleo. “Essa sustentabilidade acaba, na verdade, trazendo a insustentabilidade de quem vive das florestas”. A professora nos ensina que a sustentabilidade não é igual para qualquer pessoa e território. Ela tem sua especificidade, sua individualidade, não entre indivíduos, mas entre diferentes comunidades e suas respectivas necessidades.

“Eu tenho uma amiga indígena que não consigo falar o nome dela [risos], mas a gente está sempre trocando ideias”, ressalta Durica que enfatiza o fato do Conselho Municipal da Igualdade Racial de Macapá ter uma cadeira indígena.

A mobilização para arrecadação de recursos para a Marcha de novembro continua. O movimento em torno da Marcha segue conquistando participantes em todo território nacional. As recentes pré-Marchas do 25 de julho, realizadas em diversas 17 cidades do país, incluindo Belém (PA), ajudam a mostrar que os esforços não são em vão. Durica convida todas as mulheres negras do Brasil a se reunirem. “Precisamos de 1 milhão de mulheres negras em Brasília. Então você, mulher negra da Amazônia, vamos à Brasília. Se você não puder ir no dia 25, convide uma vizinha, uma amiga. Avise à ela que, nesse momento, 1 milhão de mulheres negras estão em passeata. Se você fizer isso, você também estará participando da Marcha!”

*Este texto faz parte da série Mulheres que Marcham: o voo perene das mulheres negras por Reparação e Bem Viver, que tem como objetivo apresentar oito mulheres negras que, em movimento contínuo, impulsionam a 2ª Marcha das Mulheres Negras.

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