“Não se pode desconsiderar o debate racial em nome do de classe”, diz pesquisadora de ações afirmativas sobre PL que retira as cotas raciais nos concursos públicos de São Paulo

Na última quarta-feira (6), a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara Municipal de São Paulo aprovou o Projeto de Lei 71, que solicita a criação de cotas sociais para concursos públicos, retirando as cotas raciais na cidade.

O PL é de autoria do vereador Fernando Holiday (Novo), e sua justificativa defende que “as verdadeiras causas da reprodução da desigualdade estão diretamente ligadas à condição econômica das pessoas”.

Por Andressa Franco

Imagem: Arquivo pessoal

Na última quarta-feira (6), a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara Municipal de São Paulo aprovou o Projeto de Lei 71, que solicita a criação de cotas sociais para concursos públicos, retirando as cotas raciais na cidade.

O PL é de autoria do vereador Fernando Holiday (Novo), e sua justificativa defende que “as verdadeiras causas da reprodução da desigualdade estão diretamente ligadas à condição econômica das pessoas”. Afirmação questionada pela diretora do Centro de Artes, Humanidades e Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Dyane Brito, que classifica essa justificativa como uma inverdade.

“Nós temos sim um problema social no Brasil. Mas quanto maior a melanina, menos condições de acessar determinadas oportunidades e espaços”, explica. “Não se pode desconsiderar o debate racial em nome de um debate de classe. E falar em cotas sociais, somente, não darão a possibilidade de fazer uma sociedade mais equânime”.

A votação foi decidida por 5 votos contra 4. Agora, o projeto passa para votação no Plenário da Câmara Municipal e apenas se aprovado segue para sanção do prefeito Ricardo Nunes (MDB).

O PL 71 vale apenas para concursos públicos na cidade de São Paulo. E consiste em alterar a lei 13.791/2004, responsável por criar o Programa Municipal de Combate ao Racismo e o Programa de Ações Afirmativas para Afro-Descendentes da Prefeitura Municipal de São Paulo. Se aprovado, vai alterar ainda a lei 15.939/2013, que trata da reservas de vagas para negras e negros no serviço público da cidade de São Paulo.

Pós Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), Dyane atuou como pesquisadora da UNESCO e MEC/SECAD na avaliação das Ações Afirmativas no Ensino Superior. Para a professora, esse debate coloca em cheque o mito da democracia racial, que defende a ideia de que o Brasil sempre ofereceu oportunidades iguais para todos e todas.

“O Brasil pode facilmente ser dividido em dois Brasis. Um Brasil negro, que não experimentou o acesso à educação durante muito tempo, cujos dados de saúde, acesso a emprego, ao exercício profissional, à renda, condições sanitárias é bem baixo. E o Brasil não negro, que tem outras possibilidades, privilégios e oportunidades”, analisa.

A Lei 15.939, responsável por estabelecer cotas raciais para o ingresso de negros e negras no serviço público municipal de São Paulo em cargos efetivos e comissionados, data de dezembro de 2013. E a professora atribui a essas políticas uma mudança muito significativa no cenário brasileiro.

“Estamos falando de espaços onde a presença negra era pouco notada ou sequer existia. Qualquer retrocesso nessas legislações não podem ser aceitos”, pontua. “Políticas afirmativas são sim medidas transitórias, que buscam compensar um passado de desigualdade. Mas, a data pra acabar é somente quando atingimos a igualdade”.

Em suas redes sociais, Holiday comemorou a aprovação do projeto, expressando que a cota social “é muito mais justa e objetiva, enquanto que a cota racial segrega e julga as pessoas pela sua aparência de forma racista”.

Brito lembra, no entanto, que as primeiras experiências de cotas no Brasil não foram somente raciais. “As instituições que, nos primeiros anos do século XXI, implementaram cotas, tinham um maior número de cotas sociais, do que raciais. Mas são as cotas raciais que causam esse debate sobre a sua legitimidade”, destaca.

A pesquisadora atribui ainda o resultado da implementação de políticas afirmativas no Brasil, aos enfrentamentos realizados pelo movimento negro. E exemplifica com a Marcha Zumbi contra o Racismo, pela Cidadania e pela Vida. Movimento que reuniu 30 mil pessoas em Brasília, em 1995, para denunciar a ausência de políticas públicas para a população negra.

“Ao longo desses anos, nós vimos o debate sobre cotas raciais ganhar a sociedade brasileira como um todo. Está na sala de aula, mas também esteve na praça, nas reuniões de condomínio. Dividiu opiniões. Nós vimos intelectuais, ativistas, artistas favoráveis ao sistema, mas vimos também membros dessas categorias falarem contrários a essa política”, lembra.

Revisão da Lei de Cotas

Vale ressaltar que em agosto desse ano, a Lei 12.711 [Lei de Cotas], instituída no governo Dilma Rouseff (PT), completa 10 anos. E, com esse aniversário, está prevista a revisão da legislação, que originalmente seria feita pelo Poder Executivo, mas uma alteração em 2016 retirou essa competência. No entanto, não ficou definido quem será o responsável pela análise da política, como a revisão deve ser feita, nem quais poderiam ser as consequências dessa avaliação para a Lei de Cotas.

“No âmbito do legislativo brasileiro, temos observado propostas de extinção da política de cotas, mas também propostas que querem torná-la permanente. Propostas que veem a necessidade de uma revisão nacional, e propostas de ampliação do prazo para revisão. O fato é que qualquer redução nessa regulamentação é um golpe na sociedade brasileira”, pondera a professora.

A Lei de Cotas prevê que 50% das vagas de universidades federais e institutos federais de educação, ciência e tecnologia devem ser destinadas a alunos que cursaram o ensino médio integralmente na rede pública. Dessas, pelo menos a metade deve ser ocupada por estudantes cuja família tenha renda per capita inferior a 1,5 salário mínimo. Além das vagas reservadas para pretos, pardos e indígenas, de acordo com o tamanho dessas populações no estado onde fica a instituição de ensino.

Alguns dos resultados puderam ser observados na pesquisa “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, divulgada em 2019 pelo IBGE. Ela mostra que, pela primeira vez, o índice de alunos pardos e negros matriculados em universidades públicas brasileiras superou a taxa de alunos brancos, alcançando 50,3%. 

Mas nem todos os números são satisfatórios. Quando comparados aos índices da população branca, a desigualdade racial continua em evidência. Entre os jovens brancos de 18 a 24 anos, 78,8% estavam matriculados no Ensino Superior no período da pesquisa. Entre os negros na mesma faixa etária, a porcentagem cai para 55,6%. 

E esse é um dos motivos pela qual Brito defende a permanência da política afirmativa. “É fato que as políticas afirmativas em educação, sobretudo a lei de cotas, já trouxeram uma mudança do perfil nesses espaços. Mas ainda estamos muito longe de termos alcançado a igualdade efetiva. Essa legislação precisa continuar”, finaliza.

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