O caso Lázaro e o racismo religioso: o que assistentes sociais têm a ver com isso?

A essa altura já devem estar sabendo do "Caso do Serial Killer de Brasília”, tratamos de Lázaro Barbosa Sousa. Matérias jornalísticas foram veiculadas associando os crimes do até então foragido com rituais de religiões de matriz africana. Policiais de diversas guarnições, em ação truculenta e sem mandado, invadiram terreiros de candomblé fortemente armados;

Por Ezilda Barreto e Joyce Souza*

A essa altura já devem estar sabendo do “Caso do Serial Killer de Brasília”, tratamos de Lázaro Barbosa Sousa. Matérias jornalísticas foram veiculadas associando os crimes do até então foragido com rituais de religiões de matriz africana. Policiais de diversas guarnições, em ação truculenta e sem mandado, invadiram terreiros de candomblé fortemente armados; ameaçaram lideranças e praticantes religiosas; averiguaram celulares, computadores e locais de fundamento que são extremamente restritos; violaram o patrimônio material e imaterial de grupos e comunidades que não têm absolutamente nenhuma correlação com o procurado.

Algumas pessoas têm comentado sobre a “novidade da intolerância religiosa” cometida pelas tropas. É “racismo religioso”! Não é novidade, nem fato recente, muito menos isolado. Parem! Talvez o termo seja pouco conhecido, mas a prática é essa mesma há séculos!

Procurem saber sobre as leis de proibição à práticas como capoeira e candomblé e o papel da polícia na repressão de pessoas negras e suas expressões culturais. Comunidades da umbanda e do candomblé lutam até hoje para retirada de itens sagrados do Museu da Polícia do Estado do Rio de Janeiro, que os confiscaram em perseguições há mais de um século, com base em artigos do Código Penal de 1890 e, posteriormente, de 1942.

Mas o que nós, assistentes sociais, temos a ver com isso? A realidade é que inúmeras vezes assistimos o racismo religioso em nosso cotidiano profissional, expressamente e documentadamente. Sim: documentadamente! Em especial quando família ou vizinhos, geralmente cristãos (católicos ou evangélicos), se dirigem ao Conselho Tutelar para realização de denúncia em razão dos pais ou responsáveis de crianças e adolescentes serem simpatizantes ou membros de religiões de matriz africana. As justificativas são de que os responsáveis estariam supostamente negligenciando os filhos e até “obrigando” a participarem das festividades e dos ritos da religião.

A denúncia agregada ao argumento de preocupação com crianças ou adolescentes escondem, na verdade, as facetas do desrespeito, do preconceito, do racismo estrutural e do fundamentalismo religioso. O fato é que o Conselho Tutelar e profissionais do atendimento à criança e ao adolescente acatam denúncias como essas, sem exercer ou propor uma reflexão a respeito de seu significado, negligenciando o Estatuto da Criança e do Adolescente e da própria Constituição Federal no que diz respeito a liberdade religiosa e a livre expressão da fé.

Nós temos tudo a ver com isso quando reproduzimos no nosso processo de atendimento o preconceito e a discriminação, seja por omissão ou por legitimar práticas como essas. Quantas vezes já escutamos de familiares: “ele/a não quer ir para igreja, mas eu arrasto mesmo. Coloco na frente e carrego! Porque meus filhos precisam ter uma orientação religiosa. Se a gente não orienta, é o mundo quem toma conta”!? Não existem denúncias contra esse teor.

Assim como, na contemporaneidade, a polícia jamais invadiu templos cristãos à procura de foragidos evangélicos ou católicos. Olha bem que não faltariam possiblidades, o caso da ex-deputada e pastora Flordelis seria um bom exemplo. Vejam bem, Lázaro também já se identificou como evangélico, além de ter sido pregador em seu período de cumprimento de pena sob regime de reclusão, segundo sua esposa em entrevista à TvRecord.

Episódios como o de Kate Belintani, candomblecista que perdeu a guarda da filha após uma denúncia anônima sobre supostos abusos no terreiro; ou a violência contra lideranças, praticantes e templos religiosos de matriz africana perpetrada pela polícia demonstram o quanto o Estado brasileiro está estruturado para legitimar, executar e propagar o racismo em mais uma de suas vertentes de estruturação da sociedade. Mas também nos colocam a pensar: de que forma nossa prática profissional pode significar a ruptura necessária desses padrões racistas?

 

*Ezilda e Joyce (ambas no canto inferior direito da foto acima) são assistentes sociais e cofundadoras do Instituto Carolina Maria de Jesus (equipe completa na foto), instituição fundada por assistentes sociais em 2020, com o objetivo de ofertar produtos e serviços de assessoria, consultoria e formação permanente no campo do Serviço Social e áreas afins, com base na construção de uma sociedade justa, engajada e equitativa.

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