OPINIÃO: Crescimento de candidaturas negras: será que realmente temos o que comemorar?

Dados recentes do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mostram o crescimento do número de candidaturas negras (49,57%) nesta última eleição, acima do percentual de candidatos brancos (48,86%).

Por Angela Figueiredo*

Imagem: Reprodução

Dados recentes do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) mostram o crescimento do número de candidaturas negras (49,57%) nesta última eleição, acima do percentual de candidatos brancos (48,86%). Ainda que seja perceptível o aumento de candidaturas negras, notadamente de mulheres negras, eu não tenho a menor dúvida de que esses dados estão superestimados. A minha hipótese é de que houve uma migração, para usar um termo sociológico para falar do desrespeito e do oportunismo de inúmeros candidatos mestiços, pardos, quase brancos ou brancos, que historicamente foram privilegiados do ponto de vista das hierarquias raciais e de classe, que nunca experimentaram os limites impostos pelo racismo em suas trajetórias de vida, profissionais e nem em suas carreiras políticas. Esse é o caso do ex-prefeito de Salvador e atual candidato a governador do estado da Bahia ACM Neto (União Brasil) e de sua vice Ana Coelho (Republicanos) autodeclarados pardos, portanto, negros, já que a categoria política negro é a soma das categorias de pretos e pardos. Pessoas que sempre viveram os privilégios da brancura e de classe, já que sempre foram tratados como socialmente brancos dentro dos critérios da construção da raça/cor no Brasil, a escolha por tal identificação constitui-se, efetivamente, naquilo que definimos como afro-oportunistas, agora atuando na política.

A razão disso é que “a reforma eleitoral aprovada pelo Congresso no ano passado (Emenda Constitucional 111) adotou novas regras para incentivar a eleição de mulheres e negros para a Câmara dos Deputados. A partir da próxima eleição, os votos dados a mulheres e pessoas negras contarão em dobro para a distribuição de recursos do Fundo Eleitoral entre os partidos políticos”.

Nós já temos experiências com relação a essa estratégia de pessoas brancas, fenotipicamente brancas e pardas claras, que se autodeclaram negras quando há alguma vantagem econômica ou política. A experiência da implementação das ações afirmativas e todo o debate em torno de quem é negro no Brasil nos anos 2000 não pode ser esquecido. Desde a proposta da Universidade de Brasília (UNB) em construir um comitê de avaliação, que foi inicialmente rejeitado e depois ajustado para o que hoje denominamos de Banca de hetero-identificação, tem tido muito êxito em identificar os fraudadores, aqueles que cometem falsidade ideológica. Idealmente, nenhum de nós gostaria de manter a existência de um comitê de verificação das autodeclarações de cor/raça ou identidade, mas isso é necessário – são inúmeros os casos de pessoas que tomam sol, fazem bronzeamento artificial, trançam os cabelos, usam filtros de aplicativos etc., tudo em torno da mudança de uma aparência provisória. Mas nenhuma pessoa que realmente tenha uma consciência racial, ainda que tenha ancestrais negros, utilizaria dessa estratégia. Aquilo que em inglês é chamado de passing (“passando-se por”), e no Brasil é chamado de branqueamento, consiste na tentativa dos pardos se passarem por brancos. Mas, e agora, como definir a estratégia de pardos, ou quase brancos, passando-se por negros somente para ter acesso aos recursos das candidaturas negras na polícia? Afro-oportunismo político? Ou será que podemos definir como um Blackface[1]?

Entretanto, independente dos desafios colocados e dos afro-oportunismos, a legislação é positiva, pois reconhece a disparidade da representação política nos diferentes âmbitos, nacionais, regionais e municipais. Contudo, baseando-se em nossas experiências, o TSE precisa encontrar um modo para validar as autodeclarações, construindo mecanismos para barrar os afro-oportunistas, através de bancas de hetero-identificação,tal como as existentes nas universidades e em outros setores do serviço público. Esse é um aprendizado que não pode ser subestimado, demorarmos 20 anos para construir esse conhecimento, e mesmo assim, alguns candidatos que não são legitimados/reconhecidos como negros entram com recurso justiça. De fato, acredito que o TSE precisa ir além das cotas entre candidatos, estabelecendo cotas para eleitos no parlamento (negros e negras, mulheres, indígenas e pessoas transgênero), pois desse modo reduziríamos o efeito das candidaturas laranjas que tanto afetam os resultados.

Ainda que os dados revelem o aumento de candidaturas negras, precisamos ficar atentos para a diferença entre candidaturas negras e pessoas negras eleitas. Devemos celebrar o aumento de candidaturas como resultado do trabalho dos movimentos negros, dos movimentos sociais, dos movimentos feministas e feministas negros, das ações afirmativas e, consequentemente, do aumento da escolaridade da população negra, que permitiu entender a disparidade entre pessoas negras (56,2%, sendo 46,8% pardos e 9,4% de pretos) e pessoas brancas (42,7%), referente ao perfil da população brasileira em termos étnico-raciais e os seus respectivos representantes.

Os movimentos foram eficazes em destruir ou ressignificar aquilo que a Patrícia Hill Collins (2010) define como imagem de controle sobre nós negros, sempre considerados bons para trabalhos subservientes; no campo político, o controle de imagem nos coloca como cabos eleitorais, que são efetivamente os tradutores, aqueles e aquelas que fazem o diálogo entre o político e a comunidade. Com relação às eleições – a passagem da candidatura para a eleição – depende de vários fatores, principalmente do apoio financeiro dos partidos, mas também do capital social e político para dar suporte às candidaturas negras e de mulheres. A pesquisa de Marlise Matos (2020) mostra que as mulheres negras eleitas em 2018 têm níveis de escolaridade mais altos e experiências anteriores na política, muito mais que os candidatos brancos. Os candidatos homens brancos herdam não somente a brancura, mas também o capital social, econômico e político da família biológica e política.

Historicamente, a pergunta que se faz é: Porque um país de maioria negra não tem o equivalente de representantes negros na política? Na capital baiana, a pergunta é sempre a mesma: Por que Salvador, a cidade com a maior população negra fora da África, não tem um prefeito negro? Isso para não falar de uma prefeita… Enfim, a maioria das respostas atribui a responsabilidade aos eleitores, expressa na frase “preto não vota em preto”, o que é uma falácia. É preciso perguntar quanto os partidos investem em candidaturas negras, comparativamente às candidaturas brancas?

Da perspectiva teórica decolonial, o que ocorre na política brasileira é o resultado de uma prática de continuidade história entre o período colonial e a modernidade. O que Anibal Quijano definiu como colonialidade do poder – referindo-se às independências na América Latina, que foram independências sem descolonização –, o que significa que mantivemos a mesma ordem hierárquica racial do período colonial, em que os mestiços crioulos ocuparam o lugar dos brancos europeus no topo. Com relação às mulheres, o processo é similar, por isso Maria Lugones introduz o conceito de colonialidade de gênero.

Outro tema importante diz respeito à questão da identidade. Certo dia, eu estava pesquisando sobre as razões que levaram à vitória de Bolsonaro em 2018, e como todo mundo sabe, parte dos argumentos está relacionada à lava jato e à suposta corrupção, outros estão relacionados à questão da identidade. O governo do Partido dos Trabalhadores (PT) é literalmente acusado de fortalecer as identidades raciais, sexuais e de gênero, o que de certa forma é entendido como uma ruptura de um projeto de um Brasil branco-mestiço, hetero, cristão, capitalista e universalista, dentro de uma definição muito estreita do que é universal. Efetivamente, os partidos de esquerda, e aqui quero falar mais especificamente do PT, absorveram em seus quadros um corpo técnico formado por pessoas negras, e essas pessoas trabalharam incorporando a diferença com relação a esse modelo universal excludente, incluindo outros, os negros, os indígenas e os pobres.

A esquerda sempre teve um projeto político mais voltado para as políticas sociais, a educação, a saúde pública, o fortalecimento do SUS e o respeito aos direitos humanos, e direta ou indiretamente, essas pautas beneficiam mais os negros e pobres. Noutra direção, entra o debate sobre a questão da afirmação da identidade pelos grupos racializados e os dissidentes sexuais, que não passa pela autorização dos partidos de esquerda, pois se trata de um movimento de dentro para fora, ainda que coletivo. A diferença é que, na busca por aliança, os partidos de esquerda têm sido mais receptivos, ainda que não de maneira eficiente. Por isso, continuamos pressionado para que a nossa pauta seja mais do que uma promessa, e para que um novo pacto civilizatório de fato seja estabelecido.

*Professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), coordenadora do Coletivo Angela Davis e integrante do Fórum Marielles.

Referências

COLLINS, Patricia Hill. Black feminist thought:knowledge, consciousness and the politics of empowerment. New York/London: Routledge, 2010.

LUGONES,Maria.Colonialidade e gênero. Tabula Rasa [online], n. 9, p.73-102, 2008. ISSN 1794-2489.

QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder e classificação social.In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (org.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina. S. A., 2009. p. 73-117


[1]blackface é uma prática que tem pelo menos 200 anos. Acredita-se que ela tenha se iniciado por volta de 1830 em Nova York. Era uma prática na qual pessoas negras eram ridicularizadas, comportamentos eram exagerados, piadas e outros mecanismos eram utilizados  para o entretenimento de brancos.

Compartilhar

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

plugins premium WordPress