Pandemia evidencia desigualdades e deixa sonhos dos estudantes brasileiros mais distantes

Diante da crise sanitária da pandemia do novo coronavírus, a população mundial precisou criar novos hábitos para executarem suas atividades. Uma dessas mudanças foi no campo da educação, onde mais 1,5 bilhão de estudantes foram afetados pelo fechamento de escolas e universidades, de acordo com relatório da Organização das Nações Unidas (ONU).

Por Brenda Gomes, Francileide Araujo e Patrícia Rosa*

 

Diante da crise sanitária da pandemia do novo coronavírus, a população mundial precisou criar novos hábitos para executarem suas atividades. Uma dessas mudanças foi no campo da educação, onde mais 1,5 bilhão de estudantes foram afetados pelo fechamento de escolas e universidades, de acordo com relatório da Organização das Nações Unidas (ONU). No Brasil, com as aulas presenciais suspensas  para combater a proliferação da covid-19, o  ensino remoto se tornou uma alternativa, porém distante da maioria dos estudantes. Ainda assim, a portaria nº 343 (alterada pela Portaria nº 345) do Ministério da Educação, autoriza a substituição das aulas presenciais por virtuais enquanto durar a situação de pandemia.

Diante deste contexto o acesso à educação ficou ainda mais limitado e desigual. A suposta atual era digital do ensino no país é conflitante quando considerados os números de acesso a internet e aos meios de acesso.  Cerca de 39% dos estudantes de escolas públicas urbanas não têm computador ou tablet em casa, segundo a pesquisa TIC Educação-2019. A pesquisa indica que apenas metade das casas da classe D e E têm acesso à internet. De acordo com a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua)  Educação 2019, cerca de 70%, dos 10,1 milhões de jovens de 14 a 29 anos que não frequentam a escola e nem concluíram o ensino médio, são pretos ou pardos.

Quando o EAD não é uma opção

Além da dificuldade com o formato de ensino emergencial, muitos estudantes universitários  de instituições privadas foram afetados com as dificuldades para manter o pagamento das mensalidades. A soteropolitana, Priscila Ducarmo, é moradora da cidade de Paranoá (DF), trabalha como vendedora ambulante e cursa o terceiro semestre do bacharelado em Direito na Rede de Ensino JK.  A estudante carrega o sonho de se tornar juíza e nesse momento de pandemia tem tido problemas para trabalhar e seguir com os estudos. “Tenho enfrentado dificuldades, basicamente financeiras, que mexeram muito com meus estudos, não tenho internet, que me impossibilita seguir com o curso”. Priscila tem contado com ajuda de amigos para continuar a graduação e conseguir acompanhar as aulas à distância. “Se eu não  tivesse alguém para me ajudar eu não sei se concluiria esse semestre” declara a estudante.

Além das questões financeiras outros entraves fazem parte da vida dos estudantes, dentre eles a ausência de um local adequado para estudar. De acordo com a quarta etapa da pesquisa da Associação Brasileira das Mantenedoras do Ensino Superior  (ABMES),  53% dos estudantes afirmaram que a qualidade caiu com o ensino remoto e 32% reclamaram não ter um local adequado para estudar. Dificuldade enfrentada por  Bruna Reis, estudante do 7º semestre do curso de Relações Públicas da Universidade Faculdade Salvador. “As dificuldades que eu tive foram em relação a concentração nas aulas online, como eu estou no ambiente da minha casa , eu tenho outras tarefas  domésticas para fazer, por mais que eu monte uma rotina, estar em casa vendo as coisas acontecerem me tira do foco da aula”.

Bruna Reis – Imagem: Arquivo Pessoal

Nas universidades da rede pública outra série de problemas vieram junto ao contexto de pandemia. Joseane Souza, que é natural de Salvador, cursa licenciatura em Física na Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), em Ilhéus, Sul da Bahia.  A jovem se vê em meio a incerteza do retorno às aulas, e de como funcionaria a retomada das atividades. “Há algumas semanas, a universidade propôs que nós retornássemos às atividades, mas de forma remota. Eles apresentaram a proposta, porém nós ainda não temos uma posição de como será”.  A possibilidade do retorno de forma virtual inquieta a aluna, que não tem equipamento adequado para acompanhar o conteúdo. “A forma remota é algo que me preocupa, atualmente eu tenho acesso limitado tanto a rede, quanto aos equipamentos de acesso. A  UESC está fechada e não tenho como assistir aulas remotas por enquanto. Não sei se nesse formato de aula  dará para assistir pelo celular”

Com a suspensão das aulas, Joseane teve a manutenção das bolsas de estudo comprometida e, por isso sua permanência na cidade e consequente manutenção dos estudos é incerta. “Com a suspensão da bolsa, eu realmente não sei como vai ser, tenho procurado emprego, mas não estão contratando. Se eu não conseguir uma forma vou ter que ir embora, por que, não vou ter como pagar aluguel, não tenho como ficar aqui”, desabafa a estudante, que tem o sonho de ser pesquisadora e professora.

Um futuro cada vez mais distante

Quando o assunto é o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) os olhos dos estudantes do Quilombo Educacional Vilma Reis, em Salvador, se enchem de encanto. Afinal o exame é a porta de entrada para as principais universidades do país. A proposta da instituição é fornecer aulas com conteúdo programático do exame para os alunos de forma voluntária, sem deixar de lado a abordagem de temáticas que pautam as vivências da comunidade negra.

Em 2020, as aulas até iniciaram presencialmente, mas com a pandemia foi preciso  adotar um novo formato. Professores e alunos precisaram se adaptar, para que o sonho de mais jovens negros(as) nas universidades públicas pudesse ser alcançado.

Durante a transição para o digital, houve uma grande queda da participação dos alunos nas aulas. Para o professor de história, Paulo Almeida, diferentes fatores influenciaram essa evasão. Durante uma avaliação com a presença da psicóloga que acompanha o projeto os alunos citaram dificuldades de relacionamento com os familiares, a falta de lugar adequado para estudar, a qualidade da internet, depressão, dentre outros pontos. Para o historiador, neste momento a instituição precisa resgatar a sua função enquanto quilombo. “Costumamos dizer que não somos quilombo educacional só pelo nome, mas precisamos ser quilombo e acolher os nossos. A gente compreende que esse espaço é onde a gente se reúne, se articula, se acolhe, e que cria as estratégias para poder superar os desafios”

Neste ano, segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), cerca de 5,8 milhões de pessoas se inscreveram para fazer o exame.  No entanto, não se sabe exatamente quantos destes realizarão a prova, por diversos motivos, dentre eles o curto espaço de tempo para estudar. A nova data foi definida após uma enquete realizada pelo INEP com os participantes, onde foram propostas três novas datas. Porém, mesmo com a proposta mais votada sendo o mês de maio de 2021, a instituição optou pela realização do exame em janeiro. “Não há uma preocupação com a escola pública, ou com os mais pobres, que serão prejudicados nesse processo. Inclusive, porque eles lançam uma estratégia dita como democrática, mas colocam o que eles querem”, protesta Paulo.

Mesmo em um cenário de incertezas, Iago Bispo, 19 anos, morador do bairro de São Caetano, na capital baiana, alimenta o sonho de entrar na faculdade de comunicação ou administração. Além de ser aluno do Quilombo Vilma Reis, Iago também é estudante do ensino médio do Centro Estadual de Educação Profissional em Logística e Transporte Luiz Pinto de Carvalho. Neste momento de pandemia a escola não teve condições de dar assistência aos alunos para que conseguissem manter os estudos e a desmotivação tomou conta dos estudantes. “Os alunos de escola particular ainda estão tendo aula virtual, já os alunos de escolas públicas estão a “migué” [sic], os professores sumiram, mas também eles não têm uma plataforma para trabalhar. Já estávamos em desvantagem antes, agora só piorou.”

Com a ausência das aulas presenciais, Iago tem tentando manter a rotina de estudos com as aulas à distância – Imagem: Arquivo pessoal

 

Tentando retornar a uma rotina de estudos nos últimos meses o aluno questiona a nova data estabelecida pelo INEP. “Essa data me preocupa bastante e acredito que todo mundo esteja assim. Está próximo demais. A gente não imaginava que seria tão perto por conta da pandemia. Primeiro por conta das escolas, muitos alunos não estão estudando, não têm a oportunidade do cursinho como seu estou tendo. Pegaram nossa opinião e jogaram no lixo.”

O Projeto Universidade Para Todos (UPT), é um programa do Governo Estadual da Bahia e tem 16 anos de trajetória. Diferentemente do Quilombo Vilma Reis, o cursinho não chegou a iniciar presencialmente o ano letivo de aulas em 2020. A instituição criou como alternativa a plataforma digital “UPT/UNEB – Estude em Casa” (Durante o isolamento social)”, uma alternativa de aprendizado com conteúdos programáticos de preparação para a prova. Infelizmente, a proposta só alcança parte dos estudantes, visto a necessidade de acesso a internet. De acordo com Simone Ferreira, Coordenadora geral do projeto, a modalidade não será adotada como forma exclusiva de ensino: “Essa plataforma será instrumento de auxílio de estudo, não descartando o presencial. Vamos trabalhar com essa alternância, principalmente se tivermos que diminuir o número de alunos nas salas de aula”.

Nesta realidade, de necessidade de acesso e evasão digital, é que o Enem 2020 vem chegando, dividindo expectativa e insegurança para os estudantes brasileiros.

A exaustão dos estudantes e a romantização do trabalho em situação precária dos professores

Das mães aos alunos e professores, a pandemia mudou os cotidianos de famílias e a forma de trabalhar dos educadores. É muito comum nas redes sociais achar depoimentos de professoras(es) que estão se desdobrando nessa quarentena para que estudantes, principalmente das regiões mais afastadas dos centros urbanos, tenham como acompanhar as aulas.

As desigualdades se manifestam em diversos contextos. Dentre eles, na falta de acesso a internet. Em alguns estados e cidades brasileiras, os órgãos responsáveis pela educação, afirmaram que será distribuído chips com internet para estudantes que não tenham acesso. O que é o caso do Maranhão, onde 90 mil chips de internet, começaram a ser distribuídos para os alunos do 3º ano do ensino médio da rede pública estadual que estão se preparando para realizar as provas do Enem.

Segundo dados do IBGE, na zona rural brasileira apenas 53% dos lares têm acesso à rede. Janeide Bispo, professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), chama atenção para o fato de que muitas vezes o município não tem estruturas físicas para fornecer a conexão. “Também tenho estudantes que moram da zona rural, mas as empresas não investem no lugar onde não vão ter muito lucro. Todas as redes públicas que fizeram a opção de continuar o ano letivo, estão legitimando as desigualdades”, afirma.

Janeide Bispo – Imagem: Arquivo pessoal

A falta da rotina escolar também atinge a vidas das mães. Para algumas a possibilidade de passar mais tempo com seus filhos, para outras, a pandemia chegou juntamente com as incertezas e dificuldades. O que é o caso de Aricélia dos Santos, mãe de um casal de gêmeos de 3 anos, que frequentam a Creche Primeiro Passo, no bairro da Canabrava, em Salvador (BA). Ela conta com o auxílio da família para conciliar o trabalho e o cuidado com as crianças. “Assim que as aulas foram suspensas eu cheguei muitos dias atrasada no trabalho, com muito temor de perder o emprego. Tive que ver alguém para ficar com meus filhos, contei com uma tia e com minha irmã. No meu trabalho conversei com minha coordenadora para trabalhar um turno e compensar futuramente.”

Para Janeide, que também é mãe, a realidade da sua filha é um exemplo do que pode estar acontecendo com outros alunos, um cenário de exaustão mental. “O sofrimento dela de expressar angústia diante da tela e da não aprendizagem. Isso transborda para mim em formas de fortes emoções”, desabafa.

O processo de adoecimento acontece de vários lados. Seja dos estudantes, enfrentando dificuldades no aprendizado, ou dos professores, que não conseguem fazer com que as aulas cheguem até eles. A população negra carece de políticas públicas voltadas para todas a áreas, principalmente no campo de saúde mental. O presidente da República vetou no ano passado vetou o PL 3.688/2000 que previa atendimento psicológico e de assistentes sociais nas escolas públicas. Às professoras(es) vem cada dia mais sendo desmotivadas(os) a atuarem na educação. A falta de um piso salarial condizente com o trabalho oferecido, a falta de estrutura para ensinar e os altos índices de evasão de estudantes são desafios acentuados pela crise pandêmica.

Sem ferramentas, sem previsão para voltar (ao “futuro”)

No dia 1º de Julho de 2020  o Ministério da Educação (MEC) anunciou diretrizes  com  medidas protetivas, de biossegurança para a volta às aulas presenciais e estratégias  para o retorno às atividades escolares.  No entanto, um relatório produzido por deputados da Comissão Externa da Câmara dos Deputados que acompanha os trabalhos do MEC, indica que o Governo Federal não adotou medidas para promoção de uma educação básica, no campo, dos povos indígenas e quilombolas durante a pandemia no Brasil.

Enquanto medidas de atuação na educação remota não são tomadas, também não  há uma data prevista para a volta às aulas presenciais em todo o país. “Primeiro não têm condições do retorno das atividades presenciais sem uma vacina, isso é um ato desrespeitoso é um ato pensado a partir de uma única lógica, a do mercado. A escola é uma das maiores aglomerações que temos diariamente e com crianças que não tem certas compreensões para manter o distanciamento social”, enfatiza a professora Janeide Bispo.

 

 

*Esta reportagem foi feita sob a orientação de Jonas Pinheiro, e é um dos produtos do Lab Afirmativa de Jornalismo. Clique na imagem para saber mais

 

 

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