Por Jonas Pinheiro*
A recente prisão do MC Poze do Rodo por apologia ao tráfico de drogas levantou um debate sobre temas como arte, favela, racismo e criminalidade. Dentro desse contexto, uma das figuras mais contraditórias e famosas da cena musical brasileira, Oruam — filho de um dos líderes do Comando Vermelho — foi colocada também no centro das discussões.
Ato 1 – A prisão
A prisão do MC Poze ocorreu no último dia 29 de maio. Amplamente televisionada e com o claro objetivo de expor o artista, a ação desrespeitou seus direitos básicos, em mais uma demonstração da face racista do nosso sistema de “Justiça”. Descalço, sem camisa e sendo obrigado pelos policiais a ficar de cabeça baixa, Poze foi conduzido à delegacia. Após escolher ficar na ala destinada ao Comando Vermelho na prisão, por ser de uma região em que a facção está inserida, a mídia “corporativa” esqueceu-se por um minuto que agora é “antirracista” e nas suas manchetes bradou que o MC havia admitido ser da facção criminosa. Um “erro” calculado.
Nas redes sociais, não faltaram comparações com outras prisões de famosos brancos. Roberto Jefferson, que chegou a trocar tiros e jogar granada na polícia, Cariani, preso por tráfico de drogas, dentre outros. Nenhum deles recebeu o tratamento dado pela polícia a MC Poze. O perfilamento racial é regra em nosso país, e nem tampouco o poder aquisitivo do artista foi suficiente para que ele tivesse seus direitos resguardados.
Após cinco dias preso, MC Poze foi liberado. Na decisão acertada, o desembargador Peterson Barroso Simão criticou a maneira que os policiais conduziram à prisão. “Aqueles que levam fortuna do INSS contra idosos ficam tranquilos por nada acontecer e, ao mesmo tempo, prende-se um jovem que trabalha cantando e ganhando seu pão de cada dia (…)”, dizia trecho da sentença.
Na primeira entrevista após sua liberação, Poze desabafou: “O tratamento com meus fãs foi spray de pimenta na cara, tiro de borracha e eu que sou bandido (…) Por que eles estão fazendo isso comigo? É porque eu sou preto, ou porque eu sou favelado?”.
MC Poze do Rodo faz desabafo após ser solto: 'Sou trabalhador, artista'
— Jornal O Dia (@jornalodia) June 3, 2025
Crédito: Érica Martin / Agência O Dia pic.twitter.com/FFuQnaN3dJ
O MC se referia a festa que a favela fez para recepcioná-lo na saída da prisão e que foi fortemente reprimida pela polícia.
Na recepção ao MC, estava nosso segundo protagonista desta história, Oruam.
Ato 2 – O jovem Mauro
Mauro Davi dos Santos Nepomuceno, o Oruam, tem 24 anos e é filho de Marcinho VP, um dos líderes do Comando Vermelho e que está preso desde 1996. O rapper esteve recentemente no centro dos debates devido a uma proposta legislativa da cidade de São Paulo, copiada por vários estados e municípios, que visa proibir músicas que fazem apologia ao crime. O projeto ficou conhecido como Lei Anti-Oruam.
O artista estava na recepção a Poze, e comemorou a liberdade do amigo e companheiro, enquanto literalmente “corria da polícia” e era idolatrado pelo público. Um dia antes, ele já havia sido destaque na imprensa, ao ser capa da revista britânica Dazed. A publicação exaltou a carreira artística de Oruam, o colocando como uma estrela em ascensão do rap no Brasil e também enfatizando o fato dele ser alvo de críticas.
Tudo tranquilo até aí, não fosse a data da publicação, 2 de junho, que numa “coincidência” no mínimo infeliz, marcava os 23 anos do assassinato do jornalista negro Tim Lopes. Mas o que isso tem a ver com a publicação? O fato fez despertar novamente uma série de questionamentos a Oruam, que estampa em seu corpo duas “polêmicas” tatuagens. Uma de seu pai, Marcinho VP, e outra de seu tio de consideração, Elias Maluco, responsável pelo assassinato de Tim Lopes.

Neste que poderia ser um roteiro de filme hollywoodiano, o público julgava quem era herói e vilão. Diversas pessoas criticaram Mauro pelas tatuagens e pela capa da revista naquela data, uma “afronta calculada”, diziam eles. Enquanto isso, alguns de seus fãs na ânsia de defender o ídolo, desrespeitavam a memória de Tim Lopes. Mais tarde, ao ser questionado mais uma vez sobre as tatuagens, Oruam respondeu a um seguidor no seu X, antigo Twitter. “Quando eu tatuei eles eu não tinha dimensão que me associariam aos erros deles, fiz na inocência, mas pelo afeto familiar, nós cometemos erros!!!!”
Algumas questões neste caso merecem ser trazidas à reflexão. Comumente Oruam é associado aos crimes do pai, mesmo tendo escolhido outro caminho que não o crime, contrariando, pasmem, uma sociedade que espera dele o contrário. Passou-se então a utilizar a imagem de Tim Lopes para apontar como ele é “mais do mesmo”, afinal favelado, filho de bandido não poderia ser diferente, né?! Uma acusação que recorrentemente disfarça o racismo de uma sociedade que sempre vai esperar o pior de pessoas negras e faveladas. Não à toa é entoada pela extrema direita, e por alguns brancos ditos progressistas que discordam de nós, os supostos “identitários” (um papo para um outro texto).
E já que estamos falando de Tim Lopes, um incômodo meu ao ver mencionarem este tema, é a quase nunca responsabilização da Globo, emissora para qual trabalhava quando foi assasinado e que expôs um jornalista negro a uma zona de guerra para “mais um furo de reportagem”. E já que estamos falando também de racismo, se Tim Lopes fosse branco teria sido exposto a essa situação? Vale lembrar que a Globo nunca respondeu judicialmente pelo caso, e após algumas críticas mudou sua “política de segurança” para seus profissionais.
Ato 3 – Bem x Mal
No último final de semana, Oruam voltou a ser destaque mais uma vez ao participar dos protestos contra a morte de Herus Guimarães Mendes, jovem de 24 anos assassinado após uma operação do Batalhão de Operações Especiais (Bope) na comunidade do Santo Amaro, no Catete, Zona Sul do Rio de Janeiro. Após a aparição junto a amigos e familiares do jovem, Oruam pediu nas redes sociais ajuda aos seus seguidores para se organizar politicamente e lutar pela favela.

Existe um costume geral de analisarmos a sociedade pelas lentes de uma maniqueísmo cru, em que o bem vive a lutar contra o mal, como num filme de heróis e vilões. Esta visão colonial e dicotômica do mundo é simples demais para entender uma sociedade tão complexa. E o mal, nesta fantasia não fictícia chamada Brasil, é designado à população negra e pobre, que sofre historicamente com as negligências do Estado.
“Foda-se as crianças”, foi o que um PM disse ao executar João Victor De Jesus Da Silva, 22 anos, na zona leste de São Paulo, em julho de 2024. O caso veio à tona no último dia 10 de junho, quando a imprensa teve acesso às gravações das câmeras de segurança.
Me parece bem evidente que muitas das críticas aos nossos protagonistas são frutos do racismo e da visão classicista que boa parte da sociedade tem das periferias, onde o Estado só chega atirando para depois perguntar, como no caso do assasinato do jovem Herus. Isso não exclui as contradições de Poze e Oruam, e os dilemas destas figuras tão complexas.
“Se você não quer que eu cante o que eu canto, mude minha realidade”. Esta foi uma declaração de MC Cabelinho em uma entrevista a Pedro Bial ao comentar a prisão do Poze. A questão vai muito além das músicas do Poze ou do Oruam.
A população negra é encarcerada em massa, sob a justificativa falaciosa de uma guerra às drogas. Dentro das prisões, surgiram as duas maiores facções do país, uma delas o Comando Vermelho. Não é de se estranhar este fato? Ora, há de se admitir que existe algo muito errado neste processo. Existe um projeto de Estado, um genocídio em curso neste país que tem como alvo cor e CEP bem específicos.
Ainda no Rio de Janeiro, um levantamento do Fogo Cruzado mostrou que mais de 60% dos territórios ocupados por grupos armados na capital são controlados por milicianos. Territórios que certamente o BOPE não chega atirando, afinal as milícias se confundem com o próprio Estado.
Dois dias após a liberação do MC Poze, a Justiça Federal absolveu um piloto e um copiloto de uma avião que transportava mais de 400 quilos de pasta base de cocaína no dia 16 de dezembro de 2024, em Penápolis (SP). A justificativa? O juiz considerou a abordagem irregular.
Epílogo
Que a vontade de Oruam de se fortalecer para lutar contra as injustiças que atingem a favela seja genuína. Há muito a contribuir nessa batalha. As mulheres negras estão há anos na linha de frente, denunciando o genocídio da população negra – como Mônica Guimarães Mendes, mãe de Herus, que, aos prantos, pediu justiça por seu filho no protesto após a operação do BOPE. Em novembro, a 2ª Marcha Nacional de Mulheres Negras – que já alcança caráter e mobilização global – pretende levar a Brasília mais de um milhão de pessoas para lutar por reparação e bem viver.
Neste roteiro de uma realidade cruel e sangrenta, não existe uma jóia do infinito para voltar no tempo e salvar todas as vidas perdidas nessa Guerra Infinita, mas é possível olhar para frente e lutar para evitar que mais Herus e tantos outros tenham suas vidas ceifadas.
Afinal, o mundo não é um filme da Marvel.
*Coordenador editorial da Revista Afirmativa e pesquisador das mídias negras