Primeiro casal trans de Sergipe, a espera de um bebê, denuncia transfobia em atendimento médico

Lourenzo Gabriel, 23 anos, e Isis Broken, 27 anos, um casal de artistas. Ela, cantora sergipana, travesti, vencedora na categoria melhor videoclipe nacional pelo Festival de Cinema de Vitória pelo clipe “O Clã”, coleciona algumas indicações e premiações em festivais no Brasil e no mundo. Ele, rapper, homem trans, nascido em São Paulo, mas atualmente vivendo

Lourenzo Gabriel é homem trans gestante e relata constrangimentos por não ter seu nome social respeitado e ser tratado por pronomes femininos

Por Andressa Franco

Lourenzo Gabriel, 23 anos, e Isis Broken, 27 anos, um casal de artistas. Ela, cantora sergipana, travesti, vencedora na categoria melhor videoclipe nacional pelo Festival de Cinema de Vitória pelo clipe “O Clã”, coleciona algumas indicações e premiações em festivais no Brasil e no mundo. Ele, rapper, homem trans, nascido em São Paulo, mas atualmente vivendo em Aracaju (SE), também é idealizador do ArtisTrans, um selo musical independente formado por pessoas trans, que produz e distribui músicas de todos os estilos musicais feitas por pessoas trans em todas as plataformas digitais.

Isis e Lourenzo, que se identificam como um casal transcentrado, é o primeiro casal trans de Sergipe a esperar um bebê. A notícia chegou no início do ano, alguns sintomas característicos de gravidez os fizeram suspeitar, e com o teste de farmácia tiveram a confirmação.

Com medo de se contaminarem com o vírus da covid-19, tiveram receio de procurar um posto de saúde de imediato. Até que em abril, com cerca de sete semanas de gestação, Lourenzo passou a sentir enjoos e ter sangramentos, e decidiram ir até à Unidade Básica de Saúde (UBS) mais próxima, a UBS Oswaldo de Souza, onde encontraram o primeiro obstáculo relacionado às suas identidades de gênero, por não terem o nome social respeitado.

“Além do Decreto 8727/16, sancionado pelo governo Dilma, aqui em Aracaju tem uma portaria municipal que dá direito a você ter seu nome social em qualquer esfera”, pontua Broken em referência ao decreto estadual 30.374/2016, cuja disposição trata do “tratamento nominal, inclusão e uso do nome social das pessoas travestis e transexuais nos atos de registro e de atendimento relativos a serviços públicos” prestados pelo Executivo Estadual.

Isis apresentou a carteira do SUS do companheiro na recepção, carteira essa já retificada com seu nome social, ainda assim, o casal conta que precisaram esperar que fizessem outra carteira, porque lhes foi dito que o nome que constava não batia com o do RG.

“Mas ela [a carteira do SUS] é válida em qualquer estado, porque eu já morei em Minas Gerais, e lá eu usava a carteira de São Paulo e nunca tive problema com isso. Eles foram fazer outra carteira e na hora eu vi que colocaram o nome de batismo. Sendo que eles já viram que tinham o nome social lá”, conta Lourenzo.

Nesse processo, foram quase três horas apenas para o quesito nome social ser resolvido. Na sequência, o casal preencheu a chamada Carteira da Gestante, onde também sentiram desconforto por não se sentirem representados no material que não abrange o modelo de família trans. “Eu sei que essa carteira é padronizada em todo o país, mas eu acho que está na hora da gente mudar de alguma forma”, salienta a cantora.

Já na sala da médica, explicam que, mesmo com acesso ao nome social, a profissional tratou Lourenzo pelo pronome feminino durante todo o atendimento. Depois disso a UBS encaminhou o casal para fazer exames laboratoriais pelo laboratório da UNIT (Universidade Tiradentes), entidade particular conveniada à prefeitura, onde também denunciam não terem seus pronomes respeitados. Eles contam que o requerimento enviado pelo SUS não continha o nome social de Lourenzo, apenas o nome de batismo, e que o constrangimento continuou ao serem chamados em voz alta por esses nomes em uma sala com muitas outras pessoas.

“A gente estava no fundo da sala e o Lourenzo falou ‘A gente vai ser constrangido, vamos pelo menos um pouco mais pra frente’. A gente não deveria estar passando por isso, a gente não deveria estar preocupado porque está sentado no fundo e tem que ir para frente pra não ser constrangido”.

Antes do exame de ultrassom ser realizado, o que aconteceu em maio, o sangramento voltou com mais intensidade, o casal então se dirigiu ao Hospital e Maternidade Santa Isabel. Logo na recepção, Lourenzo conta ter entregado seu cartão do SUS, mas precisou ouvir do recepcionista ‘não, eu quero a carteira dela’, e mais uma vez precisaram explicar que era o seu nome social na carteira.

Ainda assim, o atendente entregou a pulseira de cadastro com o nome de batismo, com medo de não serem atendidos se insistissem, resolveram aguardar o atendimento. “Mais uma vez constrangimento, mais uma vez o nome de batismo sendo gritado aos quatro ventos. Quando Lourenzo entrou ficou um murmúrio na sala inteira, ‘Ela tá grávida? O que ele é? O que ela é?’ E com essa situação chata eu precisei explicar, virei um Google”, lembra Isis.

A médica, Lourenzo relata, constatou o sangramento e orientou que aguardassem o ultrassom para saber se o bebê estava vivo ou morto, ultrassom que só poderia ser realizado dentro de um mês. Depois de um mês sem saber se o bebê estava vivo ou morto, e até temendo uma infecção se fosse o segundo caso, em maio, com 11 semanas de gestação, realizaram o procedimento um uma clínica particular, a Clínica Viver, por encaminhamento do SUS, onde o constrangimento do nome social se repetiu, o que, a essa altura, o casal afirma, já era esperado.

No momento do exame, a entrada de Isis como acompanhante não foi autorizada, a justificativa foi a pandemia de covid-19. “O médico nem olhou para minha cara, ele simplesmente me mandou tirar a roupa, falou inclusive ‘tire a calcinha’, ele não falou comigo, passou a consulta inteira fazendo perguntas para recepcionista”, narra Lourenzo.

Foi nesse momento que o casal decidiu desabafar nas redes sociais. “Lorenzo já está quase no quarto mês de gestação [14 semanas] e ele não teve uma consulta com um médico em nenhum momento. A UBS daqui, a Oswaldo de Souza, disse que o médico estaria de férias até o final do mês de julho. O ultrassom não foi visto por nenhum o médico”, acrescenta Isis.

O casal, que está sendo agora acompanhado por uma doula que se voluntariou, mostrou a ela os exames, e foi conversando com ela que afirmam terem se dado conta de que estavam “sofrendo uma violência obstétrica”. “Quando a gente passa a violência, a gente não sabe que a gente tá passando por uma violência. Eu resolvi fazer os stories, sem pretensão nenhuma, foi quando as pessoas começaram a ficar chocadas com o relato e eu fui perceber o peso que esses relatos tinham, as pessoas falaram, ‘postem no feed, vamos fazer uma campanha, vamos compartilhar’”.

Com a repercussão, o casal teve a história divulgada e recebeu apoio de figuras públicas LGBTQIA+ como a vereadora trans e negra de São Paulo Erika Hilton (PSOL), o ativista e criador de conteúdo trans Luca Scarpelli, a ex-BBB Marcela McGowan, que também é ginecologista e obstetra, e a atriz Nanda Costa. Mesmo com a arrecadação da campanha e a repercussão da história, o casal pretende seguir com o atendimento público.

“A gente quer continuar com o atendimento pelo SUS porque o que a gente quer é que o sistema público de saúde mude. E se outro casal transcentrado chegar aqui e acontecer a mesma coisa? A gente vai ter que também fazer essa mobilização? Se esse é o primeiro caso, então a gente vai mobilizar para que todo o sistema de saúde aqui de Aracaju se modifique”, ressalta Broken.

 O casal conta que a Secretaria Municipal de Saúde entrou em contato no último domingo (20) para se informar sobre o caso. De acordo com Isis, o CEMAR (Centro de Especialidades Médicas de Aracaju) Siqueira Campos encontrou em contato para agendar uma consulta, mas com vaga apenas para o próximo mês, e, mais uma vez, foram tratados pelos nomes de batismo.

A expectativa de Isis e Lourenzo é de que com a visibilidade desse caso, o debate da saúde para pessoas trans possa ser ampliado. “Não só em caso de gravidez, mas que pessoas trans também possam ter o mínimo de respeito no acesso à saúde, que não tem”, destaca Lourenzo.

“Eu, no meu lugar de não grávida, não tenho acesso à saúde da forma que eu deveria ter. É muito difícil para qualquer pessoa trans, eu evito o máximo que eu puder [procurar atendimento médico], eu fico doente em casa e só vou em casos de extrema importância, porque eu sei que vou sofrer com algum tipo de transfobia, seja recreativa, institucionalizada, racista, estrutural, de todas as formas” acrescenta Isis.

 A campanha de arrecadações do casal segue aberta através de doações pelo Pix: isisbroken@icloud.com.

 

O que diz a Secretaria Municipal de Saúde de Aracaju

Em nota para a Revista Afirmativa, a Secretaria Municipal de Saúde da capital sergipana se pronunciou. Leia na íntegra a nota:

A Secretaria Municipal da Saúde de Aracaju informa que assim que tomou conhecimento do caso denunciado por Isis Broken, companheira de Lourenzo Gabriel, entrou em contato para reforçar que o município está à disposição para solucionar o problema.

Sobre a inserção do nome social no Prontuário Eletrônico, esse campo já existe desde a implementação do sistema, no ano de 2019, e todos os servidores da rede de Saúde são orientados a preenchê-lo sempre que o usuário declará-lo.

O usuário Lourenzo Gabriel teve seu primeiro atendimento na Unidade Básica de Saúde Oswaldo de Souza no dia 20 de abril e desde então teve acesso aos serviços de saúde necessários para sua condição de saúde, incluindo consultas, fornecimento de insumos através do serviço de farmácia da unidade, bem como encaminhamento para consulta obstétrica a ser realizada.

 A SMS ressalta ainda que, mesmo diante da inclusão de nome social no sistema de saúde do município, a base de cadastro do Sistema Único de Saúde está vinculada a Receita Federal, e que para que essa alteração aconteça no sistema nacional, o usuário necessita realizar a atualização cadastral junto à Receita Federal.

 Em nenhum momento foi negado atendimento ao usuário, e todos os profissionais de saúde são orientados a atuar sem quaisquer diferenciações, independentemente de cor, sexo, classe social ou identidade de gênero.

 Sobre as empresas prestadoras de serviço ao município através da SMS, já foi aberto chamado reforçando a orientação sobre priorizar a identificação do usuário utilizando o nome social declarado, quando este for informado no atendimento na Unidade Básica de Saúde.

 A Secretaria Municipal da Saúde de Aracaju ressalta ainda que atua sempre com o compromisso de atender os usuários e usuárias do SUS da melhor maneira possível e está em contato para atender as demandas do casal.

 

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