Projeto de Lei busca reconhecer cuidado materno como trabalho e garantir aposentadoria das mães que ficam sem trabalho formal para cuidar dos filhos

Edna Márcia de Oliveira é uma mulher negra de 54 anos, moradora da Zona Sul de São Paulo. Nascida em Belém do Pará, se considera amazonense, porque “se criou” em Manaus.

Parlamentares do Norte e Nordeste explicam impacto do PL, e abordam importância das creches

Por Andressa Franco*

Imagem: @Brit/Nappy.co

Edna Márcia de Oliveira é uma mulher negra de 54 anos, moradora da Zona Sul de São Paulo. Nascida em Belém do Pará, se considera amazonense, porque “se criou” em Manaus. Além disso, Edna é mãe de quatro filhos, pelos quais sua vida girou em torno. 

A amazonense foi mãe solo de uma menina aos 19 anos, e trabalhou como auxiliar de enfermagem para garantir o sustento. Nesse período se casou, e teve mais três filhos aos 24, 26 e 35 anos. A partir de então, deixou de trabalhar no mercado formal, e passou a se dedicar integralmente à criação dos filhos.

“Eu dedicava todo o tempo para cuidar da casa, lavar, passar, acompanhar escola, pediatra”, o que só foi possível, conta porque o marido tinha um emprego.

Quando os filhos cresceram, Edna voltou a trabalhar, dessa vez como agente comunitária. Depois de 10 anos, interrompeu mais uma vez sua carreira, agora para cuidar do marido, acometido por um câncer. Foram oito anos acompanhando de consultas a internações até se tornar viúva. “Cuidei dele como fiz com meus filhos. Esqueci de mim porque me dediquei demais. Não tive tempo de olhar o mundo”, desabafa. Ainda assim, com todas as filhas tendo conquistado o diploma universitário, tem orgulho do trabalho que fez.

No entanto, depois de adiar e interromper a vida profissional diversas vezes, a aposentadoria se tornou uma preocupação iminente na vida de Edna. Hoje, a amazonense, que mora em uma casa alugada, projeta para 2023 voltar ao mercado de trabalho, apesar da idade. “Seja lá onde for, de faxineira, copeira, zeladora. Eu preciso trabalhar”, ressalta.

Depois de realizar dois cursos de corte e costura, planeja ainda complementar a renda, que se resume à pensão que recebe do falecido marido, vendendo roupas para animais, e doando uma parte para ONGs. Outra possibilidade, avalia, é pagar o complemento do INSS, já que não “contribuiu” pelos anos necessários. 

Edna Márcia de Oliveira – Imagem: Arquivo Pessoal

Foi pensando em mulheres como Edna, que no dia 23 de novembro, o Projeto de Lei (PL) 2757/2021, de autoria da deputada Talíria Petrone (PSOL-RJ), foi aprovado na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Câmara dos Deputados. A proposta reconhece o cuidado materno como trabalho e garante a aposentadoria das mães que ficam sem trabalho formal para cuidar dos filhos, e não conseguiram se aposentar por outros meios.

O projeto foi inspirado em uma lei da Argentina, que em 2021 passou a reconhecer o cuidado materno como trabalho e garantiu a aposentadoria de 155 mil mulheres.

Ele ainda precisa ser aprovado na Comissão de Seguridade Social e Família; de Finanças e Tributação; e de Constituição e Justiça e de Cidadania, e só após essas aprovações para seguir para votação no Senado. Após aprovado na Câmara e no Plenário ainda precisa passar pela aprovação final do Presidente da República.

Chamado de improdutivo, o cuidado materno “proporciona o giro do capital”

Mulheres, principalmente as nordestinas, em sua maioria mães e negras, são o principal perfil sofrendo com os altos índices de fome e desemprego. Os dados são do IBGE e do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, publicado em 2021 pela Rede PENSSAN.

Também segundo o Instituto, o Brasil tem mais de 11 milhões de mães inteiramente responsáveis pela criação dos filhos. Destas, 61% são negras. Abaixo da linha de pobreza, cerca de 63% das casas são comandadas por mulheres negras com filhos de até 14 anos. Mais de 7,8 milhões de pessoas vivem em casas chefiadas por mulheres negras. Em 2022, os cartórios registraram o maior número de mães solo dos últimos cinco anos. 

Para a co-vereadora de Fortaleza pela mandata coletiva Nossa Cara (PSOL-CE), Adriana Gerônimo, a votação do PL é uma vitória para as mães nordestinas. “Esse trabalho é chamado de improdutivo para o mercado, mas é ele que está cuidando das futuras gerações.”

Adriana Gerônimo é co-vereadora de Fortaleza – Imagem: Theyse Viana

A deputada estadual pelo Pará, Lívia Duarte (PSOL), aponta que impressiona a quantidade de direitos que ainda são negados às mães. “A mulher é vista com menor valor social, ocupando o âmbito privado, da casa, fazendo um trabalho dito invisível. Essas responsabilidades deveriam ser coletivas, institucionais e pertencentes ao Estado, uma vez que geram renda e proporcionam o giro do capital.”

O principal benefício, de acordo com Adriana Gerônimo, é garantir dignidade para essas mães. Mas, não acredita que será uma tarefa fácil aprová-lo em uma sociedade profundamente desigual para as mulheres, algo refletido na política institucional, ocupada majoritariamente por homens brancos, “que só estão trabalhando porque têm alguém cuidando dos seus filhos”.

Assim, defende, o principal desafio é o machismo estrutural. “O cuidado integral das crianças, doentes, idosos, da família sempre foi uma tarefa das mulheres negras. Elas muitas vezes se mantêm em relacionamentos abusivos para garantir a sobrevivência dos filhos.” 

Lívia Duarte concorda. Para ela, só a fase de discussão do PL já traz benefícios, uma vez que traz o cuidado como um “problema coletivo” para o centro do debate. A deputada acredita que é preciso “deslocar o cuidado da esfera privada, para incorporá-lo na agenda pública como direito para se garantirem políticas públicas com viés interseccional em favor da redução das desigualdades sociais”.

Dentre os desafios para a sua implementação, destaca os entraves na reserva orçamentária e a necessidade de maiores estudos que expressem de forma mais precisa a lacuna de gênero, raça e classe na provisão, distribuição e usufruto do cuidado no Brasil.

O acesso às creches para a manutenção da vida profissional das mulheres 

A expectativa de Edna é de que o PL seja aprovado, e ajude de fato as mães. A costureira nota que nos últimos anos houveram avanços, como as creches, que classifica como uma “mão na roda”. Porém, como milhões de crianças, sua filha mais velha não teve acesso. “Eu nem sabia o que era creche, como funcionava. Vim conhecer quando a minha filha mais velha estava com quase 15 anos de idade.”

A prefeitura de Belém (PA) inaugurou em agosto de 2021 a primeira creche noturna do estado, um projeto de Lívia Duarte enquanto vereadora da cidade. “Eu sei que a creche noturna vai beneficiar as mulheres pretas da periferia, que não têm babá para sair à noite para estudar ou trabalhar”, disse ao inaugurar a Unidade de Educação Infantil Wilson Bahia.

Duarte chama atenção para o fato de que mais da metade da população feminina acima dos 14 anos ficou fora do mercado de trabalho em 2020 no Brasil, o que corresponde a uma taxa de participação das mulheres na força de trabalho em apenas 45,8%, enquanto a dos homens ficou em 65,7%. Já a taxa de desocupação, foi de 12,8% para os homens, 16,8% para as mulheres e 19,8% para as mulheres negras.

Lívia Duarte é deputada estadual pelo Pará pelo PSOL – Imagem: Reprodução PSOL

“Nas palavras de Bell Hooks, o fato de que ninguém fala em homens deixarem o trabalho para ser pais em tempo integral demonstra até que ponto o pensamento sexista sobre papéis prevalece”, critica.

Em setembro deste ano, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) fixou o entendimento de que a educação básica é um direito fundamental e garantiu o dever constitucional do Estado de assegurar vagas em creches e na pré-escola às crianças de até 5 anos de idade. Por lei, o país deve atender a pelo menos 50% das crianças de até 3 anos de idade em creches até 2024, meta prevista no Plano Nacional de Educação (PNE), Lei 13.005/2014. Conforme os dados disponíveis em 2019, 37% das crianças nesta faixa etária estavam matriculadas.

No entanto, de acordo com estudo divulgado pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, como base no Índice de Necessidade de Creche (INC), as crianças que mais precisam de creche ainda têm pouco acesso ao serviço. Entre as famílias mais pobres, apenas 24,4% das crianças de até 3 anos de idade frequentam creches no país.

Segundo o Índice, das 11,8 milhões de crianças brasileiras com até 3 anos de idade, quase 5 milhões precisam de atendimento em creche. Fazem parte do grupo as crianças em situação de pobreza; as de famílias monoparentais; e as crianças cujos cuidadores principais precisam contar com as creches para trabalhar. Edna é um exemplo dessa realidade, e teve muita dificuldade para encontrar alguém que cuidasse da sua filha, para que pudesse trabalhar.

Para a votação no Senado, Adriana Gerônimo projeta a necessidade de uma grande articulação da bancada federal do PSOL, que apresenta o PL da deputada Talíria Petrone. A co-veradora conta ainda com a mobilização de movimentos populares, para cobrar a aprovação do PL

“Enquanto não formos protagonistas dessas discussões, não será possível falar em mudanças reais no âmbito trabalhista, previdenciário, assistencial, ou qualquer outro. Precisamos de mais mães na política”, conclui Lívia Duarte.

*com contribuições de Patrícia Rosa

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