Quatro anos após o feminicídio de Elitânia de Souza, acusado será levado a júri popular

Nome, retrato e lutas da ativista quilombola se tornaram símbolos da batalha contra o extermínio das mulheres negras

Nome, retrato e lutas da ativista quilombola se tornaram símbolos da batalha contra o extermínio das mulheres negras

Por Andressa Franco e Karla Souza

Imagem: Divulgação

A rotina acadêmica de Elitânia de Souza da Hora, graduanda em Serviço Social na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), era parte integral de sua vida. Aos 25 anos, ela era ativista de direitos humanos e líder na Comunidade Quilombola do Tabuleiro da Vitória, em Cachoeira (BA). 

No dia 27 de novembro de 2019, sua vida foi brutalmente interrompida por José Alexandre Passo Góes Silva, seu ex-companheiro, que a assassinou a tiros quando ela retornava das aulas na companhia de uma amiga. 

José Alexandre não aceitava o fim do relacionamento, já havia agredido a estudante e a ameaçava constantemente. A vítima tinha uma medida protetiva emitida pela Justiça de Cachoeira contra o ex-companheiro, que é filho de um juiz do tribunal baiano. Além disso, outra medida protetiva chegou a ser solicitada em dezembro de 2018, na comarca da cidade vizinha, São Félix (BA).

O feminicida José Alexandre, hoje se encontra preso no Conjunto Penal de Feira de Santana e será levado a júri popular – Imagem: Reprodução

Quatro anos após o crime, o processo corre em segredo de justiça e encontra-se em andamento. O acusado está preso de forma preventiva no Conjunto Penal de Feira de Santana e será levado a júri popular. 

Leticia Ferreira, advogada e diretora da Tamo Juntas, organização que presta assistência a mulheres em situação de violência e que integra a articulação da Semana Elitânia de Souza, relata que foi sorteada uma lista preliminar para composição do júri popular. “Agora nós estamos aguardando que a vara criminal de Cachoeira agende o tribunal do júri, que é quando ele novamente será interrogado, bem como as testemunhas”, descreveu a advogada habilitada no processo como assistente de acusação.

Leticia Ferreira, advogada e diretora da Tamo Juntas, organização que presta assistência a mulheres em situação de violência e que integra a articulação da Semana Elitânia de Souza – Imagem: Gabriel Lopes

O extermínio das Mulheres Negras no Brasil

O assassinato de Elitânia levantou mais uma vez o alerta sobre a segurança das mulheres negras no Brasil. Em 10 de dezembro de 2019 – em razão do feminícidio da quilombola – o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e a Organização das Nações Unidas (ONU) Mulheres emitiram uma nota conjunta para o término da violência contra as mulheres.

A interrupção abrupta, violenta e misógina da vida da quilombola, está entre os 1330 casos de feminicídio que ocorreram no Brasil, somente em 2019, segundo levantamento do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A média de feminicídio no ano em questão foi de 3,64 por dia.

Segundo o Anuário, em 2022 houve um registro de 1.437 casos no país, o que representa um aumento de 6,1%, em comparação a 2021. As tentativas de feminicídio aumentaram 16,9%. O perfil majoritário das vítimas fatais é de mulheres negras (61%), que têm entre 18 e 44 anos (71,9%), e foram mortas pelo parceiro íntimo (53,6%). Sete em cada dez feminicídios aconteceram dentro de casa. 

Na época do crime, a UFRB chegou a se manifestar. Hoje ocupando o cargo de pró-reitora Pró-Reitoria de Políticas Afirmativas e Assuntos Estudantis (PROPAAE) da instituição, a Dra. Denize Ribeiro, que também é coordenadora do NEGRAS e pesquisadora no Coletivo Angela Davis, conta que pensa em criar um espaço para acolher e encaminhar mais precisamente situações de violências na universidade.

“Quanto ao que possa acontecer fora da UFRB, temos também que ter um protocolo do que fazer. Estamos discutindo a melhor forma da UFRB se posicionar em apoio às vítimas e contra todo tipo de violência”. Denize também foi responsável por organizar a primeira audiência pública do caso. O Coletivo Angela Davis participou de várias iniciativas, protestos, caminhadas, discussões, denunciando e cobrando justiça por Elitânia.

Negligência do Estado

Diversos fatores contribuem para os altos números de feminicídio no Brasil, como a subnotificação, legislação e políticas insuficientes, além da falta de educação e conscientização sobre o machismo.

“O caso de Elitânia com certeza também tem de uma certa forma a coautoria da negligência, da inoperância e da precariedade dos serviços, que poderia oferecer uma maior proteção a ela, que já poderia ter até preso preventivamente esse agressor”, declara Letícia Ferreira. A advogada também questiona o porquê das violências sofridas por Elitânia não terem sido coibidas. “Se ela tinha medida protetiva, se tinha feito o boletim de ocorrência, tinha denunciado as autoridades, havia pedido ajuda? Mesmo assim ela não conseguiu, com a denúncia que fez, obter a proteção necessária para evitar que sua vida fosse ceifada.” 

Sara Regina Oliveira, Assistente Social na Defensoria pública de Santo Antônio de Jesus (BA) e pesquisadora no Coletivo Angela Davis, explica que existem formas de violência que permeiam as mulheres negras em processo de formação universitária. Com casos inclusive não registrados, o que impede o acesso a dados sistemáticos de monitoramento.

Para ela, é preciso avançar nos investimentos em pesquisas sociais e nas políticas de assistência estudantil para melhorar as condições de vida e aprendizado dos estudantes.

“Não podemos deixar de reivindicar a articulação ativa da universidade com a comunidade, com rede de prevenção e proteção às mulheres vítimas de violência. Bem como repensar estratégias de proteção das mulheres que estão inseridas na universidade”, pontua.

A ativista destaca ainda a construção do Observatório da violência contra a mulher, financiado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), vinculado à UFRB. A iniciativa fez um levantamento dos casos de violência em cidades baianas como Cachoeira, Santo Antônio de Jesus e Feira de Santana.

“Foi possível perceber que ainda há poucas evidências sobre a realidade das mulheres do campo. E, no espaço acadêmico, percebe-se que ainda há necessidade de investirmos nessa área de pesquisa, para que os dados sejam levantados e as possíveis políticas públicas construídas”, completa.

Símbolo da batalha pelo combate à violência contra mulheres negras

No último dia 23 de novembro, ocorreu a “Audiência Pública – A omissão do Estado no combate à violência doméstica e ao feminicídio na Bahia” no Cineteatro de Cachoeira. A ação integra a agenda coletiva da IV edição da Semana Elitânia de Souza – Pela Vida das Mulheres Negras, que desde 2020 denuncia as persistentes situações de violência enfrentadas por mulheres negras.

Após a audiência, as participantes marcharam pelas ruas da cidade exigindo justiça não apenas para Elitânia, mas para todas as vítimas de feminicídio.

“A realização da Semana Elitânia de Souza é para além de um evento. É a possibilidade de que o caso não seja esquecido, a memória e o ativismo de Elitânia sejam sempre lembrados. Além de fomentar debates para conscientizar outras mulheres, e responsabilizar quem deve proteger e resguardar suas mulheres: o Estado”, afirma Sara.

A Semana Elitânia de Souza é organizada pela Articulação de Mulheres do Engenho da Ponte, Coletivo Angela Davis, Instituto Odara, Núcleo de Mulheres do Rosarinho, Rede Elas Negras Conexões, Rede de Mulheres Negras do Nordeste e ONG Tamo Juntas. Essa mobilização integrou a II Jornada pela Vida das Mulheres Negras, promovida pela Rede de Mulheres Negras do Nordeste.

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