“Quem lucrou com o sangue e o suor do povo negro terá que reparar”, afirma Valdecir Nascimento 

Celebrando e também demarcando a resistência deste 20 de Novembro, a Afirmativa bateu um papo com a ativista , Valdecir Nascimento, sobre a luta das mulheres negras na busca por participação e disputa de poder nos espaços de decisão 

Por Patricia Rosa com contribuições de Alane Reis

A baixa representatividade racial e de gênero nos espaços de decisão e poder é uma característica histórica do Brasil. Nos três Poderes da República, homens brancos predominam em cargos de gestão e comando. 

Apesar da persistência da baixa representação de mulheres negras na política, elas vêm forjando estratégias de participação desde as primeiras eleições diretas no Brasil. Em 1934, em Santa Catarina (SC), Antonieta de Barros entrou para a história como a primeira parlamentar negra do Brasil e da América Latina.

Noventa anos após a eleição de Antonieta de Barros, as manchetes ainda celebram as “primeiras mulheres negras eleitas” em diversos âmbitos da política. Esse cenário reflete a urgência de discutir e compreender a história política das mulheres negras no Brasil.

Neste 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, a Revista Afirmativa convidou Valdecir Nascimento, uma verdadeira griot de nossos tempos, para compartilhar sua análise sobre o tema. Historiadora, mestre em Educação e ativista do movimento de mulheres negras, Valdecir é fundadora do Odara — Instituto da Mulher Negra, compõe a coordenação da Rede de Mulheres Negras do Nordeste, é ativista da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB) e coordena a sub-região do Brasil na Rede de Mulheres Afrolatinoamericanas, Afrocaribenhas e da Diáspora. Natural de Salvador, ela cresceu no bairro dos Alagados e tem dedicado as últimas cinco décadas de sua vida à luta contra o racismo e à defesa dos direitos das mulheres negras.

Valdecir Nascimento reflete sobre a trajetória das mulheres negras na política institucional brasileira e denuncia a sistemática negação da memória dessas mulheres. 

Confira a entrevista completa.

R.A: Apenas 89 anos depois da eleição de Antonieta de Barros, outra mulher negra conseguiu ocupar uma cadeira na Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc), Vanessa da Rosa (PT). Diversos outros estados e cidades do Brasil têm experimentado pela primeira vez a eleição de “parlamentares negras”. Como a senhora avalia essa questão? Até que ponto essa celebração indica mais a persistência de barreiras do que um progresso efetivo na inclusão de mulheres negras nos espaços de poder?

A celebração é uma manifestação importante enquanto nos revela a nossa capacidade de enfrentar o enorme desafio de romper barreiras e acessar espaços. Você não comemora apenas por ser a primeira, mas porque a celebração está ligada à afirmação. Mesmo sabendo que não é suficiente, talvez seja também um ato de memória.

O que queremos dizer é que o sistema está organizado para não avançarmos além de uma única conquista. Ao invisibilizar a memória, não há sequência de estudos ou perspectivas que permitam ampliar os números.

A ausência de memória e estudos sobre as características de cada estado deixa as mulheres negras limitadas na forma de participar politicamente. Além disso, não temos capital social para investimentos de curto, médio e longo prazo, tanto em estudos e pesquisas quanto em formação, para garantir que não seja apenas uma mulher ou apenas a primeira. Continuamos celebrando a força política que nos move para romper a articulação perversa entre racismo, sexismo e pobreza.

Outro aspecto importante é a necessidade de estudar os estados que têm experiências contínuas de eleger mulheres negras, como o Rio de Janeiro.

A participação política das mulheres no parlamento ainda exige estudos e investimentos. O fundo partidário, por si só, não é suficiente, é preciso um investimento contínuo, que antecede as eleições e assegura que, mesmo que a mulher não seja eleita agora, ela tenha um projeto para conquistar esse espaço no futuro. É por isso que defendemos o mandato coletivo. O mandato coletivo tem sido uma grande estratégia para eleger mulheres negras. Porém, à medida que essa estratégia ganha força no Brasil, os partidos entram com impedimentos, investindo na desestruturação dessa iniciativa forjada pelas mulheres.

Apesar do assassinato de Marielle Franco ter se tornado um fenômeno mundial, o fato em si e como ocorreu revelam a insatisfação do controle branco sobre o crescimento da participação de mulheres negras no parlamento. Uma mulher negra na política vai na contramão dos pactos brancos.

R.A.: Quais as consequências dessa lacuna de representação para a vida política no Brasil, desde a gestão do Estado às políticas públicas?

V.N.: As lacunas são imensas. Como pode um país com 60 milhões de mulheres negras seguir sem que elas opinem sobre como o Estado funciona? Como se pode pensar políticas para 54% da população negra sem a presença dessas pessoas? O olhar branco é suficiente para lidar com a nossa realidade? Claramente não. Se a cada 23 minutos um menino negro é assassinado e ninguém se move, enquanto meninos brancos não morrem, será que nós, famílias negras, gostamos disso?

A ausência do olhar negro impacta profundamente a sociedade. Quando dizemos que precisamos participar, não é para reproduzir desigualdades, mas para realinhar as práticas sociais com outros olhares. A ausência de mulheres e homens negros nas decisões políticas nos mantém vulneráveis. 

Há uma hostilidade perversa, tanto da direita quanto da esquerda branca, que mantém o controle e impede nosso avanço. Propor políticas de ações afirmativas em um país que reduz esse debate a cotas é reflexo do medo de que a maioria negra se reorganize na nação.

A esquerda branca e as organizações brancas nos tratam como base, e nos oferecem migalhas para projetos que eles sabem que não terão sucesso. Enquanto isso, essas mesmas organizações ganham milhões para estruturar suas agendas.

Isso tudo é reflexo de nossas ausências nesses espaços. Continuamos sendo a “bucha de canhão”, e isso não começou com Bolsonaro. O [Partido dos Trabalhadores] PT e o [Movimento Sem Terra] MST foram forjados por pessoas negras, mas continuamos elegendo brancos. Não é que não gostamos de votar em negros, mas quais condições estão sendo postas? Quais investimentos são feitos para essas pessoas negras?

A sociedade precisa pensar nisso. Precisamos refletir sobre como o racismo opera. Os brancos da esquerda precisam ser verdadeiramente antirracistas, porque ainda não são. Discutam, conceituem e entendam o que é ser antirracista.

R.A.: Como a senhora analisa o processo de luta dos movimentos de mulheres negras pela participação política e o acesso a espaços de poder?

V.N.: Nosso processo de luta tem crescido de forma significativa. Hoje somos um dos movimentos sociais brasileiros que mais se mobilizam. Afirmo isso com a identidade de ser feminista e negra. Estamos disputando em cada canto deste país as nossas concepções, seja no campo da segurança alimentar e nutricional, nas questões climáticas ou na participação em espaços de decisão. Estamos nos movimentando de forma significativa, muito diferente de há 30 anos, porque hoje chegamos com nossas pesquisas, estudos e leituras, isso faz uma diferença enorme. 

Estamos em organizações de religiões de matrizes africanas, com as quilombolas, as jovens negras, trans, para construir uma nação que não é só para nós, é para todos. 

Entretanto, é preciso entender a relação esquizofrênica que os brancos racistas, principalmente os da esquerda, estabelecem conosco. Eu sempre vou criticar a esquerda, porque é o campo político do qual eu faço parte. E hoje, eu acho que estou por além da esquerda, porque a esquerda de hoje não é suficiente para compreender sobre o que nós estamos construindo.

Falar sobre isso significa dizer que as alianças que nós construímos ao longo dos 40, 50 anos de história do nosso ativismo no Brasil, têm provado que o caminho que nós escolhemos é tortuoso, porque os brancos seguem no controle. Por isso que eu acho que poder, é diferente de espaço de decisão.

Estamos caminhando e lutando para nos inserir nos espaços de decisão, esses espaços hoje fortes e estratégicos, para que a gente mude a ordem e possa legislar pensando na maioria. Nós não queremos base, nós somos contra a base, nós somos favoráveis a um movimento consciente do que é direito. Não queremos hierarquizar uma sociedade a partir dessa perspectiva das relações que se chama relação de poder.

Toda vez que a gente ocupa um chamado espaço de poder, ele se desloca. O racismo não permite que o poder fique aqui.

Podemos até discutir o poder do ponto de vista das mulheres negras. Falando do ponto de vista cotidiano, existencial, nós temos uma força política do ponto de vista da espiritualidade que nos segura. Mas não temos poder, pensando no modelo que está estruturado na sociedade brasileira.

Nós, mulheres negras, sempre construímos nossa liberdade desde que o mundo é mundo, porque nós somos libertárias, não queremos estar submetidas a ninguém. Isso é parte da impressão digital do que a gente chama de feminismo negro. Até porque o feminismo negro não está reduzido às mulheres, nós queremos todos feministas.

O feminismo negro é pensar o mundo numa perspectiva de igualdade, onde somos parte dele, nós não somos as dominadoras do espaço, nós somos parte do espaço. Temos uma cosmo-relação interseccional e dependemos de ecossistemas permanentes. 

E para completar, tem um outro golpe da esquerda branca, dos brancos no geral, que são as tais das homenagens, das medalhas. Isso é uma destruição para quem trabalha coletivamente. Quando você pinça uma como melhor, você estabelece o conflito da guerra entre as demais. Todo mundo quer virar melhor.

Para que eu preciso de título da universidade, de cidadã, ou de título de doutora honoris causa? Que função tem isso do ponto de vista da minha vida, da vida da população negra, da transformação da população negra? O que é que um título de cidadã de qualquer lugar vai me trazer para a minha coletividade, vai impactar pela minha coletividade? 

A história que eu quero escrever, o legado que eu quero deixar, não é da quantidade de títulos que eu recebi, é do papel transformador que eu cumpri na minha comunidade, na sociedade brasileira. É da capacidade visionária que eu tenho de dizer que a gente ainda consegue transformar o mundo.

RA.: Sabemos que mesmo depois de eleitas, as forças de uma mulher negra comprometida com a coletividade da população negra, ainda é muito desproporcional em relação ao poder masculino branco que domina essas estruturas. Tendo em vista esta realidade, quais os impactos positivos de mulheres negras eleitas?

V.N.: São vários os impactos positivos, emblemáticos. Para as crianças e adolescentes verem uma parlamentar negra, saber que na prefeitura de onde ela mora tem uma prefeita negra, isso já é importante e fundamental, porque ela projeta naquela figura a possibilidade de um dia eu chegar naquele lugar. Então, isso aí é um impacto extremamente importante.

E, insisto que ter uma vice-prefeita, uma vereadora negra não significa espaço de poder, mas sim um espaço de decisão.  As nossas condições num espaço de decisão são limitadas, porque são alianças que são necessárias para constituir esses espaços, e a depender dos seus projetos, você vai ter poucos aliados. 

O que uma mulher negra propõe normalmente vai na contramão do que a cultura misógina e sexista desses espaços legislativos propõe. Por isso que uma só não basta. Uma mulher negra, quando assume um espaço desse, o que ela vai colocar como projeto, como reivindicação, é diferenciado.

A política de mobilidade passa a ser uma prioridade para uma parlamentar negra, porque ela sabe que uma trabalhadora doméstica para chegar no centro da cidade às 7 horas para pegar o emprego, ela precisa acordar às 4h.

Então, a presença de uma mulher negra se constitui complexa, porque ela tem poucos aliados na defesa desses direitos, e também não existe um projeto de investimento de continuidade da sua presença naquele espaço.

R.A.: Os dados apontam que entre 2016 e 2020 o número de mulheres eleitas cresceu de forma mínima, alcançando apenas 12,1% dos municípios brasileiros. Em termos de equidade racial, houve um aumento de  29,1% para 32,1%. Recentemente foi aprovada PEC da Anistia dos partidos, em relação ao cumprimento de cotas e recursos para negros e mulheres. Como esta PEC pode atrasar a luta por representatividade na política?

V.N.: É bom a gente pensar duas questões, o Brasil é um Estado que anistia historicamente os poderosos, os violadores de direitos humanos, que é o caso dos fazendeiros do agronegócio. Eles matam, eles expulsam comunidades indígenas e quilombolas.

O Estado é quem mais empresta dinheiro pro agronegócio, e o agronegócio é quem mais é anistiado. O patrimônio do Estado serve a um pequeno grupo. Vivemos num Estado que funciona para fazer dar certo os grandes empresários.

Então, nós temos um Estado a serviço de uma elite branca, isso significa que quando você fala em retirar recursos desse Estado para beneficiar um grupo que vive em desigualdade na nação, você terá uma resistência sistêmica desses grupos, que sempre se beneficiaram dos recursos públicos para enriquecer. Não se trata apenas de redistribuir a riqueza, mas também dos impedimentos que eles [grupos que vivem em desigualdade] podem provocar no parlamento e nos espaços de decisão.

Sim, porque, se você tiver uma maioria negra ou uma maioria de mulheres no Congresso Nacional, um conjunto de anistias não poderá ser aprovado, e investimentos, como os do Banco do Nordeste ou do [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] BNDES, não irão mais para as mãos de quem já é rico. É necessário que essa riqueza seja redistribuída.

Se você quer discutir economia e igualdade, qual é o fomento que chega às mãos das mulheres negras, que têm pequenos negócios? E não me venha falar de empreendedorismo, não é sobre isso que estamos falando. Estamos falando sobre direitos econômicos e fomento para o investimento em mulheres trançadeiras, por exemplo, que precisam de recursos para incrementar seus negócios. E esses negócios, uma vez fortalecidos, vão gerar trabalho e renda para várias outras pessoas. 

Falo também dos pequenos agricultores, que precisam de dinheiro para investir em tecnologia e gerar produtos que criarão riqueza que circulará em suas mãos. 

Mas você tem uma vergonha. Além das questões da anistia, temos essa migração descarada de identidades, com brancos mudando suas identificações raciais para se beneficiarem de políticas, que deveriam ser destinadas aos excluídos. Isso é vergonhoso. É bom pensar também, que não foram só os partidos de direita que defenderam a anistia.

É uma vergonha pro Brasil. Nós deveríamos tensionar, os partidos políticos de esquerda deveriam pressionar, mas eles se silenciaram, porque eles são parte da mesma concepção. Esse é o pacto da branquitude, que não discute qual o campo político que você atua, e sim a defesa e proteção sobre os privilégios de uma sociedade racista. 

A escravidão foi uma invenção que moldou nossas mentes, e também a forma como enxergamos o meio ambiente. Porque eles sabem que nos devem. É por isso que estamos discutindo reparação, e não apenas do Estado brasileiro. Quem lucrou com o sangue e o suor do povo negro também terá que reparar.

Compartilhar

plugins premium WordPress