Por Andressa Franco
Ataques de especulação imobiliária e ameaça à vida de lideranças quilombolas do Quilombo Quingoma, localizado em Lauro de Freitas, Região Metropolitana de Salvador (RMS), foi tema de uma reunião de movimentos, entidades, coletivos e lideranças nesta quarta-feira (5). O encontro aconteceu no Auditório Mastaba, da Faculdade de Arquitetura da UFBA, em Salvador (BA), e teve como objetivo traçar caminhos e estratégias para construir uma ampla frente de resistência em apoio ao Quingoma.
No dia 17 de abril de 2023, a comunidade tornou pública uma carta onde expressa preocupação com a segurança da liderança do território, Rejane Rodrigues, e solicitava ação urgente para proteção de sua vida.
O documento explica que, desde agosto de 2013, o Quingoma é certificado como comunidade quilombola pela Fundação Cultural Palmares (FCP), mas sofre diversas formas de violência, racismo e injustiça ambiental. A carta denuncia que, apesar da certificação e de a comunidade estar localizada em uma Área de Preservação Ambiental (APA), o processo de regularização fundiária está paralisado desde 2015 no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Rejane Rodrigues era amiga de Mãe Bernadete do Quilombo de Pitanga dos Palmares, que foi executada a tiros na Comunidade Quilombo Pitanga de Palmares, localizada em Simões Filho, também na Região Metropolitana de Salvador (RMS). De acordo com o Censo Demográfico de 2022, a Bahia detém o maior número de quilombolas do país.
Das 3.583 comunidades quilombolas autodeclaradas no Brasil, apenas 147 são tituladas, segundo o IBGE. De acordo com levantamento divulgado em 2023 pela Terra de Direitos, caso o país mantenha o atual ritmo de regularização fundiária das terras quilombolas, serão necessários 2.188 anos para titular integralmente os processos abertos no Incra.
“Depois que o Ministério Público entrou com uma ação jurídica contra um empreendimento no território do Quilombo Quingoma, Rejane teve sua vida ameaçada, o que a obrigou a deixar a área às pressas e a aderir ao Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos”, relata a carta.
Segundo a pesquisa Racismo e Violência contra Quilombos no Brasil, entre 2018 e 2022, 65% dos assassinatos de quilombolas ocorreram em territórios não titulados, sendo 70% desses assassinatos motivados por conflitos fundiários.
Entraves para o processo de titulação
O Quingoma é um dos quilombos mais antigos do Brasil, resistindo ao período colonial, com registros de atividades que remontam 1569. Hoje, 650 famílias vivem no território. Em 2023, foram visitados pelo rei da Nigéria, Ooni Ilê Ifé, de quem receberam o certificado de Território Iorubá, o único no Brasil a receber esse certificado.
Diana Matos, mestranda em Geografia pela Universidade Federal da Bahia e integrante do Instituto de Geociências, destaca a história de luta do quilombo, especialmente no contexto de levantes e rebeliões negras que aconteceram no século XIX, como o levante do Joanes e a Revolta dos Malês. A pesquisadora menciona ainda a articulação política que existia entre as comunidades quilombolas da região na época com quilombos que hoje correspondem aos bairros de Itapuã, Cajazeiras e Pernambués em Salvador
“Diante de algumas situações, como a iminência da construção de empreendimentos, em 2013 a comunidade apresenta a autodeclaração como comunidade quilombola à FCP, conseguindo a certificação como comunidade remanescente de quilombo. Como sequência para a titulação do território, foi aberto processo no Incra.”
Para que o quilombo seja titulado pelo Instituto, é preciso a elaboração de um Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID). Essa é a primeira etapa do processo de regularização fundiária do território quilombola e tem como objetivo identificar os limites das terras da comunidade através de levantamento de informações cartográficas, fundiárias, históricas e antropológicas.
No entanto, até então, a comunidade só conta com o Relatório Antropológico que foi elaborado por equipe técnica e aprovado pela comunidade em 2017. Para Diana, o relatório foi importante para identificar os limites do território e definir sua área de 1225 hectares. “Contudo, as demais peças que compõem o RTID não foram finalizadas e, por esse motivo, a comunidade do Quingoma ainda não conseguiu avançar no processo de titulação.”
A pesquisadora chama atenção ainda para uma contraproposta de redução do território para 284,76 hectares, apresentada pelo Estado através da Casa Civil logo após a realização do relatório antropológico. “Isso era uma redução muito grande (80%) e a comunidade não aceitou. E esse relatório, que é de competência do Incra, não foi concretizado ainda”, pontua.
Território explorado e lideranças em risco
Depois da certificação, os conflitos se acirraram. E sem a segurança jurídica da posse da terra, a comunidade fica vulnerável. No decorrer dos anos, o quilombo já sofreu com diversas incursões em seu território. Como a implementação da Via Metropolitana, em 2018, sob a responsabilidade do consórcio privado Bahia Norte com o apoio do governo estadual – conectando rodovias que cortam a área do território; a inauguração do Hospital Metropolitano de Lauro de Freitas em 2020, em terras pertencentes ao quilombo; construção de postos de gasolina.
Houve até mesmo uma tentativa de compra de terreno pelo Esporte Clube Bahia para construção do novo Centro de Treinamento. O projeto só não foi para frente, porque a Defensoria Pública da Bahia, Defensoria da União e Ministério Público Federal recomendaram que os direitos do Quingoma fossem resguardados.
“Com o movimento de retomada de identidade e reivindicação das nossas terras ancestrais, chamamos a atenção do estado e da prefeitura, e essa visibilidade teve um lado negativo. Eles não enxergaram unicamente as pessoas, e sim a oportunidade de fazer negócios e perpetuar o genocídio da comunidade”, desabafou Rejane Rodrigues em entrevista ao Marco Zero Conteúdo.
Diana conta que a comunidade resiste para manter sua tradicionalidade, mesmo que as construções tenham impactado diretamente seu modo de vida. Os moradores relatam que foram destruídas áreas verdes, matas sagradas, aquíferos, rios e outros cursos d’águas, impactando as atividades ligadas à agricultura, pecuária e a pesca.
“Política do medo”, é como a mestranda define a atuação do mercado imobiliário associado aos latifundiários, através da criação de loteamentos, devastação das áreas de mata, além do assédio e ameaças aos moradores para que vendam suas casas.
A ameaça mais recente é a implementação do empreendimento Joanes Parque, da MAC Empreendimentos Imobiliários, que foi licenciado pela prefeitura em 2023. Promovido como bairro sustentável, as obras estão tomando trechos de mata atlântica da APA Joanes-Ipitanga, sem consentimento da comunidade, que luta continuamente recorrendo às instituições públicas para proteção de direitos sociais e ambientais.
“Em consequência da resistência do quilombo a esses empreendimentos em suas terras tradicionais, lideranças vêm sofrendo situações de violência, incluindo as atuais ameaças de morte das duas lideranças Rejane Rodrigues Pereira e Gabriela Lima Menezes do Sacramento”, denuncia Diana.
Ao Marco Zero Conteúdo, Gabriela Sacramento, que é agricultora e presidente da Associação Agrícola Novo Horizonte, disse que o cenário atual explicita a falta de interesse das gestões municipal e estadual em investir em políticas públicas que tragam benefícios para a comunidade.
“A morosidade do Incra traz transtorno e desespero, eles dizem não haver recursos para regularizar a titulação do território, e assim ficamos desprotegidos. Estou fora do quilombo por conta dessas ameaças, entretanto a terra é o nosso corpo e a nossa alma, mesmo intimidados vamos continuar enfrentando.”
Em nota ao Marco Zero, a MAC Empreendimentos declarou que a área a ser implantado o Loteamento, cujas obras estão em andamento, não faz parte do território quilombola e que todas as etapas têm sido conduzidas em cumprimento com a legislação vigente e em acordo com as exigências dos órgãos competentes. A assessoria técnica do quilombo, no entanto, refuta os argumentos, já que a delimitação do território ainda não foi finalizado pelo Incra, mas destaca que o empreendimento se encontra dentro do perímetro do território ratificado no relatório antropológico.