Por Monique Rodrigues
Para admitir que existe racismo reverso, seria preciso também admitir que a hegemonia política, jurídica e econômica seja dominada por pessoas negras. Isso porque o racismo é um fenômeno social complexo que envolve não só ações individuais, mas sobretudo um pilar estruturante que o sustenta à luz da propriedade e dos bens, da norma e do poder.
O fomento de políticas afirmativas ou discriminação positiva é alicerçado pelo Princípios da Igualdade e Isonomia, os quais são admitidos inclusive do ponto de vista constitucional, de maneira que essa prática tem como objetivo trazer um equilíbrio histórico à grupos minorizados.
Ora, na realidade brasileira as cotas raciais sempre foram em favor da branquitude, isto porque o Estado Brasileiro garantiu que negros não entrassem na escola (Constituição de 1824); não tivessem acesso a terra (Lei de Terras 1850, n 601) e que, mesmo depois da “abolição” a distribuição das terras fossem endereçadas aos imigrantes europeus (Decreto 528 de 1890). Ou seja, além de colonizadores, foram também historicamente os cotistas e favorecidos pela lei nacional. Por isso, não nos surpreende que ações como a da Magazine cause tamanho desconforto porque subverte a lógica de subalternidade.
Marcadores levantados pelo Instituto Ethos nos mostram que nas 500 maiores empresas, o número de pessoas negras nos cargos de alta gestão não chega a 05%. Esses números são igualmente desanimadores quando analisamos a realidade do judiciário pelos dados do CNJ, o qual denuncia que apenas 15% dos magistrados e ministros se autodeclaram negros. Na advocacia o número cai para 01%, segundo pesquisa do CEERT, nos 09 maiores escritórios de advocacia brasileiros. No Congresso Nacional o número de parlamentares é de 17%.
O papel decisório desses atores sociais é fundamental na gestão da vida pública e privada, seja no acesso e na distribuição de renda, seja no desenvolvimento educacional, social e econômico dos cidadãos. Entretanto, a armadilha da meritocracia desconsidera a dívida histórica que o Brasil tem com a população Negra e os Povos Indígenas.
Como diria a psicanalista Grada Kilomba há “uma glorificação colonial“ e complementa o historiador Luiz Antonio Simas “o Brasil deu certo”. Essa glorificação do projeto colonial manteve intacto o pacto narcísico da branquitude.
O historiador Paul Gilroy vai descrever 05 mecanismos de defesa do ego da branquitude: negação, culpa, vergonha, reconhecimento e reparação. Desse modo, do ponto de vista da “consciência coletiva”, o Brasil continua no estágio da negação, admitindo que existem ações e atitudes racistas, mas inadmitindo enquanto Estado-nação as facetas do racismo estrutural. Essa cegueira brasileira é proposital, visto que a branquitude jamais reconheceu a “Síndrome traumática pós-escravidão” descrita pela psicóloga P.hd Joy DeGruy.
Depois do racismo pseudocientífico de Raimundo Nina Rodrigues e Renato Kehl, ao invés de entrar para o time dos colonizadores culpados, o Brasil preferiu exaltar a literatura de Monteiro Lobato e Gilberto Freire que reiteraram estereótipos sobre as pessoas negras, as colocando senzalas, nas cozinhas e na condição de servos e subalternos, o que mais tarde ganha nova roupagem com os cortiços, com as favelas, com as cadeias, com as condições de “moradores de ruas”, como se rua fosse naturalmente um lugar para morar.
Claro que a gestão de políticas públicas foram grandes facilitadores para que o pacto narcísico continuasse sendo renovado geração após geração. Assim, não há surpresa que discursos de ódio sejam proferidos em relação às leis de cotas, as quais tem ampliado consideravelmente o número de negros nas universidades públicas (50,3%) e nos concursos públicos. Assim como ações da iniciativa privada na contratação para cargos de liderança e executivos exclusivamente para pessoas negras sejam consideradas “racismo reverso”, pois isso causa uma rachadura no pacto da branquitude, apesar do hiato social entre essas raças e a branquitude continuar sendo majoritária na posse de propriedades e nos cargos no alto escalão.