Saída do Brasil do Consenso de Genebra: coordenadora da ONG Criola explica impactos do período em que o país foi signatário

No dia 16 de janeiro, o governo brasileiro anunciou sua saída da Declaração do Consenso de Genebra sobre Saúde da Mulher e Fortalecimento da Família. A aliança conservadora é formada por 37 países e se posicionam contra o aborto.

O Brasil oficializou sua saída da aliança que se posiciona contra o aborto no dia 16 de janeiro. Bolsonaro assinou a entrada do Brasil no acordo em 2020

Por Andressa Franco

Imagem: Fernando Frazão / Agência Brasil

No dia 16 de janeiro, o governo brasileiro anunciou sua saída da Declaração do Consenso de Genebra sobre Saúde da Mulher e Fortalecimento da Família. A aliança conservadora é formada por 37 países e se posicionam contra o aborto. O Brasil aderiu em 2020.

“O Governo brasileiro decidiu atualizar o posicionamento do país em fóruns e mecanismos internacionais que tratam da pauta das mulheres, com o objetivo de melhor promover e defender os mais altos padrões dos direitos humanos e liberdades fundamentais, em linha com a legislação brasileira e os compromissos assumidos pelo país no plano regional e multilateral”, afirma a nota conjunta dos ministérios dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC); das Mulheres; da Saúde e das Relações Exteriores.

Mas como isso impacta a vida das mulheres brasileiras? Na prática, o que a presença do país nesse acordo nos últimos dois anos significou para o país?

Reposicionamento político

Para Lúcia Xavier, coordenadora da ONG Criola, a presença brasileira na Declaração de Genebralimitava ainda mais a possibilidade de manutenção do aborto legal e das possibilidades de descriminalização do aborto. O procedimento é permitido no país nos casos de risco à vida da mulher, gravidez resultante de estupro, e anencefalia.

A ativista acredita, portanto, que o rompimento ajuda o Brasil a se reposicionar no contexto político nacional e internacional. Visto que as pautas defendidas na Declaração não mais representam o que o Brasil deve acatar quando o assunto for justiça reprodutiva.

“Isso pode não mudar imediatamente o que vem vivendo o Brasil em termos da criminalização das mulheres por causa do aborto e nem tão pouco pode salvar suas vidas. Mas já não vai impedir o avanço dos direitos sexuais e reprodutivos”, destaca.

Lúcia explica que sem a adesão ao Consenso, já havia uma onda forte de criminalização das mulheres, redução dos direitos e sobretudo da limitação do papel da mulher na sociedade desde o governo Michel Temer.

Um levantamento realizado pela Gênero e Número aponta que o investimento na Secretaria de Políticas para Mulheres, criada em 2003, caiu em 68% de 2015 a 2018.

Dados do Ministério da Saúde coletados pelo G1 apontam que, em 2021, 17.316 garotas de até 14 anos foram mães no país. De acordo com a legislação, sexo com menores de 14 anos é considerado estupro de vulnerável e, caso a violência leve à gestação, a criança tem direito ao aborto legal.

Estatuto do Nascituro x Aborto Legal

Para a coordenadora da ONG Criola, assinar o Consenso fortaleceu na prática as legislações contrárias ao direito sexual reprodutivo das mulheres, e também o avanço no que se refere ao próprio aborto legal, “que já é praticamente ignorados nesse processo. Sobretudo no que se refere a crianças e as adolescentes até 14 anos”.

Assim, o Consenso fortalece, entre outros, o Projeto de Lei em trâmite no Congresso chamado de Estatuto do Nascituro. Ele prevê a revogação de todas as três autorizações para a prática do aborto legal, ou seja, criminaliza o procedimento em toda e qualquer situação. O Estatuto do Nascituro está em pauta desde 2007 e, desde então, o texto vem sendo revisado e ajustado. Nos últimos dias de 2022, o PL ressurgiu no Congresso Nacional.

O Brasil não tem dados oficiais sobre o aborto, e mesmo com registros de óbito em casos de aborto clandestino, existe uma subnotificação crônica. Especialistas e pesquisadoras, como Emanuelle Góes, autora da tese “Racismo, aborto e atenção à saúde: uma perspectiva interseccional”, afirmam que os riscos do procedimento no país são maiores para mulheres negras e pobres.

O impacto já está dado

Sobre o que a aliança já impactou na legislação brasileira na prática, a ativista defende que, embora nenhuma normativa como o Estatuto do Nascituro tenha sido de fato efetivada, o impacto da Declaração de Genebra já está dado.

Isso porque “as ideias conservadoras vão buscar seus argumentos nesse Consenso para manter a disputa sobre o direito ao corpo das mulheres”. Além disso, barrou os possíveis avanços do debate de justiça reprodutiva.

Em 2021, o país assistiu a agenda avançar entre seus vizinhos, como a Argentina, que legalizou o aborto durante as primeiras 14 semanas de gestação; e no México, onde a Suprema Corte descriminalizou a prática em decisão unânime dos ministros, abrindo precedente para todo o país.

Enquanto isso, por aqui, a então ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves (Republicanos) não só assistiu em silêncio o caso da menina capixaba de 10 anos que engravidou após estupro, como agiu nos bastidores para impedir que a criança fosse submetida ao aborto legal ao qual tinha direito.

“A justiça reprodutiva é um anteparo”

Quanto aos próximos anos, a mesma nota conjunta que anunciou a saída do Brasil da Declaração do Consenso de Genebra sobre Saúde da Mulher e Fortalecimento das da Família, sinalizou a inclusão do país no Compromisso de Santiago e na Declaração do Panamá. De acordo com a publicação, o acordo representa ferramentas valiosas para a coordenação e a promoção de políticas a fim de garantir os direitos das mulheres no âmbito regional e hemisférico. 

Para Lúcia, a justiça reprodutiva é um ponto fundamental para a compreensão do enfrentamento à criminalização das mulheres, mas também para a garantia desses direitos através das perspectivas relacionadas a justiça social.

“A justiça reprodutiva é um anteparo para pensar soluções em relação às vulnerabilidades que se encontram as mulheres.”, pontua Lúcia. Ela observa ainda a importância do debate para apontar caminhos para garantia da segurança de meninas e adolescentes.

Lúcia Xavier, coordenadora da ONG Criola – Imagem: Reprodução/Criola

Nesse sentido, afirma, a justiça reprodutiva ajudaria a trazer novas perspectivas não só de proteção, “mas de garantia de informação, acesso e sobretudo cuidados nessa fase da vida que tem demonstrado aspectos importantes no que se refere a falta de direitos ou à violação desses direitos”, finaliza.

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