Para os 100 primeiros dias Symmy Larrat promete a retomada do Conselho Nacional e o diálogo com o Ministério da Justiça para garantir a efetividade da criminalização da transfobia a partir da Lei do Racismo
Por Andressa Franco
Imagem: Marcelo Camargo Ag. Brasil
O Dia Nacional da Visibilidade Trans teve origem a partir de um ato nacional para lançamento da campanha “Travesti e Respeito”, em 29 de janeiro de 2004. A data foi escolhida por ter sido um marco na história do movimento contra a transfobia e na luta por direitos.
Mas a invisibilidade começa nos dados. Em 2018, pessoas trans representavam apenas 0,1% de todas as matrículas no ensino superior público (Andifes); uma pesquisa de 2020 mostra que 90% da população trans tem a prostituição como única possibilidade de subsistência (Antra); outro levantamento de 2020 revela que apenas 13,9% de mulheres trans e travestis possuíam empregos formais. Já entre os homens trans, o percentual foi de 59,4% (FAFESP).
A Afirmativa conversou com Symmy Larrat, primeira Secretária Nacional LGBTQIA+. Também a primeira presidente travesti da tradicional ABGLT – Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis, Transexuais e Intersexo. Larrat fala sobre o desafio de comandar uma pasta inédita e dos desmontes da última gestão federal. Explica ainda as emergencialidades da Secretaria, e a atuação em conjunto com o Ministério da Justiça e com o Ministério da Igualdade Racial para lidar com a interseccionalidade que põe em risco a vida da população trans negra.
Revista Afirmativa: Que avaliação a senhora faz do primeiro mês de trabalho na Secretaria Nacional LGBTQIA+?
Symmy Larrat: A gente primeiro está constituindo uma Secretaria que não existia. Isso burocraticamente é muito difícil, não pode demorar muito, mas não é no tempo que a gente quer. Então o que a gente fez? Olhou o que era emergencial e que precisava ser encaminhado e está planejando o que queremos executar: descobrindo tudo quanto podemos; o que precisa ser alterado; o que foi desmontado; o que foi apontado no governo de transição. A gente está indo a fundo no que pode saber pra poder executar a política.
R.A.: Qual o nível do desmonte em relação às políticas públicas voltadas para a população trans?
S.L.: Se a gente for olhar a população LGBTQIA+ toda, a população trans foi a mais perseguida e invisibilizada nesse governo [Bolsonaro]. Eles foram apagando as identidades de gênero e substituindo em tudo, em qualquer documento ou política pública. Tiraram a identidade de gênero e substituíram por uma tal ideologia de gênero, que desconfigura completamente a política pública. As políticas públicas que deveriam nos proteger muitas vezes passaram a nos perseguir. O desafio maior vai ser enfrentar essa institucionalização de uma moral do ódio que foi colocada nesse governo. Não basta a gente dizer ‘tem uma secretaria, todo mundo tem que mudar de postura agora’, não é assim. A política pública é feita por pessoas e em diversas camadas.
R.A.: Entre as emergencialidades debatidas no planejamento e agenda da Secretaria, o que podemos aguardar de resultados nos próximos meses?
S.L.: Já identificamos algumas emergencialidades. Uma delas é a extinção do Conselho Nacional LGBT. A gente quer retomar ainda nos 100 primeiros dias, garantindo a participação social. Isso era proibido na Esplanada praticamente. A gente tinha um Conselho fake da antiga ministra [Damares Alves] que só dialogava com o próprio ministério. A outra coisa é que tivemos conquistas, como a retificação de nome e gênero, e a transfobia tipificada na Lei do Racismo. Só que o governo não fez nenhuma movimentação para transformar isso em acesso às pessoas, que ainda têm o sentimento de impunidade muito grande. A nossa segunda emergência é construir as pontes da política pública para que a gente acesse esses direitos. Pra que a gente transforme essas decisões em realidade na vida das pessoas.
R.A.: E como está sendo o diálogo com os movimentos sociais nesse sentido?
S.L.: Pra mim isso vai ser muito tranquilo enquanto Secretária porque eu vim dos movimentos sociais. Hoje [dia 26], por exemplo, a gente recebe aqui na Secretaria um evento de lançamento do relatório da Antra. Nos orgulha muito dizer que o espaço de governo está aberto pra que venham aqui inclusive nos pautar. A gente não pode fazer nada desconectado do que os movimentos sociais apontam. A nossa tarefa é traduzir essas demandas para a estrutura governamental. Nosso planejamento está sendo baseado nas oitivas feitas com os movimentos sociais durante o governo de transição. A gente quer pautar as áreas do governo como um todo: incidir na educação, saúde e assim por diante.
R.A.: O Brasil é o país que mais mata pessoas trans. Se essas pessoas forem negras, aumentam ainda mais os riscos de serem violentadas. Pensando na realidade acerca do racismo como um fator de risco para a população trans, como a Secretaria pretende lidar com esse quadro?
S.L.: O primeiro passo é construir um diálogo interseccional que pense como isso também é colocado nas áreas que a gente vai lidar. Igualdade racial é uma delas. Quando eu acesso os dados da Antra tem algo pra mim que é urgente: essa entrega que nós queremos fazer das normativas possíveis para implementar a efetividade da decisão jurídica do STF que diz que transfobia é crime tipificado a partir da Lei do Racismo*. O primeiro passo é sentar com o Ministério da Justiça e dizer: como é que o acolhimento, atendimento, investigação, acompanhamento, os campos do sistema, a tipificação, como é que isso aparece? Como isso tem que ser feito no Brasil? É a gente dar corporiedade. Porque isso primeiro protege as pessoas; segundo nos ajuda a ter dados de governo sobre essa população; terceiro nos alicerça para o caminho de ter uma legislação específica futuramente já que não temos hoje um cenário propício pra isso. Eu acredito que essa é uma saída emergencial pra gente enfrentar esses dados que apontam que as primeiras pessoas a serem beneficiadas nesse processo são essas pessoas que são mais vítimas disso.
R.A.: Isso implica, então, um fortalecimento do diálogo não só com o Ministério da Justiça, mas também com o Ministério da Igualdade Racial, para pensar soluções de forma transversal para combater esses números?
Totalmente. Até porque nós temos aqui um ministro que é o Silvio de Almeida, que debate isso nesse campo. E nós tivemos ontem inclusive a ministra Anielle recebendo o dossiê da Antra e já se comprometendo publicamente com isso. Então a gente tem um cenário propício para que esse diálogo seja feito de maneira prioritária com essas áreas.
R.A.: Como a senhora avalia o significado do Dia da Visibilidade Trans no contexto do Brasil atual, e como a Secretaria Nacional LGBTQIA+ pode contribuir para potencializar esse significado?
Eu sei que a nitidez de que a gente ainda não tem uma Secretaria, que todos estão com muita ansiedade, que estamos vendo o que é emergencial e ainda não tem tudo pra entregar. Então essa data ser em janeiro e com uma primeira travesti Secretária Nacional, tem que ser mais do que simbólico. É muito importante pra determinar de uma vez por todas que não haverá mais perseguições desse tipo impetradas e promovidas pela gestão. Pelo contrário. Há o comprometimento do investimento para que a gente sane todas as feridas e ataques que foram feitos. Mas sobretudo que se promova acessos mais igualitários e justos à toda essa população.
Saiba mais sobre a trajetória da Secretária Larrat no ativismo e na política aqui.
*Foi em 2019 que o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), devido à omissão inconstitucional do Congresso Nacional em editar lei específica, votou pelo enquadramento da homofobia e da transfobia como tipo penal definido na Lei do Racismo (Lei 7.716/1989). Vale lembrar que a tese estabelece ainda que o conceito de racismo ultrapassa aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos e alcança a negação da dignidade e da humanidade de grupos vulneráveis. Ou seja, crimes de homotransfobia, com base nesse conceito, passam a ter a mesma penalidade prevista na Lei do Racismo. O que nada tem a ver com a intersecção da raça nesse crime, que é um fato concreto considerando que 81% das pessoas trans assassinadas só em 2021 eram travestis ou mulheres trans negras.